MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

07/12/2012

Um momento de alegria purinha: a história sem fim de “O arqueólogo do futuro”


autográfoarqueólogo

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de dezembro de 2007)

Num país em que os professores têm de lidar com uma literatura juvenil em geral de baixa qualidade, é motivo de alegria uma autora do naipe de Maria Valéria Rezende se voltar para esse gênero de produção nas quatro histórias que compõem O Arqueólogo do Futuro, cujo título é uma brincadeira com as teorias que insistem a respeito do Fim da História.

Novamente chama a atenção o jogo entre os mundinhos pequenos perdidos no mapa e o vasto mundo globalizado, presente desde sua coletânea de estréia, Vasto Mundo. Das cidadezinhas onde nascem os misteriosos digiolhos, de lugarejos ermos como Itacoatiara do Ingá (palco do texto-título), mesmo do âmbito quase doméstico de Milagre de celular, para a China abrindo-se para o capitalismo na história mais carismática, Orelhão em Pequim, na qual o narrador adolescente envia um longo e-mail para seu camarada Beiçola, mostrando sua descoberta da China, das meninas chinesas, a língua e seus ideogramas, descobrindo como a diversidade das falas pode gerar a escrita e a literatura.

Como todo garoto que se preze na tradição da ficção, Orelhão tem necessidade de aventura. Segue o mapa, mas gostaria de não seguir: “embora eu tivesse uma certa vontade de me perder naquele outro mundo, pois afinal, “estou na China, estou no mundo, estou na vida”.

É como garoto (até usando o indefectível boné) também que o alienígena de O Arqueólogo do Futuro vai viver seus dias de extraviado no nosso planeta e nosso tempo, aprendendo a se sentir vivo (e até aprendendo o que é o cansaço, após horas de curtição), ao cair no forró, enquanto espera a crucial data de 24 de junho.

A menina de Milagre de celular se sente invisível por não possuir um aparelho, e depois que o consegue, sofre a angústia de não ter quem ligue para ela (“eu estava achando que tinham feito só uma pequena alteração da tal praga contra mim). Como é bom uma autora que conheça realmente a garotada, que não crie uma ficção juvenil de laboratório ou para incutir parâmetros curriculares disfarçados!

Quanto ao Caso do Digiolho, talvez seja a narrativa mais complexa do livro, com sua fábula praticamente nascendo do proverbial, do popular, da idéia de que “apontar estrelas” faz nascerem verrugas. No caso, o menino que aprende o nome dos astros e que desenvolve um olho no dedo, fenômeno que se espalha, até que se crie uma “digimoda” (digirroupas) e as possibilidades desses novos apêndices são atrofiadas, pois eles caem em desuso (como se a humanidade não estivesse preparada para aumentar sua percepção das coisas, e evoluir).

Como saldo final dessas quatro histórias deliciosas (e ilustradas de forma inspirada,  por Clóvis Dias Júnior), as quais proporcionaram ao responsável por esta coluna um “um momento de alegria purinha (tal como Orelhão com as chinesinhas), o que fica mais evidente é a vitalidade, a simpatia que os narradores transmitem (e como isso é importante para fisgar o leitor em formação), simpatia da escritora por seus personagens, simpatia pela vida e pela História que nunca acaba…

os destinatários

TRECHOS SELECIONADOS:

“Ninguém me ligava e, com ele calado, ninguém notava que eu tinha um celular. Todo mundo tem, já virou coisa invisível, a menos que perturbe, tocando uma musiquinha daquelas. Daí sim, todos notam. Mas o meu não tocava. Eu é que não ia ligar pra ninguém porque meus créditos grátis tinham que durar três meses. Pior ainda, não encontrei mais nenhum carinha que pedisse o número do meu celular.  Eu já estava achando que tinham feito só uma pequena alteração da tal praga contra mim.

   Até que, segunda-feira passada, aconteceu o milagre. Eu estava sozinha na lanchonete em frente ao colégio, o celular espremido entre o prato do hambúrguer e o copo de guaraná e, de repente, tirintintim tirintintim. Era ele tocando.

   Fiquei nervosa, quase derrubei o prato e o copo, dei uma cotovelada no garoto desconhecido que estava ao lado, não achava o botãozinho que tinha de apertar, daí o carinha disse, com uma voz linda, bem grossa, parecendo de um rapaz mais velho:

__ Aperta o verdinho.

   Apertei e ouvi alguém gritar no meu ouvido:

__ Ô Murilinho, onde é que tu tá?” (trecho de Milagre de celular)

“Finalmente, ontem à noite, tomei uma decisão radical: resolvi fugir pra rua de qualquer jeito antes dos outros acordarem. Preparei um bloquinho e um lápis na minha mochila, pus meu despertador para as quatro e meia da manhã, debaixo do travesseiro pra não acordar meu pai.

   Pouco antes das cinco horas e do sol nascer, passei pela portaria do hotel, que já estava aberta. O porteiro se postou diante de mim com um olhar de dúvida e falou qualquer coisa naquele  inglês dele. Gele: não vai dar pé. Mas então tive uma inspiração, taquei meu  ´ni hau´, que quer dizer mais ou menos ´como vai´, que o Valdomiro tinha me ensinado, e fiz um gesto meio desajeitado, tentando imitar o tai chi chuan. A cara do chinês se abriu no maior sorriso, ele saiu na minha frente, esticou o braço pra direção da porta, e eu soltei meu ´xié, xié´, que é ´obrigado´. Saí tranquilamente pela rua. Fiquei feliz: tinha conseguido resolver um problema por meio do diálogo, com as duas únicas expressões que sei em mandarim (…)

    Daí a pouco virei uma esquina, cheguei numa avenida mais larga, com espaços bem amplos e ajardinados, no meio, e comecei a me espantar: vinha chegando gente de todo lado, de todas as idades, velhinhos e velhinhas velhíssimos, adultos, jovens da nossa idade e criancinhas, cada um escolhendo seu lugar, concentrando-se, respirando e começando seus exercícios preferidos, numa variedade enorme de estilos, uns parecendo cegonha se equilibrando num  pé só, outros dando saltos acrobáticos incríveis, daqueles de filme. Maior silêncio. Cada um na sua. Um não perturba o outro, um não invade o espaço do outro. A maior concentração, e tudo naquele sol  da manhãzinha começando a passar pelos ramos das árvores. Nem parecia que a gente estava no meio de uma cidade de milhões de pessoas!

   (…) E também me senti monstruosamente alto, gordo e desajeitado no meio daquela gente tão leve, como se eu fosse um baobá—lembra os desenhos daquele livro do Pequeno Príncipe que a professora da quarta série fazia a gente ler?—no meio de um bambuzal. Ali, eu senti que finalmente tinha chegado à China dos chineses.  (trecho de Orelhão em Pequim)

cuidado

“o digiolho era uma atrapalhação pras lavadeiras, porque ardia com sabão e água sanitária; pras costureiras, que precisavam das duas mãos pra puxar o pano na máquina ou pra costurar à mão. Morriam de medo de enfiar a agulha no tal do olhinho. O serviço delas ficou  bem mais difícil e vagaroso. O mesmo se pode dizer dos marceneiros, dos pedreiros, de quem tinha que tirar leite das vacas, dos mecânicos, das cozinheiras… Já pensou o perigo de cair pimenta no olho do dedo?

    Era um problemão pra quem gostava de jogar vôlei, sinuca, plantar bananeira, tirar meleca do nariz sem largar o que estava fazendo com a mão mais esperta, empinar pipa, tocar piano, violão, cavaquinho e assim por diante, praticamente pra todo mundo.

   Logo que a agitação da novidade passou e os problemas se apresentaram, a gente foi chegando à conclusão de que não podia ficar usando três olhos ao mesmo tempo. Melhor usar mesmo, no dia-a-dia, os dois velhos olhos da cara. Daí começamos a enrolar o dedo com uma tira de pano pra proteger o digiolho quando não estivesse em uso. Então, alguém teve a ideia de fazer uma roupinha, como um dedal de pano, mais bacaninha, e aquilo virou assunto de moda.

   Em poucas semanas, a digirroupa virou uma mania…” (trecho de O caso do digiolho)

“Tranquilo quanto à missão, enquanto a Clarinha me puxava pela mão, olhei á volta pra ver como era, afinal, a vida na Terra. A Terra era uma praça enorme, cercada de faixas nas quais estava escrito O MAIOR SÃO JOÃO DO MUNDO, cheia de barraquinhas, um cheiro delicioso de comidas desconhecidas, terráqueos de todas as categorias chegando aos milhares, uma música em alto volume que dava uma vontade irresistível de agarrar uma garota, apertar bem e sacudir o corpo todo, que era o que eu via um monte de nativos fazendo. Meu sistema informou: Forró, forró, forró. Dança, dança, dança.

   Bom, amigo, o resto você sabe, porque você estava lá com a galera da Clarinha. Puxa, que noite! Que experiência! Aprendi a dançar, a comer pamonha, comi e bebi tudo o que a Clarinha me deu, aprendi a beijar, a ficar, a namorar, percebi que aquilo entre as minhas pernas não era uma perna a mais, enquanto meu sistema interno quase enlouquecia de tanto piscar (…) Depois de horas de curtição, aprendi o que é cansaço. A Clarinha sentou no chão, encostou-se na parede de uma barraca, fez eu me deitar com a cabeça em seu colo, tirou meu boné e começou a coçar mina cabeça. Meu sistema piscou alucinado: Cafuné, cafuné, cafuné! Boné, boné, boné! Antena, antena, antena! Nem liguei, nem entendi direito o que ele queria…”  (trecho de O arqueólogo do futuro)

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