MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

10/11/2015

OS MANSOS HERDARÃO A TERRA?: Marcelo Maluf e a imensidão íntima dos carneiros


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«A alma em carne viva

 é o fardo obscuro da casa,

 sem peso, sem medida,

 sem sombra nem luz.

 Geometria sem saída

 no ventre ou no túmulo,

 onde moram

 os fetos e os afetos

não nascidos.

Dançam de mãos dadas

 a minha covardia e a minha coragem»

(trecho de um poema de Adib, irmão de Assaad)

[uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de novembro de 2015]

«Pois o inverno é a vigília do tempo, é o segredo do que virá. É o gesto de compaixão da terra para com os seres que nela habitam. O inverno é a medida de nossa permanência e logo concluímos que sem o cuidado mútuo somos mais frágeis que as asas de uma borboleta. Aprendo a ter gratidão pelo Criador que me deu esses pelos e o inverno me traz mansidão. Um carneiro quando sabe disso está pronto para viver a sua vida, para compreender a imensidão que carrega em seu íntimo».

A mansidão, até pela acepção bíblica de que se beneficiou («Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra», lemos em Mateus 5:5), pode ser uma virtude (rimando com a “íntima imensidão”, vida interior fecunda) ou uma falta, vinculada a um histórico de vitimização, a uma longa sina familiar de bodes expiatórios, como acontece em A Imensidão Íntima dos Carneiros (Ed. Reformatório), de Marcelo Maluf. E pode ser também rompida por um ato de violência (que se torna um segredo pessoal), nem por isso libertador.

Libanês das montanhas de Zahle, Assaad—cuja família é cristã, embora ele se aproxime dos ensinamentos do Alcorão— foge para o Brasil, após seus irmãos serem massacrados por turcos e de seu sorrateiro ato de revolta contra a mansidão[1]. Fixa-se em Santa Bárbara D’Oeste. Será nos últimos meses de sua existência, como comerciante próspero, porém interiormente conturbado[2], em meados dos anos 1960, que o espírito de narração, por assim dizer, do neto—o qual não chegou a conhecê-lo—se aproximará dele, espreitando-o, tentando decifrar os rumos e o entrançado do sangue (família é destino?), justamente a partir da figura geracional que se reinventou em outro mundo: «agora ao seu lado, assistindo-o escrever suas memórias, dou início a sua e a minha absolvição, porque também eu carrego essa culpa. A culpa por não ter impedido os soldados turcos de matarem os seus irmãos. Mas como eu poderia? Mesmo assim, ainda sinto essa culpa correndo em meu sangue, esse colesterol genético. Essa gordura»[3].

A narrativa pode aproximar “em espírito” os dois porque Maluf resgata a milenar maneira árabe de contar histórias, rompendo limites estritos entre espécies e seres (a tradição ocidental não tinha esses diques, o realismo e a necessidade de verossimilhança acabaram contaminando a literatura que levamos “a sério”), usando uma técnica de encaixes (de historietas e provérbios); assim, os animais falam e os humanos metamorfoseiam-se.

Os carneiros do título estão presentes em todos os níveis (ligados aos quatro elementos)[4], do realista—pois são o ganha-pão ancestral— ao onírico (aparecem nos sonhos do neto). Têm papel-chave em termos de fábula, e da boca de um deles saem as “morais da história”, os motes de sabedoria imemorial (como a de que os mansos herdarão a terra) equacionando-os problematicamente com o fundo alegórico desse papel cíclico de “carneiro”, de pharmakos: o medo inoculado na sucessão das gerações.

Quer dizer, um problema para a vida dos que assumem a tarefa de contar a história. No plano da realização literária, principalmente no trato da prosa, eles herdam a terra, pois é muito difícil imaginar os prêmios referentes a 2015 sem este belo romance de estreia estar entre os indicados. Só uma maldição familiar explicaria sua ausência.

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TRECHO SELECIONADO

«Na noite em que se casou, Assaad viu uma estrela cadente e se lembrou do que dizia sua tia Zakiya: “Uma estrela cadente é um segredo que se guarda para sempre nos olhos, pois eles contemplaram o último sopro de uma luz”. Essa frase esteve presente na família como uma máxima que repetíamos todas as vezes que víamos uma estrela cadente. “Quem foi mesmo que disso isso?”, perguntávamos uns aos outros. Esquecíamo-nos da autoria. Essas palavras tinham o mistério necessário para que se transformassem em uma citação recorrente.

Assaad não fez nenhum pedido naquela noite. Apenas ficou durante toda a celebração do casamento com as palavras de tia Zakiya dançando em sua mente. E vagavam: olhos que contemplaram, sopro de luz, segredo que se guarda, para sempre, o último segredo, sopro de segredo, luz nos olhos, luz que se guarda. Quando as palavras pararam de brincar, Assaad já estava casado com Karima.

O cheiro da berinjela queimando desvia a minha atenção de Assaad e me volto para a minha avó na cozinha. Ela prepara o tabule e lava as folhas de alface. Aproximo-me do seu rosto e vejo que os seus olhos são da cor caramelo. Creio que nunca havia antes olhado de tão perto para os olhos de Karima. Vejo as primeiras rugas se formando. Karima tem medo que Assaad não a deseje mais como mulher, que esteja ficando velha para ele. Ela aperta a faca em suas mãos e por um instante fica em suspensão, a admirar um ponto de luz que invadiu a cozinha. Eu gostava de visitá-la para comer as balas de goma que sempre ficavam dentro de um pote de vidro, em cima da mesa da sala. Lembro-me de quando menino ouvir Karima gritar: “Michel, vê se dá um jeito nessas crianças!”. Corríamos em volta de sua cadeira e escapávamos pelos vãos.

 Quando Karima morreu, em 1985, eu tinha 11 anos de idade e foi a primeira vez que conheci alguém cuja vida expirou. Chorei em seu velório ao imaginar que um dia também os meus pais morreriam. O rosto velho de minha avó no caixão me trazia alívio, eu pensava que só quando a pele murchasse de vez é que a morte poderia dizer: aqui estou. O que mais tarde eu descobri se tratar de uma deslavada mentira da existência.

Mas aqui, no ano de 1966, Karima é outra e o cheiro de sua comida invade toda a casa. Sua voz não é frágil como me lembrava, nem suas mãos tão rugosas. Karima parece mais alta. Grita alguma coisa em árabe para Assaad. Vejo que ele responde, também em árabe, e permanece imóvel. Ela torna a gritar e Assaad coça a cabeça e pega o caderno. Mas não responde. Prefere abafar a voz de Karima rabiscando círculos nas folhas em branco. A voz de Karima se perde de vez e Assaad se vê agora na aldeia em que nasceu, em Zahle, no Líbano. Os círculos vão cedendo lugar às palavras ».

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NOTAS

[1]« Exaltados, alguns gritavam: “Morte aos turcos!”. Outros diziam que o problema era o profeta Maomé. Eu me lembrei de Abdul-Bassit, que havia dito que vivia em paz e em oração, em nome do profeta. Assim como ele, o pai também orava. Abdul-Bassit jamais mataria os meus irmãos. Não, ele não seria capaz. Abdul-Bassit havia me salvado de congelar na neve. Abdul-Bassit havia me contado histórias.

“A culpa não é do profeta!”, eu gritei.

 O silêncio se propagou pelo quintal e penetrou o ventre de minha mãe. Com um punhado de terra nas mãos, cavoucadas na hora com brutalidade, ela encheu a minha boca e pressionou os meus lábios contra as suas mãos até que eu engolisse todo o conteúdo.

 “Coma a terra, meu filho. Coma!” Ela ordenava. “Essas palavras devem voltar de onde vieram.” ».

[2] «Assaad não tem intimidade com as palavras, prefere as cambraias, as sedas, o algodão e o tule. É mascate. As folhas em branco esperam o momento em que suas lembranças possam descansar no papel e, quem sabe, curá-lo de tanto sofrimento».

[3] Em outro trecho: «Eu terei de Assaad apenas vestígios. Relâmpagos de histórias. Abaixo dos meus músculos habita um sentimento de ausência, a falta de um lugar para apoiar os meus pés, um modo de viver sempre em suspensão, entre o céu e a terra, sem reconhecer um território que seja meu. Talvez por isso eu esteja aqui, para tentar compreender por que Assaad guardava tantos segredos. Não. Não é nada disso. Não estou aqui por Assaad. Estou aqui por mim mesmo.».

[4] O romance é dividido em quatro partes: “O vento”, “A montanha”, “O fogo”, “O oceano”.

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