I-A fauna da arca
Em São Paulo, “vastidão de caixotes amontoados”, há um caixotão de 32 andares que se destaca pela população (mil habitantes!): é o Copan. Originalmente projetado (por Niemayer) para ser um prédio de luxo, em sua decadência precoce tornou-se o símbolo do mergulho da classe média no empobrecimento, na degradação de costumes e na violência, “uma cidade vertical cheia de contrastes e problemas”.
Os contos de Arca sem Noé, de Regina Rheda, selecionam oito espécimes da fauna do Copan, em meio ao dilúvio sem guia salvador que é o caos urbano do fim de século. Entre eles, dona Adelaide, senhora de 88 anos que já viveu tempos bem melhores e que, obcecada por limpeza, tem de conviver com um vizinho porco e grosseiro, incapaz de fechar uma lixeira, apesar de afamado dramaturgo; ou Vera Lúcia, dona de casa sessentona a qual, após ser abandonada pelo marido, descobre os prazeres da permissividade prometidos pelo mercado pornográfico; ou o porteiro Agenor, que viveu toda sua existência em função do prédio e, jamais devidamente reconhecido, repete sua servidão no Além, sem descanso; ou, ainda, o vigia Genevaldo, aflito por ter de revelar a um dos moradores a prostituição da mulher do dito cujo, e que descobre, surpreso, que não só o chefe do lar sabe como apóia e ainda dá comissão ao síndico pela leniência.
II- bordados e hibiscos
Estreante, Regina Rheda tem um estilo picante e incisivo, uma combinação da sofisticação da grande cronista da solidão urbana que foi Dorothy Parker (Big Loira) com a loucura e violência marinadas em humor nego implacável que povoam o universo de Quentin Tarantino, do esplêndido Pulp fiction. Ela faz o leitor cair na tentação de sair citando as mais venenosas e cruéis passagens do livro. Cruéis, venenosas. E admiráveis. E precisas. Como a descrição do Mau vizinho, de Dona Adelaide, calcada num conhecido dramaturgo-tarólogo santista:
“Estômago e barriga, aliados, expandiam-se sem escrúpulos, ultrapassando os limite do corpo, invadindo territórios que por direito não lhe pertenciam… A camiseta de malha barata, que ostentava no peito um involuntário bordado de caldo de sopa, entornado de uma colherada sem mira durante qualquer jantar ancestral… Nos calcanhares rachados embrenhava-se uma substância escura que lembrava o lodo sobrevivente dos leitos secos dos rios”.
Ou então o espetáculo sexual testemunhado por Vera Lúcia (no genial A voyeuse, meu preferido na coletânea):
“O namorado penetrou a amante como uma planta que esconde suas flores entre as folhagens da outra, confundindo seus galhos e seu tronco com o dela… encobrindo-a em total indiferença aos esforços de dona Vera que, retorcendo-se no sofá, tentava inutilmente enxergar, em meio à agitada vegetação, o rubro e libidinoso hibisco”.
Hibiscos cobiçados à parte, nem tudo são flores: nem sempre a talentosa autora sabe concluir e há um texto, Falta d´água, que poderia ser extraordinário e que fica no meio do caminho, como se faltassem água e fôlego. Mesmo assim, para uma estréia Arca sem Noé tem vigor, verve, observação crítica e demolidora. E muito estilo. Dá para o leitor ficar com água na boca esperando mais. De resto, o leitor santista que riu muito com a caracterização física de Plínio Marcos fecha o livro desejando que apareça um escritor local com esse talento e que conte histórias sobre o nosso Copan: o Universo Palace, edifício onde se localiza a Pink Panther. Para isso, todavia, o autor da façanha haveria que convocar outro santo padroeiro, além de Dorothy Parker & Quentin Tarantino: Pedro Almodóvar.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de abril de 1995)
O “vizinho porco e grosseiro, incapaz de fechar uma lixeira, apesar de afamado dramaturgo”, pra quem não sabe, era o Plinio Marcos.
Comentário por Sergio Faria — 08/06/2013 @ 2:25 |
Sim, é e não é, pois se trata do “personagem” Plínio Marcos. Obrigado pelo seu comentário.
Comentário por alfredomonte — 08/06/2013 @ 4:13 |