Todo leitor conhece a dedicatória de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”, e o final do romance de Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Uma visão niilista similar norteia a produção poética de Augusto dos Anjos (1884-1914), que a Bertrand possibilita revisitar na esplêndida 43ª edição de EU E OUTRAS POESIAS:
“Porque a morte, resfriando-nos o rosto/Consome a minha concepção vesânica/ E a alfândega onde toda a vida orgânica/ Há de pagar um dia o último imposto”.
É quando percorremos o conjunto da obra de Augusto dos Anjos que nos livramos daquela imagem-chavão de um poeta esquisito, useiro e vezeiro de uma linguagem esdrúxula, meio kitsch, tomada do vocabulário científico. A imagem que surge é outra: um poeta extremamente consciente (a perfeição do verso em Augusto dos Anjos e, em especial, a sua aplicação no soneto, são impressionantes) e um volume que está para o Brasil como As flores do mal para a França (em ambos, a mesma influência-matriz: Edgar Allan Poe). E estamos falando de um poeta que morreu aos 30 anos (Baudelaire morreu aos 46).
Outro grande sonetista, Antero de Quental (1842-1891), escreveu O palácio da Ventura:
“Sonho que sou um cavaleiro andante/Por deserto, por sóis, por noite escura/Paladino do amor, busco anelante/ O palácio encantado da Ventura//
Mas já desmaio, exausto e vacilante/ Quebrada a espada já, rota a armadura…/E eis que, súbito, o avisto, fulgurante/ Na sua pompa e aérea formosura//
Com grandes golpes bato à porta e brado:/Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…/Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!//
Abrem-se as portas d´ouro, com fragor…/Mas dentro encontro só, cheio de dor/ Silêncio e escuridão—e nada mais!”
Pessimista, cético, Antero ainda assim contraditoriamente procura fora de si a plenitude, simbolizada por uma metáfora arquitetônica, embora derrotado pela desilusão final. Igualmente arquitetônica é a maneira utilizada por Augusto dos Anjos, no extraordinário soneto Vandalismo, para mostrar que está em nos mesmos o obstáculo à plenitude que Antero perseguia:
“Meu coração tem catedrais imensas/Templos de priscas e longínquas datas/ Onde um nume de amor em serenatas/Canta a alegria virginal das crenças.//
Na ogiva fúlgida e nas colunatas/ Vertem lustrais irradiações intensas/ Cintilações de lâmpadas suspensas/E as ametistas e os florões e as pratas.//
Como os velhos Templários medievais/ Entrei um dia nessas catedrais/ E nesses templos caros e risonhos…//
E erguendo os gládios e brandindo as hastas/ No desespero dos iconoclastas/Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos.”
Com sua desesperada iconoclastia, o genial poeta paraibano destila sua visão da vida cujo parâmetro não é a transcendência e sim a putrefação, o pó que nos é destinado, após o festim dos vermes: “O coração do Poeta é um hospital/ Onde morreram todos os doentes”.
A fisiologia é o ponto de partida para o diagnóstico metafísico:
“E o cuspo que essa hereditária tosse/ Golfava, à guisa de ácido resíduo/ Não era o cuspo só de um indivíduo/ Minado pela tísica precoce.//
Não! Não era o meu cuspo,com certeza/ Era a expectoração pútrida e crassa/ Dos brônquios pulmonares de uma raça/ Que violou as leis da natureza”.
Para materializar essa visão, na qual “Há mais filosofia neste escarro/ Do que em toda a moral do Cristianismo”, o “filho do carbono e do amoníaco”, o “coveiro do verso” convoca o repertório das ciências e pseudo-ciências que dominaram as positivistas décadas finais do século XIX e começo do século seguinte. Estaríamos, então, diante de um poeta naturalista, de um Aluísio Azevedo (O cortiço) do verso?
Nada disso. O cientista, para os naturalistas, era uma autoridade absoluta, dava a última palavra sobre a vida, uma palavra otimista que entrevia progresso e desenvolvimento para nossa espécie. Ao utilizar um background científico-filosófico,o autor de EU E OUTRAS POESIAS parece apenas reafirmar o nada da nossa condição, o que lhe tira qualquer resquício de cafonice e mau gosto e o lança no reino da ironia. Além disso, por um efeito alquímico que só os gênios conhecem, os termos caem como uma luva na cadência do verso: “Que eu vejo enfim, com a alma vencida/ Na abjeção embriológica da vida/ O futuro de cinza que me aguarda”.
No mundo schopenhauriano da “negatividade universal”, o homem só pode se horrorizar diante de si mesmo:
“Quando eu pego nas carnes de meu rosto/ Pressinto o fim da orgânica batalha/ Olhos que o húmus necrófago estraçalha/Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto…//
E o homem—negro e heteróclito composto/ Onde a alva flama psíquica trabalha/Desagrega-se e deixa na mortalha/O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!//
Carne, feixe de mônadas bastardas/Conquanto em flãmeo fogo efêmero ardas/ A dardejar relampejantes brilhos//
Dói-me ver, muito embora a alma te acenda/ Em tua podridão e herança horrenda/ Que eu tenho de deixar para os meus filhos!”
A partir daí, ele se debate num dualismo que rende imagens magníficas em sonetos inigualáveis: “Minha alma é um misto/ De anomalias lúgubres. Existo/ Como o cancro, a exigir que os sãos enfermem…
…minha alma, enfim, dada às bravas/Cóleras dos dualismos implacáveis/E a gula negra das antinomias!//
Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo…”
É a visão de William James sobre a morte: podemos fazer o que quisermos para ignorá-la e escondê-la de nós mesmos, mas no final, “a caveira arreganhará os dentes no banquete”. O notável em Augusto dos Anjos é como ele, tal como Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, modelou uma linguagem única e irresistível para nos manter cientes disso. Por isso, EU E OUTRAS POESIAS, , livro da singularíssima pessoa, em cuja sorte um urubu pousou, é simplesmente indispensável em qualquer biblioteca que se preze, e 89 anos após sua edição original, é ainda um dos grandes, singularíssimos lançamentos de qualquer ano.
Resenha publicada em 10 de julho de 2001
Caro Alfredo,
Depois da sua habitual brilhante crítica eu lhe pergunto: Como é que as gerações de hoje podem digerir um poeta genial como Augusto dos Anjos? Eu falo por experiência própria. Já tentei ler para várias pessoas e a cara impagável e invariável é sempre a mesma: é de desconforto profundo.Simplesmente não gostam. Eu já desisti. Mas poesia não é isto mesmo, perguntará você. Ou melhor, citando outro grande, Manuel Bandeira, em NOVA POÉTICA:
“O POEMA DEVE SER COMO A NÓDOA NO BRIM:
FAZER O LEITOR SATISFEITO DE SI DAR O DESESPERO.”
Augusto dos Anjos faz isso: nos joga na cara a verdade e esta dói e muito, não é mesmo?
Os tempos mudaram? Que nada. Aquela conhecida história de Heitor Lima se encontrando com Olavo Bilac e lhe informando da morte de Augusto dos Anjos é famosa. “Quem é este Augusto?” perguntou Bilac. Resposta de Lima: “Um grande poeta!” e citou os “Versos a um coveiro”. Bilac, que era grande poeta também (seria inveja sua resposta?)retrucou sorrindo: “Fez bem em morrer, não se perde grande coisa.”
Que ironia, nem Bilac está com esta corda toda nos dias que correm. Paulo Coelho, que nunca li, e não vou falar mal dele gratuitamente, vende aos montes. Só estou constatando um fato e não denegrindo a imagem de Coelho. Será isto justiça? Eta mundinho estranho este em que vivemos.
Finalizo com Augusto mesmo:
“NÃO ENTERRES COVEIRO O MEU PASSADO,
TEM PENA DESSAS CINZAS QUE FICARAM;
EU VIVO DESSAS CRENÇAS QUE PASSARAM,
E QUERO SEMPRE TÊ-LAS AO MEU LADO!
NÃO, NÃO QUERO O MEU SONHO SEPULTADO
NO CEMITÉRIO DA DESILUSÃO,
QUE NÃO SE ENTERRA ASSIM SEM COMPAIXÃO
OS ESCOMBROS BENDITOS DE UM PASSADO!
AI! NÃO ME ARRANQUES D’ALMA ESTE CONFORTO!
– QUERO ABRAÇAR O MEU PASSADO MORTO
– DIZER ADEUS AOS SONHOS MEUS PERDIDOS!
DEIXA AO MENOS QUE EU SUBA À ETERNIDADE
VELADO PELO CÍRIO DA SAUDADE,
AO DOBRE FUNERAL DOS TEMPOS IDOS!”
Comentário por Cássio Queirós — 08/12/2010 @ 13:43 |