MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

16/07/2010

A missão do teatro para Wilhelm Meister

(no texto abaixo, fiz a sobreposição de duas resenhas, uma publicada em 13 de dezembro de 1994, ano em que a tradução de Nicolino Simone Neto foi lançada pela primeira vez pela editora Ensaio; a outra, de  13 de janeiro de 1997,quando a mesma tradução foi reeditada pela 34. Como esse procedimento era comum em Goethe, trabalhar sobre versões antigas, não me pareceu a pior das soluções, guardadas as devidas proporções):

UMA NOVA FORMA DE QUIXOTISMO

O Dom Quixote de Cervantes saiu pelo mundo imbuído dos valores medievais e encontrou-o transformado, mas ele mesmo recusou-se a mudar interiormente, preferindo modificar o mundo dentro da sua cabeça. Assim, os moinhos de vento da produção mercantilista viraram dragões.

Wilhelm Meister sai de casa e encontra o mundo burguês estabilizado, ou melhor, ainda pujante e cheio de promessas. Ele acalenta um ideal  mais alto, porém, do que a vida burguesa, e ensaia uma inédita (e revolucionária) forma de quixotismo: a expressão individual pela arte, que modifica o mundo sem a neblina da loucura. É por isso que ele, ao viajar com o fito de  cobrar dívidas comerciais para o pai (e esquecer um frustrado e precoce caso amoroso com uma atriz), acaba unindo-s a uma trupe de artistas e fundando uma companhia teatral cuja missão é criaro  autêntico teatro nacional alemão, com base nas conquistas que a obra de Shakespeare trouxe à arte cênica, colocando o máximo de vida no palco, em contraste com a restritiva arte clássica.

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister trata dos diversos incidentes (assaltos, cirandas amorosas, etc) que envolvem o destino dessa companhia teatral [1]. A tradução de Nicolino Simone Neto (um marco para os apreciadores de  J. W. Goethe no Brasil e que achavam que só Werther e Fausto existiam para os editores daqui), que fora publicada, em 19 94, pela  Ensaio, reapareceu recentemente, agora  pela  34.

O livro exerceu uma influência imensa e praticamente criou um caminho dentro da ficção: o romance de formação. Entre os grandes autores que se valeram dessa vereda no grande sertão do gênero estão James Joyce (Um retrato do artista quando jovem), Thomas Mann (A montanha mágica), Romain Rolland (Jean-Christophe), Hermann Hesse (O jogo das contas de vidro) e Doris Lessing (Os filhos da violência).

No livro de Goethe existe o entrelaçamento do individual com o nacional, dentro do microcosmo que é o mundo da companhia teatral, no qual o leitor vai registrando o amadurecimento de Wilhelm (há uma seqüência, Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister), adquirindo experiência de vida, enfim, formando-se. Acima do “teatro”, ou seja, o meio onde se conflitam pessoas com suas mesquinharias e vaidades, há o Teatro, a aspiração maior, o grande palco do mundo. Mesmo porque a vida também é, a um só tempo, um palco de aspirações egoístas e de grandes ideais.

Isso parece idealista demais? Distante demais ? É verdade. Algo sempre  me incomodou na leitura de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  e causava um sentimento de distanciamento que não acontece na leitura de Cervantes ou, para ficar no século XVIII, de Voltaire, Diderot ou Sterne [2]. Como escreveu lucidamente Marco Fontanella: “Francamente, quem hoje lê Meister com prazer e proveito até o fim ? O leitor contemporâneo tem sérias dificuldades com as artificialidades e a inessencialidade evidentes na enigmática Sociedade da Torre e com seus ideais políticos; a morte do harpista italiano e da filha de seu incesto, Mignon, e o amor não-consumado de Wilhelm e Natalie freqüentemente provocam revolta ou mesmo tédio: como é possível que uma sociedade secreta subitamente passe a determinar toda a vida do herói e sentencie a criança e se pai à morte apenas com base na dificuldade em se adaptarem aos novos tempos do trem a vapor, à vida moderna? Eis aí algo das dificuldades do romance.”

O problema é que justamente o conceito do artista trazer ao mundo sua autenticidade (aliado ao conceito da formação plena do ser humano), aproveitando a imensa (e teórica) liberdade que a burguesia trouxe ao indivíduo, envelheceu, caducou, carcomiu-se. E há a questão do herói do romance, pois Wilhelm parece um bocó, e sempre pomposo em demasia.

É um problema de percepção: dois séculos e uma década bastaram para mostrar no que deu a expansão burguesa. Nada tira, entretanto, do livro de Goethe o poder de registro de um momento em que os caminhos ainda pareciam abertos e em que o ideal de arte era potencialmente transformador  [3].


[1] Na versão de  1994, eu escrevi: …é—na área das traduções literárias—de longe o lançamento mais importante de 1994 (e embora tenha demorado duzentos anos para ser traduzido pelo menos ganhou uma bela edição, muito bem cuidada, além da excelente tradução  de Nicolino Simone Neto), não só porque o autor de Werther & Fausto é um dos grandes gênios da literatura, como também porque essa obra exerceu influência imensa e praticamente criou uma forma romanesca, o romance de formação: esse tipo de ficção mostra o desenvolvimento, a “educação sentimental” (leia-se existencial) de um protagonista.

       Entre os grandes autores que se valeram  do caminho aberto por Goethe não houve nenhum mais ilustre do que James Joyce e seu Retrato do artista quando jovem, mas pode-se citar Thomas Mann, Hermann Hesse, Doris Lessing (no ciclo sobre Martha Quest). No Brasil, recentemente Autran Dourado lançou Um artista aprendiz dentro dessa linha.

 

[2] Na versão anterior: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister está longe de ter o encanto, de ser uma obra apaixonante e de fruição agradável—apesar do abismo de dois séculos—de dois outros maravilhosos romances da época, Jacques, o fatalista, de Diderot, e Tristram Shandy, de Laurence Sterne, para não falar dos contos longos de Voltaire. 

[3]  Na versão anterior:  É um problema de percepção: dois séculos depois, sabemos no que deu a expansão burguesa e estamos mais para a Idade Média do que para o Iluminismo. Estamos num mundo que um Ítalo Calvino—em obras como Palomar—precisa reeducar, para utilizarmos nossos sentidos, e no qual uma Doris Lessing—nas suas obras sobre impérios galácticos, como Shikasta & As experiências de Sirius—tenta nos levar a uma percepção maior, a um Teatro ainda maior, da vida e do universo do  que a do nosso mero planetinha. Nada tira, contudo, do livro de Goethe o poder de registro de um momento em que os caminhos ainda estavam abertos e em que o ideal da arte não  havia sido corrompido  pela indústria cultural, o que não é, absolutamente culpa de Goethe, mas sim da própria  lógica social que ele ajudou a criar.

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