Entre as boas novidades da Companhia de Bolso está uma edição mais popular de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o qual há 15 anos (foi lançado em 1991) permanece como uma das duas obras-primas literárias supremas a ter Cristo como protagonista (a outra é A Última Tentação, de Nikos Kazantzakis, um romance que se torna cinqüentenário em 2006). José Saramago já havia escrito coisas que até Deus duvida antes, e depois continuaria escrevendo, porém talvez nenhum texto seu seja tão deslumbrante. Ao mostrar o Criador como uma potência imperialista lutando pelo controle do mundo, ele literalmente fez o diabo, transformando a tessitura narrativa numa túnica inconsútil da qual é até difícil extrair uma citação.
“Deus não perdoa os pecados que manda cometer”. E Saramago tampouco perdoa: “se existe Deus terá de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem dois, assim haveria um deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata, um deus para o condenado, um deus para o carrasco… o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada…” Mais adiante: “Por outras palavras, o teu Deus é o único guarda duma prisão onde o único preso é o teu Deus.” E, muito mais adiante ainda: “O problema de Deus é esse, ninguém tem o nome que ele tem.”
Ainda assim, a grande força do texto, seu centro de gravitação, é menos a acusação metafísica (já poderosa) do que a afirmação de uma humanidade gritante ao cometer seus pecados. A primeira parte do romance (onze capítulos) é dominada pela figura de José (cujo destino também é morrer crucificado). Nunca antes o pai humano de Cristo ganhara contornos tão nítidos e inesquecíveis.
O grande autor português, talvez imbuído de “um espírito voltaireano, irônico e irrespeitoso”, ao focalizar o nascimento de Jesus e as atribulações do marido de sua mãe, ao cumprir suas obrigações religiosas, também não esquece de aquilatar de forma definitiva a crueldade do ser humano para com os animais. José vai ao templo em Jerusalém oferecer sacrifício: “uma alma qualquer, que nem precisará ser santa, das vulgares, terá dificuldade em entender como poderá Deus sentir-se feliz em meio de tal carnificina…” Consumado o sacrifício: “…tudo voltará ao que era antes, a diferença é haver duas rolas a menos no mundo e um menino mais que as fez morrer.”
Não se pense que Saramago zombe da história de Cristo. Muito pelo contrário. Ele se mostra um formidável adversário daquilo que não aceita e não acredita, mas que não pode evitar enquanto narrador, acicatando “essa cicatriz benévola que é não pensar”. Talvez seu Cristo, ao ocupar a segunda parte da narrativa, não tenha a explosiva mistura Zaratustra-personagem de Dostoievski do Cristo de Kazantzakis; nunca, entretanto, desce a um mero nível de humanização adocicada, como o Cristo de Frei Betto no seu palidíssimo e aguado Entre todos os homens: “Sendo Jesus o evidente herói deste evangelho, que nunca teve o propósito desconsiderado de contrariar o que escreveram outros e portanto não ousará dizer que não aconteceu o que aconteceu, pondo no lugar de um Sim um Não…”
Sim e Não. Deus e o Diabo. Kazantzakis já nos advertia: “Sem dúvida foi Deus, Deus.. ou teria sido o Diabo ? Quem consegue distinguir entre os dois ? Eles trocam de cara. Deus às vezes é só escuridão; e o diabo, só luz.” Saramago, tão diferente dele, no entanto tão igual (como deus e o diabo ?): “…e olha que se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o abríssemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro (…) imagine-se o escândalo se Pastor lembrava de abrir Deus para ver se o Diabo lá estava dentro”.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de abril de 2006)
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