MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

16/12/2014

“Michael Kohlhaas” e a mentira convertida em ordem universal


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“… Lutero enviou ao príncipe eleitor da Saxônia uma carta na qual revelava ao soberano, depois de uma amarga menção aos senhores Fulano e Beltrano, camareiro e copeiro de Wenzel von Tronka[1], que se encontravam à volta de sua pessoa e que havia, conforme todo mundo sabia, desconsiderado sem mais a queixa, usando da franqueza que lhe era característica, que, sendo tão terríveis as circunstâncias, não restava outra coisa a fazer a não ser aceitar a sugestão do comerciante de cavalos e lhe conceder anistia pelo que havia ocorrido, retomando seu processo. A opinião pública, observou ele, estava do lado daquele homem de um modo altamente perigoso (…) as coisas facilmente poderiam escalar a um grau em que nada mais se conseguiria fazer usando apenas o poder do Estado. Concluiu dizendo que nesse caso extraordinário era necessário deixar de lado os escrúpulos de não negociar com um cidadão do Estado que apelara às armas, que o mesmo de certo modo havia sido colocado fora dos vínculos estatais através do procedimento que lhe havia sido imposto; e que, em resumo, para sair da questão, seria necessário considerá-lo antes uma força estrangeira que atacara o território, o que aliás parecia adequado na medida em que se tratava de fato de um estrangeiro, e não de um rebelde que se levantara contra o trono.”

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de dezembro de 2014)

No ano em que sua versão cinematográfica é exibida no Brasil, Michael Kohlhaas (1810) ganhou duas novas traduções: a de Marcelo Backes (Civilização Brasileira) e a de Marcelo Rondinelli (Grua).

A novela de Heinrich von Kleist (que se suicidou aos 34 anos, em 1811) tem como protagonista “um dos homens mais honestos e terríveis da sua época”[2] (o século XVI). Ao tentar atravessar, como sempre fizera, a propriedade do fidalgo Wenzel von Tronka, o comerciante de cavalos é surpreendido com a exigência de documentos, deixando como penhor dois animais (com um servo). Descobrindo, em Dresden, que fora enganado, ao voltar constata que seu servo fora ignominiosamente expulso e que seus belos cavalos foram usados (de uma maneira que os depauperou) no arado. Não obtendo satisfação do fidalgo, primeiramente ele tenta as chamadas vias legais com petições rejeitadas após longa demora (o judiciário é controlado por parentes de Von Tronka, cortesãos chegados ao Príncipe da Saxônia); quando começa a se impacientar, sua leal esposa toma as rédeas do assunto, com resultados fatais; daí então, vendendo suas propriedades e colocando os filhos sob proteção, Kohlhaas se torna um chefe justiceiro, espalhando o terror.

Kleist delineia o paradigma supremo de um comportamento recorrente, que podemos conferir em Coração Valente ou na série Desejo de Matar (com Charles Bronson), ou em todas as manifestações que mexeram com o nosso país (e outros países) em tempos recentes[3]: a exigência da justiça, do cumprimento da lei, através de uma ação que não se conforma com o moroso (e sobretudo tortuoso) protocolo judiciário, e que por isso invariavelmente descamba para o banditismo e para a violência: a pretensa ordem social é posta em questão, e o protesto acrescenta mais um elemento ao caos[4]. Kohlhaas começa, ele próprio, a afixar mandados em que determina a entrega do fidalgo fujão (depois que o vingador arrasou seu castelo) e congrega atrás de si uma multidão de descontentes e desocupados, muitos deles dignos do epíteto “escória”—aliás, um dos asseclas prejudicará muito a causa do comerciante.

Se o lado épico do relato (o assalto de Kohlhaas a vários burgos e seus informes à população, baseados no seu direito à reparação, ele colocando o mundo pelo avesso) já é possante, o momento em que o herói (de caráter complexo), graças ao salvo conduto, negociado por Lutero e que garante sua liberdade (e que no entanto lhe será de precária valia), permanece em Dresden novamente aguardando por uma ratificação oficial e judicial dos seus prejuízos, alça Michael Kohlhaas a uma das maiores obras-primas já escritas. Um tanto porque a exigência do “homem honesto e terrível”, da maneira como dá azo a trâmites bizarros (e incidentes narrativos inesquecíveis), beira o absurdo (no que este tem de cômico e inquietante): ele quer os mesmos cavalos que deixara com o fidalgo, devolvidos ao seu estado físico original; e outro tanto porque cada vez fica mais claro que, no presumível estado de direito, “a mentira se converte em ordem universal, como formulou um admirador incondicional de Kleist, Franz Kafka, um século depois (em O Processo).[5]

   Exemplo de absurdo também é a atitude do Príncipe da Saxônia: deixando a administração dos negócios públicos tornar-se insustentável e arbitrária, à mercê da incúria e da injustiça de cortesãos intrigantes e ciosos dos seus privilégios, sua obsessão é recuperar o vaticínio de uma cigana sobre o futuro da sua linhagem nobre, e que foi parar na mão de Kohlhaas. A tentativa de entrever os caminhos da Providência acrescentando outra pitada de tempero ao desconcerto do mundo.

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TRECHO SELECIONADO

“Entrementes, o príncipe eleitor da Saxônia, entregue a seus pensamentos lastimáveis, havia convocado dois astrólogos, chamados Oldenholm e Olearius, que eram muito respeitados na Saxônia na época, e pedido seu conselho acerca do conteúdo do misterioso bilhete, tão importante para toda sua estipe e sua descendência; os homens, depois de uma investigação profunda, que durou  vários dias, na torre do castelo de Dresden, não conseguiram entrar em acordo sobre se a profecia dizia respeito a séculos tardios ou se referia aos tempos atuais, e se talvez a coroa polonesa, com a qual as relações continuavam assaz hostis, estava incluída nos termos e assim, devido àquela disputa entre sábios, em vez de amenizar a inquietude, para não dizer o desespero em que se encontrava o infeliz soberano, apenas tornou o sentimento ainda mais agudo, fazendo-o aumentar a um grau que era totalmente insuportável para sua alma (…) o príncipe eleitor, o coração cheio  de desgosto e arrependimento, foi se trancar em seu quarto como alguém que estivesse completamente perdido, e lá ficou durante dois dias, cansado da vida, sem tomar qualquer alimento, até que no terceiro dia depois de um breve anúncio  ao palácio do governo de que viajaria até o príncipe de Dessau para caçar, desapareceu de Dresden repentinamente. Para onde ele foi, e se de fato chegou a ir a Dessau, deixaremos em aberto, na medida em que as crônicas a partir das quais contamos, comparando-as, nesse ponto se contradizem e se anulam de modo bem estranho.”

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NOTAS

[1] Acredito haver um erro de revisão nessa passagem: Fulano e Beltrano são camareiros da Corte e não do fidalgo Von Tronka, seu parente.

[2] Utilizo a tradução de Backes, contemplada com o Prêmio Paulo Rónai, pela Biblioteca Nacional.

[3] Reconheço que são exemplos desencontrados e arbitrários, mas todos podem evocar outros.

[4] Conforme (no Posfácio de sua tradução) nos diz Marcelo Backes “…Kohlhaas é, antes de mais nada, um John Locke obrigado a pegar em armas, um filósofo liberal de espada na mão. Abandona o pacto social, que não lhe concede a satisfação legal que lhe é devida, e busca o direito natural do ser humano.”

[5] Ainda seguindo a linha de argumentação de Backes, “…Seu caso [o de Kohlhaas] desde o princípio não tem saída, e em determinado momento as coisas inclusive começam a andar por si...”,  mostrando que o imperativo épico (a necessidade e a possibilidade de ação de um herói) já se encontra ferido de morte, o que desaguará nas fábulas kafkianas.

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1 Comentário »

  1. Republicou isso em reblogador.

    Comentário por AntimidiaBlog — 16/12/2014 @ 14:10 | Responder


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