MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

17/11/2015

Um universo de emergências: “Enquanto Deus não está olhando”, de Débora Ferraz

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(o texto abaixo foi publicado originalmente no Letras in.verso e re.verso, em 01 de outubro de 2014, VER http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/10/debora-ferraz-e-o-universo-das.html)

I

«A impressão era sempre a mesma. As coisas aconteciam pra mim antes sempre antes de eu estar preparada para elas».

Na minha colaboração anterior para o Letras in.verso e re.verso (VER http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/09/a-maior-travessura-da-menina-ma-elvira.html) comentei Por escrito, romance no qual Elvira Vigna nos apresenta uma protagonista já madura, bem-sucedida profissionalmente, com uma relação longa e estável. Um projeto de reinvenção (ela apagando os rastros do passado) que, na narrativa em primeira pessoa, passava por um crivo agônico e mortal.

É curioso notar que Érica, a jovem narradora (24 anos) do primeiro romance de Débora Ferraz, Enquanto Deus não está olhando, faz sua curta existência (em relação à qual estava preparando seu próprio projeto de reinvenção) passar por um ritual agônico similar, quando terá que lidar com todo um «universo das emergências» (como lemos na pág. 184).

De repente, temos essas vozes narrativas de mulheres que esfarrapam os bordados estereotipados da famigerada escrita feminina e nos colocam no cerne trepidante da modernidade brasileira, com os problemas de classe, de geração e de impasses individuais que são exigências do gênero romance mais do que do gênero que coube ao escritor na espécie humana.

Assim, essa surpreendente ficcionista, com apenas 27 anos, nascida no interior de Pernambuco, mas radicada na capital paraibana, surge para revitalizar o fecundo filão do retrato do artista quando jovem, focalizando a formação de Érica como pintora e seus ritos de passagem para a idade adulta, tornados emergenciais por conta do desaparecimento do pai. Essa modalidade narrativa me parece muito necessária como antídoto a uma época em que as faixas etárias parecem ter se estratificado a tal ponto que chegam a excluir as ideias de formação e desenvolvimento: ser “teen” ou da “melhor idade” parece mais uma essência (quando não uma faixa muito bem delineada de um perfil de consumidor neste mundo-mercado para o qual nos deixamos conduzir e enredar), uma qualidade, do que um período da vida modulado por outros.

Portanto, entre seus muitos méritos, Enquanto Deus não está olhando é um dos raros livros em nossa ficção atual que se propõe a relatar um aprendizado (com todos os desencantos) do modo-adulto de ser— quiçá o mais fugidio na contemporaneidade:

     «Eu era incapaz de chegar a um lugar e dizer o que queria. Sempre envolvida pelas possibilidades de estar querendo—ou acreditando querer—a coisa errada. Sempre que eu ia a uma lanchonete com meu pai, eu precisava ver o cardápio inteiro, todas as vitrines de bolos, ponderando, desesperadamente, sobre as opções. Ele sempre se impacientava com isso. Em lanchonetes, ele caminhava decidido ao balcão e, sem perguntar o que serviam, sem ter em mãos o cardápio, pedia: Um misto quente e um café. Ele não se preocupava com as opções. E por que deveria? Eu é que tive opções demais na vida. Ele, não. Ele sabia o que queria. Adaptou-se ao fato de que qualquer birosca ofereceria misto quente e café. Ele teve uma só possibilidade.

__ Tem que ser simples—ele dizia.

__ Mas como o senhor vai saber se eles não têm algo muito melhor a oferecer que o misto quente?

__ Ora, por que eu deveria me preocupar? Misto quente está ótimo. A pessoa tem que ter decisão na vida. Tem que chegar já sabendo o que quer.—Ele parecia ter listas definidas: cerveja em bares, misto quente e café nas lanchonetes, churrasco de picanha em restaurantes. Fim de papo. Enquanto eu lia detalhadamente as descrições de cada prato, atravessando labirintos e vagando, eternamente, entre uma e outra opção, na névoa delas, rezando para topar, por acaso, com a coisa que eu queria sem saber.

   Pessoas assim nunca vão crescer, de fato. Pensei, desanimada, sobre minha própria incompetência para uma vida adulta».

No trecho citado, Érica reflete sobre sua “incompetência para uma vida adulta” em contraste com as atitudes de Aloísio, o pai, sua postura diante do mundo. É um ponto nevrálgico, uma vez que, justamente quando o pai se torna uma ausência, ela tem de lidar mais duramente com os “procedimentos” que definem uma existência adulta, processo tormentoso que se complica com a culpa: no momento mesmo em Érica tinha investido a sério na reinvenção da sua existência (aproveitara uma das diversas internações de Aloísio, cujo organismo, aos 47 anos, estava bastante derruído pelo alcoolismo, para reformar a garagem da casa, transformando-a numa parte independente, num ateliê), lhe falta a figura paterna. Aí, ela tem que lidar com o destino da casa sem o seu “chefe” e com essa materialização incômoda de um desejo de independência e diferenciação do destino familiar (o ateliê), a «herança de uma tristeza esquecida»: a passagem do ambiente rural (origem de Aluízio) para o urbano criara um “branco” na árvore genealógica, na continuidade do clã, que por falta de referência com relação a vários parentes (é comum o sumiço, sem mais nem menos, sem contar a orfandade), tornou-se uma «imensa linhagem de vácuos».

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II

«O que eu me pergunto é para que direção você está indo—ele levantou da mesa.—Vou buscar mais cerveja. Você precisa cair em si».

O romance de Débora Ferraz é dividido em três partes e, como dito anteriormente, todo perpassado por uma linha sísmica agônica. Com certeira intuição, ela faz com que a primeira parte apresente de forma mais aguda e hipertrofiada esse tom (ou seja, mergulhando o leitor no âmago da crise), quase beirando o expressionismo, surpreendendo sua heroína numa volta ao lar (na companhia de um amigo com quem perdera o contato por alguns anos, Vinícius), após infrutíferos e exasperantes dias no interior, cheia de cortes, encontrando uma casa que «subitamente tornou-se obsoleta»: mesmo com a presença da mãe e do irmão, e com o ateliê construído, não permite que Érica respire (ela sofre de sinusite renitente).

Para o leitor, o vácuo causado pela ausência de Aluísio e o desamparo subsequente de Érica aparecem a princípio sinalizados, da forma mais opressiva, pelos sinais físicos gritantes, esses cortes infeccionados e esse desconforto respiratório. Tudo de fato parece emergencial e irresolvível (como ela dirá, mais adiante, «Não sei o que deu errado. Talvez nunca tenha dado certo»).

Não é de estranhar que Érica esteja “fora de si”. Tudo o que ela pode fazer é voltar obsessivamente a determinadas datas (3 e 5 de março), até mesmo a determinadas horas dessas datas, como se fossem as únicas pistas seguras, numa casa não só obsoleta mas cronologicamente desnorteante, onde os enfeites de natal são mantidos muito tempo depois de sua presença fazer sentido.

Nesse período mais desamparado, não funcionam as exortações de Vinícius: Érica como que recua a um estágio anterior à sua decisão de estabelecer o ateliê na garagem, e resigna-se a voltar ao emprego que queria abandonar, submetendo-se até a uma avaliação psicológica. É como se o ateliê, resultado de um rito voluntarioso de passagem para a condição adulta (como ela nos dirá numa passagem da terceira parte: «Finalmente minha vida ia começar»), por ora recusasse esse passo também no nível da materialidade e se obstinasse em permanecer um “elefante branco”: ela sequer pode usar as instalações, há um vazamento enorme (mais uma situação emergencial, que exige decisões práticas, um mínimo controle sobre o cotidiano e seu caos). E os quadros ali permanecem, intocados, inacabados.

Devo insistir na tecla de que uma boa parte do sentimento de vácuo e desnorteamento de Érica tem sua raiz, se é que se pode usar esse termo em tal contexto, numa espécie de orfandade atávica dos membros da família do pai, orfandade que parece facilitar o desaparecimento (inclusive físico) dos elos parentais, das conexões entre as gerações. Quando Érica (acompanhada de Vinícius) visita, no interior, uma tia do pai em busca de pertences dele, é recebida como uma estrangeira, como se houvesse um fiapo de vínculo apenas pelo fato de que aquela tia criou provisoriamente o pai, após ele ficar órfão, sem verdadeiro apego. Logo, o retrato da artista quando jovem que Débora Ferraz nos propõe terá de forjar realmente a consciência incriada da raça a partir de dados fantasmáticos, de uma acentuada insubstancialidade.

Na própria casa, Érica não age muito diferentemente com a mãe (uma parece temer a dor da outra) e com o irmão, que permanecerá uma figura distante no relato.

No entanto, mesmo não “caindo em si”, Érica reinicia os ritos da vida, agora como postulante a adulta em caráter emergencial, e por mais que relute, estabelece vínculos, graças principalmente a Vinícius, que a apresenta à sua “turma”, no meio da qual ela beberá demais (com os papelões inevitáveis que a essa prática se associam) [1]; mesmo sem se dar conta, sua vida prossegue. E ela vai se apercebendo de que gosta de Vinícius, de que se apaixonou, e os dois iniciam um namoro, “com data de validade”, pois ele está com viagem marcada (já vivera um tempo na Argentina, e não quer ficar encalhado na cidade—que, supomos ser João Pessoa, embora pudesse ser qualquer centro urbano contemporâneo, pois aqui estamos longe também do cômodo cenário regionalista) [2].

Ao fim e ao cabo, essa relação, que não está subscrita pela sua “necessidade do pai” (mesmo porque Vinícius se recusa a ser um protetor paternal) [3], vai fazer com que Érica tenha de se definir quanto às opções da sua vida, incluindo as profissionais: o ateliê servirá para algo?, ela realmente se tornará a pintora que desejara ser, ao idealizá-lo?

Na exploração da formação de um casal (mesmo com “data de validade”), Enquanto Deus não está olhando também se mostra um romance digno de nota:

«Fincada ali, e acariciando seus cabelos ásperos, eu via que ele era como um boneco perfeitamente articulável como os manequins de madeira que usávamos nas aulas de anatomia. Estranhamente, eu na conseguia tirar da cabeça a imagem de Vinícius como um títere. Um lado da cabeça concentrava-se na imagem que o conjunto eu e Vinícius formava, e o arranjo aprecia patético. Eu queria mostrar a ele aquela imagem em minha cabeça, rir dele: Olha ali você bancando o homem. Olha ali eu bancando a mulher.

    Outro lado parecia dizer pra mim: É um homem e está de frente pra mim agora.

     Esses dois pensamentos ficaram duelando, e tudo o que viria a seguir dependeria crucialmente de que o lado que dizia ´homem ´ vencesse o que dizia ´é Vinícius´.

    Eu fechei os olhos e tateei delicadamente com os dedos por baixo de sua camisa. Senti a textura macia e firme da pele no seu abdome, deslizando com eles, senti que ele retesava os músculos. Eu zombaria se ele tivesse cócegas, mas ele apenas me ajudou, retirando-a, puxando o tecido de algodão pouco a pouco pelas costas. Um jeito de tirar a camisa que, eu havia reparado, só os homens adotavam. E parecia haver uma espécie de mistério sendo desvendado nesse ato. É um homem.

__ Por que os homens tiram a camisa desse jeito?

    Ele riu.

__ Ora, existe um outro jeito de tirar?—Voltando para me beijar, mas dessa vez eu o impedi espalmando as duas mãos sobre o seu peito…».

Aqui, Débora Ferraz consegue escapar das armadilhas comuns do “erotismo” na literatura (que tem ficado cada vez mais gráfico e irrelevante): o que o leitor acompanha é o aprofundamento da intimidade entre um homem e uma mulher, sem que se anulem certos distanciamentos.

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III

«__Você não é muito jovem pra usar terebintina?—ele baixa os óculos e olha no meu rosto, rindo.

__ Acho que já tenho idade pra usar todo tipo de coisa—sorrio de volta—, esse é o problema».

Espero ter demonstrado, ainda que em pinceladas apressadas, que acompanhar Érica em sua jornada iniciática (feita de volteios, retrocessos e desencantos) é uma experiência que vale a pena. Deixei de lado aspectos que outras abordagens poderão sublinhar (o uso intenso de elementos cromáticos, por exemplo, acompanhando a inclinação artística da heroína), e não quero também me deter muito (mesmo porque não comprometem o resultado), ainda que vá apontá-las, em algumas debilidades, mais na linguagem do que no mundo ficcional apresentado: por exemplo, no (ótimo, no geral) trecho citado na nota 3, sobre as palavras que ela aprendia erroneamente na infância (no qual entrevemos um lado “lúdico” do pai, que tem o seu quê de perverso), é muito difícil de imaginar uma menina de quatro anos falando daquele jeito («Não sabe o que tenho de passar na escola?»); mais grave ainda, a falta de confiança no leitor, ao explicitar o que seriam os “gatos bentos” («O nome correto era documentos»!?).

Outra amostra problemática: elogiei o trecho em que literalmente se constrói diante do leitor uma intimidade homem-mulher, contudo numa passagem imediatamente anterior notamos a necessidade gratuita, até de mau gosto, em “fazer bonito”, apresentando analogias: «… sentei-me em seu colo, de frente pra ele, com os joelhos cravados ao colchão como uma retroescavadeira que o imobilizava...»!?

Mas, por Deus (aquele que não está olhando), ela tem 27 anos! E mesmo com essas pequenas curtocircuitadas do seu talento inegável, afirmo—sem qualquer traço de condescendência—que Débora Ferraz conseguiu criar a legítima sucessora e equivalente daquelas maravilhosas e marcantes personagens em formação que são a Joana, de Perto do coração selvagem e a Virginia de Ciranda de Pedra (embora pudéssemos aproximar Érica mais convincentemente ainda de outra protagonista de Lygia Fagundes Telles, a Raíza de Verão no aquário).

Com a vantagem de que a autora de Enquanto Deus não está olhando não lembra (ufa!) nenhuma das duas, nem Clarice nem Lygia, já nasceu para o romance com voz própria.

ANEXO

(resenha publicada  em A TRIBUNA de Santos, em 17 de novembro de 2015)

“ENQUANTO DEUS NÃO ESTÁ OLHANDO” E A DIFICULDADE DE SER ADULTO

Débora Ferraz já ganhou merecidamente o Prêmio Sesc e agora concorre ao São Paulo de Literatura com seu Enquanto Deus não está olhando, exemplo incisivo de uma voz narrativa produzida por uma mulher e que esfarrapa os bordados da estereotipada (para não dizer famigerada) escrita feminina, colocando-nos no cerne trepidante da modernidade brasileira, com os problemas de classe, de geração e de impasses individuais que são exigências do gênero romance mais do que do gênero que coube ao escritor na espécie humana.

Assim, essa surpreendente ficcionista, com apenas 28 anos, surge para revitalizar o retrato do artista quando jovem, focalizando a formação de Érica como pintora e seus ritos de passagem para a idade adulta, tornados emergenciais por conta do desparecimento do pai. Esse filão me parece fundamental numa época em que as faixas etárias parecem ter se estratificado a tal ponto que chegam a excluir a ideia de desenvolvimento pessoal: ser “teen” ou da “melhor idade” parece mais uma essência, uma qualidade, do que um período da vida modulado por outros.

Portanto, entre suas muitas qualidades (não obstante certa prolixidade), Enquanto Deus não está olhando é um dos raros livros em nossa ficção atual que se propõe a relatar um aprendizado (com todos os desencantos) do modo-adulto de ser— quiçá o mais fugidio na contemporaneidade: «Eu era incapaz de chegar a um lugar e dizer o que queria. Sempre envolvida pelas possibilidades de estar querendo—ou acreditando querer—a coisa errada».

É um ponto nevrálgico, uma vez que, justamente quando o pai se torna uma ausência, ela tem de lidar mais duramente com os procedimentos e protocolos que definem uma existência adulta, processo tormentoso que se complica com a culpa: no momento mesmo em Érica tinha investido a sério na reinvenção da sua existência (aproveitara uma das diversas internações de Aloísio — cujo organismo, aos 47 anos, estava bastante derruído pelo alcoolismo — para reformar a garagem da casa, transformando-a num ateliê), lhe falta a figura paterna. E aí ela tem que lidar com o destino da casa sem o seu “chefe” e com essa materialização incômoda (o ateliê) de um desejo de independência e diferenciação do destino familiar, a «herança de uma tristeza esquecida»: a passagem do ambiente rural (origem de Aluízio) para o urbano criara um “branco” na continuidade do clã, que por falta de referência com relação a vários parentes (é comum o sumiço, sem mais nem menos, sem contar a orfandade), tornou-se uma «imensa linhagem de vácuos».

O romance é dividido em três partes e todo perpassado por uma linha sísmica agônica. Mas com certeira intuição, ela faz com que a primeira parte apresente de forma mais aguda e hipertrofiada esse tom (ou seja, mergulhando o leitor no âmago da crise),  surpreendendo sua heroína numa volta ao lar (na companhia de um amigo com quem perdera o contato por alguns anos, Vinícius), após infrutíferos e exasperantes dias no interior, cheia de cortes, encontrando uma casa que «subitamente tornou-se obsoleta»: mesmo com a presença da mãe e do irmão, e com o ateliê construído, não permite que Érica respire (ela sofre de sinusite renitente). Para o leitor, o vácuo causado pela ausência de Aluísio e o desamparo subsequente de Érica aparecem sinalizados, da forma mais opressiva, pelos sinais físicos gritantes, esses cortes infeccionados e esse desconforto respiratório. Tudo de fato parece emergencial e irresolvível (como ela dirá, mais adiante, «Não sei o que deu errado. Talvez nunca tenha dado certo»).

E Débora Ferraz consegue, assim, em pleno século 21, criar a legítima sucessora e equivalente daquelas marcantes personagens a tatear o tecido da vida adulta, que são a Joana, de Perto do coração selvagem e a Virginia de Ciranda de Pedra, clássicos de Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles.

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VER:

http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php/component/content/article/2-bastidores/1256-sobre-o-uso-de-maquinas-para-fins-de-mundo.html

quadro de dirce körbes[autora: Dirce Körbes}

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NOTAS

[1] Apesar das várias cenas de “bebedeira” (e pensando na ligação com o alcoolismo do pai), não considero esse aspecto do livro muito bem resolvido, é um de seus pontos explorados de forma insatisfatória ou truncada.

[2] Nem por isso, esse determinado espaço urbano deixa de ser aproveitado na narrativa.

[3] Todavia, a relação com o próprio pai era tensa e “armada”, por assim dizer, malgrado certos momentos de ambígua cumplicidade, como podemos constatar numa das mais belas passagens do romance:

«Naquele estado de torpor , entre dormindo e acordada, imaginei que alguém chamava meu nome: Érica.

   Era esse mesmo meu nome?

   Érica.

   Achei, na verdade, o nome muito feio e duvidei, no mesmo segundo, que aquele nome fosse meu. Duvidei que alguém pudesse se chamar assim. Não teria sido, esse nome, uma coisa completamente inventada?

     Quando era pequena meu pai me ensinava errado o nome das coisas: fóscoros, eck cetera. Ficava sempre o receio se tudo o que ele ensinava não estaria completamente errado. Não era só culpa dele. Eu que surgia com nomes improváveis, mas que ele confirmava serem os certos.

__ Gatos bentos?—eu disse, com cerca de quatro anos, talvez menos, apontando uma série de papéis coloridos e plastificados que ele guardava na carteira. Qualquer nome é possível para uma criança. E foi esse o que eu pensei ter ouvido.

 __ Isso! Exatamente. Gatos bentos—confirmou ele e eu me senti importante, esperta. Até que, no dia seguinte, voltei da escola furiosa, nem bem passei pelo portão, larguei a lancheira e fui para o quarto dele.

__ Por que você me ensinou errado?—disse com olhos cheios de lágrimas.—Por que você sempre me faz passar por boba? Não sabe o que tenho de passar na escola?

   O nome correto era documentos. E só eu parecia não saber, entre todas as crianças da minha idade. (…) A professora ficou preocupada com o quanto me constrangi (…)

__ Eu temo…—disse ela à minha mãe—que ela esteja com problemas em casa. Que esteja falando errado, se escondendo, para chamar atenção pra algo.

__ Mas que besteira—foi o que disse meu pai quando soube do comentário.—Tão bonitinho dizer gato bento. É uma criança, ora. Deixem a menina».

A cena mais íntima e cúmplice entre Érica e Aluísio (e ao mesmo tempo, eivada daquele isolamento irredutível entre um ser humano e outro) é a que justifica o título do romance, porém não vou contá-la aqui.

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20/06/2013

James Joyce: o escritor em formação

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“Embora ainda estivesse no primeiro ano, já era considerado uma personalidade e muitos pensavam que apesar de um pouco exacerbadas suas teorias não eram desprovidas de sentido. Stephen raramente assistia às aulas, não apresentava trabalho algum e não comparecia aos exames finais, mas não apenas nada se dizia a respeito de tais extravagâncias como também se supunha que ele deveras representasse o tipo artístico que ele, de fato, era e que, conforme o hábito dessa tribo desconhecida, praticasse o autodidatismo.”

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(resenha originalmente publicada, sem as notas de rodapé, em A TRIBUNA de Santos, em 20 de junho de 2013)

Durante a primeira década do século XX, quando tinha vinte e poucos anos, James Joyce produziu os contos que, publicados somente em 1914, formam a coletânea Dublinenses; por essa época também se dedicava a um imenso manuscrito, Stephen Herói [Stephen Hero], no qual inovava radicalmente uma das linhas mais fortes da ficção europeia, a do romance de formação. Ao contrário de Goethe (o ciclo Wilhelm Meister) ou Keller (Heinrich, o Imaturo), não se tratava de um autor já vivido meditando e recapitulando o aprendizado de um jovem (geralmente, um artista), e sim do próprio autor em formação relatando esse processo enquanto o vivia. E não através de uma mera transposição autobiográfica, como é comum (ainda mais em escritores iniciantes), pois a Joyce pouco interessava o anedótico pessoal (pelo menos, nesse período de composição do romance de estreia), planejando que avultasse o lado “épico” da escolha do destino como poeta (daí o altissonante “herói” do título), “uma inteligência que tanto amava o riso quanto o combate”.

A forma linear adotada revelou-se pouco funcional e Joyce reescreveu todo o material de forma a aglutinar diversas experiências, no passado e no presente, de seu protagonista nos cinco densos capítulos que formam Um retrato do artista quando jovem, publicado em 1916, encerrando a fase inicial da obra joyceana.

O leitor brasileiro poderá usufruir belas versões desses três marcos do “primeiro Joyce” na Joyce Box da editora Hedra, composta pelas traduções de Dublinenses e Stephen Herói (este, até então inédito por aqui) realizadas por José Roberto O´Shea, e a nova e surpreendente versão de Um retrato do artista quando jovem, por Elton Mesquita.

Joyce morreu em 1941, com a aura de maior e mais ousado escritor de sua época. Três anos depois, publicou-se Stephen Herói. Apesar de alguns poucos acréscimos em razão do aparecimento de outros trechos, até hoje seu estado é de um longo fragmento que sobreviveu aos inúmeros deslocamentos da família Joyce, começando no meio do capítulo 15 (e mesmo assim, logo a seguir faltam duas páginas, e depois é que começa uma leitura mais regular) e terminando após algumas páginas do capítulo 26. Os onze capítulos representam cerca de um terço do material original.

O leitor habitual desta coluna sabe que eu tenho horror a “achados de especialistas”, fragmentos póstumos de obras que não foram consideradas dignas de publicação pelo autor quando vivo. E realmente, no estágio em que se encontrava a redação de Stephen Herói, seu criador fez muito bem em deixá-lo de lado e reescrever tudo com outro método (o que resultou numa de suas obras-primas). A narrativa é frouxa; a estrutura, informe (mesmo dentro dos capítulos sequenciais que sobreviveram); o estilo,  muitas vezes aborrecido. Ainda sim, é um caso defensável de publicação póstuma, pela riqueza bruta ali contida e pelo que apresenta de revelador da verdadeira formação de Joyce, no amplo sentido do termo.

No capítulo 15 o encontramos no primeiro ano da universidade, sofrendo as agruras da pobreza (sua família foi progressivamente arruinando-se), a tacanhice do seu meio, ainda mais por injunções religiosas (além do catolicismo onipresente, ele estuda numa instituição jesuítica). Ademais, ele rejeita o patriotismo exacerbado, que condena o uso da língua inglesa, e exige o estudo e a prática do gaélico, a “autêntica língua nacional”. Esse ponto era tão problemático para Joyce, que será um dos motivos centrais de uma de suas obras-primas (escrita aos 25 anos), Os mortos (que figuraria posteriormente como o último conto de Dublinenses). Ali, o protagonista, Gabriel Conroy, colaborador de um jornal inglês, é admoestado por uma companheira de geração, miss Ivors, que o xinga de “anglófilo”:

“__Você não precisa praticar o seu próprio idioma, o irlandês?

__ Bom, disse Gabriel, a bem da verdade, o irlandês não é o meu idioma.”[1]

Em Stephen Herói acompanhamos o percurso de perda de fé do protagonista (que rende uma cena pungente com a mãe[2]), sua procura de companheiros intelectuais que fujam das limitações provincianas (isso ainda aparecerá em Ulisses, onde Stephen também é um dos personagens principais), e a concepção de uma teoria sobre arte, a partir da sua admiração por Ibsen, o grande dramaturgo de Um inimigo do povo, Casa de Bonecas e Peer Gynt, que, a essa altura, para Stephen-James Joyce era o Dante da nossa época, afirmação escandalosa para um ambiente dominado por padres e por interditos morais.

Um dos grandes incidentes do livro é a leitura de um ensaio escrito pelo jovem herói para expor suas ideias estéticas, e que é combatido e ridicularizado quase da mesma forma como foram recebidas as primeiras conferências psicanalíticas de Freud. Entre essas ideias, uma se destaca e subverte o estereótipo de Joyce como mero vanguardista e experimentador linguístico (uma concepção que ainda vige, infelizmente). Ele opta por ser um artista “clássico”: “O classicismo não é o estilo de uma era determinada ou de um país determinado: é um estado constante da mente artística. É um temperamento que mescla segurança, satisfação e paciência”. Tendo em vista a carreira posterior desse gênio da literatura, trata-se  de um (auto)diagnóstico pra lá de exato.

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[1] Em Stephen Herói, lemos: “O grito de alerta era Fé e Pátria, palavras sagradas naquele mundo de entusiasmos engenhosamente inflamáveis.” Madden, camarada do protagonista, procura justificar para ele essa proximidade entre nacionalismo e religião: “Se a menor infidelidade fosse elevada as pessoas se afastariam e por isso os mentores desejavam tanto quanto possível, trabalhar de braços dados com os sacerdotes. Stephen expressou a objeção de que esse trabalho de braços dados com os sacerdotes tinha diversos vezes arruinado as chances de revoluções. Madden concordava: mas ao menos agora os sacerdotes estavam do lado do povo.

__ Você percebe—disse Stephen—que eles incentivam o estudo de irlandês para que os rebanhos possam ser protegidos dos lobos da descrença; eles acham que isso propicia uma oportunidade para isolar o povo num passado de fé literal, implícita?

__ Mas na realidade o nosso camponês não tem o que ganhar com a Literatura Inglesa.

__ Asneira!

__ Ao menos, a moderna. Você mesmo está sempre se queixando…

__ O inglês é o veículo para o Continente.

__ Nós queremos uma Irlanda irlandesa.

__ Acho que você não se importa que um sujeito expresse banalidades desde que o faça em irlandês.

__ Eu não concordo muito com as suas ideias modernas. Nós nada queremos dessa civilização inglesa.

__ Mas a civilização de que você fala não é inglesa… é ariana. As ideias modernas não são inglesas; apontam o caminho de uma civilização ariana.

__ Você quer que os nossos camponeses imitem o materialismo grosseiro do camponês de Yorkshire?

__Parece até que o país é habitado por querubins. Que diabo! Eu é que não vejo grandes diferenças entre camponeses: para mim, todos se parecem, como um grão de ervilha se parece com outro grão de ervilha. Talvez o camponês de Yorkshire seja mais bem nutrido.”

Mais adiante:

__ Mas, seguramente, você tem opiniões políticas, homem!

__ Vou pensar a respeito. Eu sou um artista, você não percebe?”

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[2]  “__ Nunca pensei—disse a mãe—que a coisa chegaria a este ponto… que um filho meu perderia a fé.

__Mas a senhora já sabe disso há algum tempo.

__ Como eu poderia saber?

__ A senhora sabia.

__ Eu desconfiei que algo estivesse errado mas nunca pensei…

__ E mesmo assim a senhora queria que eu recebesse a Santa Comunhão!

__ É claro que agora você não pode comungar. Mas eu achei que você fosse cumprir o seu dever de Páscoa, como tem feito todos os anos até agora. Não sei o que o desviou, a menos que tenham sido aqueles livros que você lê (…) Você foi educado por jesuítas, num lar católico…

__ Lar muito católico!

__ Nenhum dos seus antepassados, seja do lado do seu pai, seja do lado do meu, tem nas veias uma gota de sangue que não seja católica.

__Bem, eu serei o primeiro da família.

__ Isso é resultado de excesso de liberdade. Você faz o que quer e acredita no que quer.”

Anteriormente, ele conseguira uma efêmera (mas equívoca) cumplicidade com ela, levando-a à leitura das peças de Ibsen:

“__ Bem, você sabe, Stephen, seu pai não é como você: ele não se interessa por esse tipo de coisa… Ele me disse que quando era jovem costumava passar as horas vagas caçando ou remando no Lee. Gostava de esportes.

__ Eu acho que sei do que ele gostava—disse Stephen com irreverência—Sei que ele não dá a mínima importância ao que eu penso ou escrevo.

__ Ele quer vê-lo encaminhado, subindo na vida—disse a mãe, defensivamente—É isso que ele ambiciona. Você não deve culpá-lo por isso.

__ Não, não, não. Mas talvez não seja a minha ambição. Eu abomino esse modo de viver: considero-o repulsivo e covarde.

__ Evidentemente, a vida não é o que eu achava que eu era quando menina. É por isso que eu quero ler algum grande escritor, para ver o ideal de vida que ele propõe… não estou certa em dizer ´ideal´?

__ Sim, mas…

__ Por que, às vezes… não que eu me queixe do legado que Deus Todo-poderoso me concedeu e à minha vida com o seu pai é mais ou menos feliz… mas, às vezes, tenho vontade de deixar essa vida e embarcar em outra… durante algum tempo.

__ Mas isso está errado: esse é o grande erro que as pessoas cometem. A arte na é uma fuga da vida! (…) É exatamente o oposto. A arte, ao contrário, é a expressão central da vida. O artista não é um sujeito que fica balançando um céu mecânico diante do público. O padre faz isso. O artista faz afirmações a partir da plenitude da sua própria vida; ele cria… A senhora está entendendo?

   E assim por diante. Um ou dois dias mais tarde Stephen entregou à mãe algumas peças. Ela fez a leitura com grande interesse e achou Nora Helmer uma personagem encantadora. Admirou o dr. Stockman mas tal admiração foi naturalmente reprimida pela descrição alegre e blasfema feita pelo filho (…) Mas sua peça predileta tinha sido ´O pato selvagem´ (…)

__Eu concordo com você que Ibsen é um autor maravilhoso.

__ De verdade?

__ Sim, de verdade. As peças dele me impressionaram muito.

__ A senhora acha que ele é imoral?

__ É claro, você sabe, Stephen, ele aborda questões… que eu praticamente desconheço… questões…

__ Questões que a senhora acha que não devem ser discutidas?”

james_joyce

16/07/2010

A missão do teatro para Wilhelm Meister

(no texto abaixo, fiz a sobreposição de duas resenhas, uma publicada em 13 de dezembro de 1994, ano em que a tradução de Nicolino Simone Neto foi lançada pela primeira vez pela editora Ensaio; a outra, de  13 de janeiro de 1997,quando a mesma tradução foi reeditada pela 34. Como esse procedimento era comum em Goethe, trabalhar sobre versões antigas, não me pareceu a pior das soluções, guardadas as devidas proporções):

UMA NOVA FORMA DE QUIXOTISMO

O Dom Quixote de Cervantes saiu pelo mundo imbuído dos valores medievais e encontrou-o transformado, mas ele mesmo recusou-se a mudar interiormente, preferindo modificar o mundo dentro da sua cabeça. Assim, os moinhos de vento da produção mercantilista viraram dragões.

Wilhelm Meister sai de casa e encontra o mundo burguês estabilizado, ou melhor, ainda pujante e cheio de promessas. Ele acalenta um ideal  mais alto, porém, do que a vida burguesa, e ensaia uma inédita (e revolucionária) forma de quixotismo: a expressão individual pela arte, que modifica o mundo sem a neblina da loucura. É por isso que ele, ao viajar com o fito de  cobrar dívidas comerciais para o pai (e esquecer um frustrado e precoce caso amoroso com uma atriz), acaba unindo-s a uma trupe de artistas e fundando uma companhia teatral cuja missão é criaro  autêntico teatro nacional alemão, com base nas conquistas que a obra de Shakespeare trouxe à arte cênica, colocando o máximo de vida no palco, em contraste com a restritiva arte clássica.

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister trata dos diversos incidentes (assaltos, cirandas amorosas, etc) que envolvem o destino dessa companhia teatral [1]. A tradução de Nicolino Simone Neto (um marco para os apreciadores de  J. W. Goethe no Brasil e que achavam que só Werther e Fausto existiam para os editores daqui), que fora publicada, em 19 94, pela  Ensaio, reapareceu recentemente, agora  pela  34.

O livro exerceu uma influência imensa e praticamente criou um caminho dentro da ficção: o romance de formação. Entre os grandes autores que se valeram dessa vereda no grande sertão do gênero estão James Joyce (Um retrato do artista quando jovem), Thomas Mann (A montanha mágica), Romain Rolland (Jean-Christophe), Hermann Hesse (O jogo das contas de vidro) e Doris Lessing (Os filhos da violência).

No livro de Goethe existe o entrelaçamento do individual com o nacional, dentro do microcosmo que é o mundo da companhia teatral, no qual o leitor vai registrando o amadurecimento de Wilhelm (há uma seqüência, Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister), adquirindo experiência de vida, enfim, formando-se. Acima do “teatro”, ou seja, o meio onde se conflitam pessoas com suas mesquinharias e vaidades, há o Teatro, a aspiração maior, o grande palco do mundo. Mesmo porque a vida também é, a um só tempo, um palco de aspirações egoístas e de grandes ideais.

Isso parece idealista demais? Distante demais ? É verdade. Algo sempre  me incomodou na leitura de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  e causava um sentimento de distanciamento que não acontece na leitura de Cervantes ou, para ficar no século XVIII, de Voltaire, Diderot ou Sterne [2]. Como escreveu lucidamente Marco Fontanella: “Francamente, quem hoje lê Meister com prazer e proveito até o fim ? O leitor contemporâneo tem sérias dificuldades com as artificialidades e a inessencialidade evidentes na enigmática Sociedade da Torre e com seus ideais políticos; a morte do harpista italiano e da filha de seu incesto, Mignon, e o amor não-consumado de Wilhelm e Natalie freqüentemente provocam revolta ou mesmo tédio: como é possível que uma sociedade secreta subitamente passe a determinar toda a vida do herói e sentencie a criança e se pai à morte apenas com base na dificuldade em se adaptarem aos novos tempos do trem a vapor, à vida moderna? Eis aí algo das dificuldades do romance.”

O problema é que justamente o conceito do artista trazer ao mundo sua autenticidade (aliado ao conceito da formação plena do ser humano), aproveitando a imensa (e teórica) liberdade que a burguesia trouxe ao indivíduo, envelheceu, caducou, carcomiu-se. E há a questão do herói do romance, pois Wilhelm parece um bocó, e sempre pomposo em demasia.

É um problema de percepção: dois séculos e uma década bastaram para mostrar no que deu a expansão burguesa. Nada tira, entretanto, do livro de Goethe o poder de registro de um momento em que os caminhos ainda pareciam abertos e em que o ideal de arte era potencialmente transformador  [3].


[1] Na versão de  1994, eu escrevi: …é—na área das traduções literárias—de longe o lançamento mais importante de 1994 (e embora tenha demorado duzentos anos para ser traduzido pelo menos ganhou uma bela edição, muito bem cuidada, além da excelente tradução  de Nicolino Simone Neto), não só porque o autor de Werther & Fausto é um dos grandes gênios da literatura, como também porque essa obra exerceu influência imensa e praticamente criou uma forma romanesca, o romance de formação: esse tipo de ficção mostra o desenvolvimento, a “educação sentimental” (leia-se existencial) de um protagonista.

       Entre os grandes autores que se valeram  do caminho aberto por Goethe não houve nenhum mais ilustre do que James Joyce e seu Retrato do artista quando jovem, mas pode-se citar Thomas Mann, Hermann Hesse, Doris Lessing (no ciclo sobre Martha Quest). No Brasil, recentemente Autran Dourado lançou Um artista aprendiz dentro dessa linha.

 

[2] Na versão anterior: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister está longe de ter o encanto, de ser uma obra apaixonante e de fruição agradável—apesar do abismo de dois séculos—de dois outros maravilhosos romances da época, Jacques, o fatalista, de Diderot, e Tristram Shandy, de Laurence Sterne, para não falar dos contos longos de Voltaire. 

[3]  Na versão anterior:  É um problema de percepção: dois séculos depois, sabemos no que deu a expansão burguesa e estamos mais para a Idade Média do que para o Iluminismo. Estamos num mundo que um Ítalo Calvino—em obras como Palomar—precisa reeducar, para utilizarmos nossos sentidos, e no qual uma Doris Lessing—nas suas obras sobre impérios galácticos, como Shikasta & As experiências de Sirius—tenta nos levar a uma percepção maior, a um Teatro ainda maior, da vida e do universo do  que a do nosso mero planetinha. Nada tira, contudo, do livro de Goethe o poder de registro de um momento em que os caminhos ainda estavam abertos e em que o ideal da arte não  havia sido corrompido  pela indústria cultural, o que não é, absolutamente culpa de Goethe, mas sim da própria  lógica social que ele ajudou a criar.

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