MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

04/12/2012

A linguagem contra o esquecimento do ser num dos grandes romances brasileiros



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“… e isso é tudo o que há para se ver, sem conhecer nem nascente nem poente, nem manhã nem tarde, tudo tão aqui, tão perto que a vista logo ali bate e volta, curtinha, sem se poder estirar mais longe, nem para fora nem para dentro, revolteando como passarinho há pouco engaiolado, afogando-se, cegueira. Tudo tão nada que Rosálio nem consegue evocar histórias que o façam saltar para outras vidas, porque seus olhos não encontram cores com que pintá-las…”

A tragédia maior retratada em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, era o vácuo de linguagem em que se debatiam as personagens, que não tinham sequer o vocabulário para expressar sua angústia e sua miséria. Vácuo de linguagem, “esquecimento do ser”.

É contra a submersão nessa condição desumana e cinzenta que luta o casal protagonista de O vôo da guará vermelha, Irene e Rosálio; ela, uma prostituta já num estágio avançado da AIDS (embora ainda recebendo clientes); ele, um servente de pedreiro analfabeto, inteligente, inato contador de histórias.

Depois de ter gostado muito da coletânea de contos Vasto mundo, primeiro livro de Maria Valéria Rezende,  fiquei um tanto alarmado com o título de seu romance, com seu apelo pitoresco, justamente uma armadilha regionalista evitada com perícia na obra de estréia. E tratando-se um segundo livro, sempre um momento perigoso…

Ao conhecer o encontro desse casal tão despojado de tudo no primeiro capítulo, qualquer prevenção caiu por terra. Fazia tempo que um capítulo inicial não emocionava tanto, mesmo porque a procura de sobrevivência se faz sobretudo pela aquisição da linguagem e essa experiência pedagógica é que permeia o relacionamento de Rosálio e Irene, ela ensinando-o a ler enquanto ele lhe conta histórias para que ela continue a querer viver, num processo de sedução especialíssimo: “Rosálio está ansioso para ver a mulher e as páginas em que ela o guia e onde as palavras o esperam querendo entregar-se a ele”. Ou ainda: “E ela sabe escrever!, esta mulher sabe ler!, leia mais, leia tudinho, me diga onde está  guará, e agora onde está vermelha e sangue e espinhos e penas. Aqui, ali, acolá, Rosálio corre nas linhas buscando a guará vermelha nos espinheiros das letras até vê-la com clareza e distinguir, luminosos, espinhos, penas e sangue.”

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A experiência de vida gera a escrita (Irene escreve as histórias de Rosálio num caderno), que devolve a experiência organizada e transformada, “tudo junto, embaralhado, tramado num pano só, nascendo da mesma cepa, me ensinando essa lição: que a vida mistura tudo e quem quiser separar não vive nada que valha”.

A expressão “experiência pedagógica” pode levar a um equívoco. Não se pense que Maria Valéria Rezende pretenda dar lições explícitas ao leitor e que O vôo da guará vermelha é um daquele textos dos quais se tira uma “mensagem” unívoca e edificante. A autora tem um lado idealista visível, um ideário perceptível, mas a qualidade da sua escrita e sua capacidade de concretizar ficcionalmente essas vidas com suas cores cambiantes é que faz dela um talento a ser acompanhado com muita atenção.

A leitura de O vôo da guará vermelha, assim como a de Vasto mundo, leva sempre a evocar as lições mais profundas de Antonio Cândido sobre a vocação da literatura brasileira, que é, no limite, a responsabilidade solidária diante de uma multidão de deserdados. Ou seja, para usar o velho clichê (nem por isso menos necessário), “dar voz aos oprimidos”. E ela o faz sem resvalar nunca no discurso panfletário. Suas personagens tiram as palavras (e portanto suas vidas) do nada, dispondo-as numa articulação narrativa, uma “forma”, uma imagem de nós mesmos (ao contrário do fazendeiro que, numa das belas anedotas de Rosálio-Scherazade, foi perdendo, devido à sua abjeção, sua identidade a ponto de não se reconhecer nos espelhos e ter pavor de encará-los). Como nos ensina o mestre da crítica brasileira, “a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere… toda obra literária pressupõe esta superação do caos.

E isto vai de encontro à tristeza que é a irrealidade demagógica e aleatória dos projetos governamentais no nosso país, que deixa os Rosálios com fome de palavras e de vida, como nos mostra a emblemática história da professora que, montada uma escola, chega no seu povoado  natal, fica um pouco, e depois some: o povo ficou na mesma, vivendo no realengo, a diferença era aquela casa nova, mais bonita do que qualquer outra do arraial, branquinha, vistosa, a nos lembrar todo dia que ali só havia analfabetos, coisa que a gente antes nem atinava o que era…A gente ficou mais pobre por causa daquela escola. Ninguém pensou em fazer nessa casa moradia e ela lá ficou, vazia…”

É assim que geralmente acabam as casas do rei-menino (para aludir ao título de um dos inúmeros livros de um dos ”luminares” da nossa educação atual, Gabriel Chalita, que sempre me lembra o Gilderoy Lockhart de Harry Potter e a câmara secreta: muita auto-promoção e pouca substância) que é o ensino brasileiro.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 02 de outubro de 2005)

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