Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco,
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na
sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las
pro chão, corrompê-las
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
usá-las como quem usa brincos.
(de Arranjos para assobio, 1980)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de novembro de 2014)
“Bom era/ser como o junco/no chão: seco e oco./Cheio de areia, de formiga e sono./Ser como pedra na sombra (almoço de musgos)/ ser como fruta na terra, entregue/aos objetos…”
Foi já quarentão que o recém-falecido — aos 97 anos — Manoel de Barros chegou às formulações poéticas na feição que o tornaram tão querido, no seu quarto livro (estreou em 1937, com Poemas concebidos sem pecado[1]), Compêndio para uso dos pássaros (1961). A popularidade imensa de que desfrutava viria bem mais tarde, na esteira de O guardador de águas (1989), com o qual iniciou uma prolífica (às vezes repetitiva e diluidora) produção provecta, com títulos famosos como O livro das ignorãças, Livro sobre nada (onde lemos: “Nasci para administrar o à toa/o em vão/o inútil” e “Senhor, eu tenho orgulho de ser imprestável!”[2]), Retrato do artista quando coisa ou Memórias inventadas.
Os treze poemas de Compêndio para uso dos pássaros se organizam em duas partes. Na primeira, ele orquestra visões infantis sobre as coisas e os seres, e pela primeira vez, pelo menos nesse grau de intensidade, as imagens inusitadas que o consagraram como um dos nossos maiores criadores de poesia (não confundir com a associação regressiva de uma suposta autenticidade com o apego ao mundo rural, como certa apropriação piegas de sua obra sugere).
Se em Poesias (1956) lemos estes bonitos e convencionais versos, “Ah como é bom a gente ter infância!/Como é bom a gente ter nascido numa pequena cidade/banhada por um rio./Como é bom a gente ter jogado futebol no Porto de Dona/ Emília, no Largo da Matriz/ E se lembrar disso agora que já tantos anos são passados”, aqui nos deparamos com: “O menino caiu dentro do rio, tibum/ ficou todo molhado de peixe”, “Meu bolso teve um sol com passarinhos”, ou seja, a força anímica e mesmerizante das águas, dos pássaros, das árvores, dos peixes, num moto contínuo, as identidades quase permutáveis: um lambarizinho “se beijou todo de água”, “vi um rio indo embora de andorinhas”, “na areia tem raiz/ de peixes e de árvores”. E em vez do óbvio “como é bom a gente ter infância”, uma topografia lírica inusitada: “O córrego ficava à beira/de um menino”.
É temerário escolher qual o mais bonito e seminal entre os poemas mais longos (na verdade, aglutinação inspirada de pequenas unidades), “Poeminhas pescados na fala de João”, “A menina avoada”, O menino e o córrego”, ainda que essa primeira parte se encerre com os breves “Noções sobre João-Ferreiro” (“Seu caminho consiste para um esvoo rente/ rente até o chão ervar-se/ de seu corpo”) e o soneto “Um bem-te-vi”.
Na segunda, os poemas são mais concisos, e a mirada, adulta, perseguindo evocativamente “um rumo/ nem desconfiado”, no qual as madrugadas trazem “estes começos de coisas/indistintas:/ o que a gente esperou dos sonhos/ os cheiros do capim/ e o berro dos bezerros/ sujos a escamas cruas…”. O fecho não poderia ser mais perfeito, com “Um novo Jó”, do qual retirei os versos que abrem esta resenha, e cuja epígrafe, de Jorge de Lima, encerra todo um projeto: “como conhecer as coisas senão sendo-as?”
A que alturas andava esse objetivo de “ser as coisas”, vinte e cinco anos atrás, quando Barros, no limiar da sua fama tardia, lançou O guardador de águas? Nele, combinam-se poemas de várias páginas, versos longos e de forte teor narrativo com desenhos, versos breves e aforismáticos, todos explorando “nadifúndios” (“Não tenho bens de acontecimentos”), “Coisas/ Que ele apanhava nas ruínas e nos montes de borra de/ mate (nos montes de borra de mate crescem abobreiras/ debaixo das abobreiras sapatos e pregos engordam…)/ De forma que recolhia coisas de nada, madeiras, falas/ de tontos, libélulas — coisas / Que o ensinavam a ser interior, como silêncio/ nos retratos”.
E qual efeito guardar águas acarretou para a dicção poética?: “A água passa por uma frase e por mim./ Macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos./ A boca desarruma os vocábulos na hora de falar/ E os deixa em lanhos na beira da voz”. Talvez a súmula se encontre nestes versos: “Ai frases de pensar!/ Pensar é uma pedreira. Estou sendo./ Me acho em petição de lata…”[3]
Viver é calejar-se, gastar-se, desencantar-se. Mas numa equação (que pesco no Compêndio, que me parece uma ótima introdução ao singular universo do poeta mato-grossense) proposta por Manoel de Barros é possível a transfiguração do cansaço existencial pelo lirismo radical: “Hoje sofro de gorjeios/ nos lugares puídos de mim”.
TRECHOS SELECIONADO
A MENINA AVOADA
I
Vi um pato andando na árvore…
Eu estava muito de ouro de manhã
perto daquele portão –
Veio um gatinho debaixo de minha
janela ficou olhando para meu pé rindo…
Então eu vi iluminando em cima de
nossa casa um sol!
E o passarinho com uma porcariinha
na boca se cantou.
Fiquei toda minada de sol na minha boca!
II
Quis pegar
entre meus dedos
a Manhã.
Peguei vento.
Ó sua arisca!
Nas ruas do vento
brincavam os passarinhos
perto de meu quarto
junto do pomar.
Estes passarinhos
sempre eram fedidos a árvores com rios
que eles traziam da mata
antes de chover.
III
Manhã?
Era eu estar sumida de mim e todo-mundo
me procurando na Praça
estar viajando pelo chão
que a água é atrás
até ficar árvores
com a boca pendurada para os passarinhos…
(…)
VI
Você brincou de mim que uma borboleta
no meu dedo tinha sol?
Você ia pegar agora
o que fugiu de me rosto agora?
Na beira da pedra aquele cardeal,
você viu?, fez um lindo ninho
escondido bem
para a gente não ir apanhar
seus filhotes, que bom.
Ó meu cardeal,
você não é um sujeito brocoió à toa!
Você é um passarinho de atravessado…
(…)
X
O bigode do pai crescia no quarto.
João, caindo aos restos de ninho, chegava
cheirando a pássaros com ilhas.
Ia buscar minha boca e voltava do
mato em perfumes…
Árvore?
Era a terra debaixo dela ser escura…
(…)
XV
Ainda estavam verdes as estrelas
quando eles vinham
com seus cantos rorejados de lábios.
Os passarinhos se molhavam de
vermelho na manhã
e subiam por detrás de casa para me
espiarem pelo vidro.
Minha casa era caminho de um vento
comprido comprido que ia até o fim do mundo.
O vento corria por detrás do mundo
corria lobinhando — ninguém
não via ele
com sua cara de alma.
________________________________________
NOTAS
[1] Do qual transcrevo o último poema, bem dentro da toada modernista de então (para nós, agora, d´antanho):
Informações sobre a Musa
Musa pegou no meu braço. Apertou.
Fiquei excitadinho pra mulher.
Levei ela pra um lugar ermo (que eu tinha que fazer uma
lírica):
__ Musa, sopre de leve em meus ouvidos a doce poesia,
a de perdão para os homens, porém… quero seleção,
ouviu?
__ Pois sim, gafanhoto, mas arreda a mão daí que a hora
é imprópria, sá?
Minha musa sabe asneirinhas
Que não deviam de andar
Nem na boca de um cachorro!
Um dia briguei com Ela
Fui pra debaixo da Lua
E pedi uma inspiração:
__ Essa Lua que nas poesias dantes fazia papel
principal, não quero nem pra meu cavalo; e até logo, vou
gozar da vida; vocês poetas são uns intersexuais…
E por de japa ajuntou:
__ Tenho uma coleguinha que lida com sonetos de dor
de corno; por que não vai nela?
[2] 13.
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, a Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos).
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas
de orvalho.
11.
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo — elas
podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo aban-
dono)
Também as latrinas desprezadas que servem para ter
grilos dentro — elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam
a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho de ser imprestável!
(O abandono me protege)
8.
Nasci para administrar o à toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidades pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã
no talo)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.
(Livro sobre nada, 1996)
[3] Outro exemplo, tirado de Matéria de poesia (1970):
(Passeio número 1)
Depois de encontrar-me com Aliocha Karamazoff,
deixo o sobrado morto
Vou procurar com os pés essas coisas pequenas do chão
perto do mar
Na minha boca estou surdo
Dou mostras de um bicho de fruta.
(Passeio número 2 )
Um homem (sozinho como um pente) foi visto da
varanda pelos tontos
Na voz ia nascendo uma árvore
Aberto era seu rosto como um terreno.
(Passeio número 3)
Raízes de sabiá e musgo
subindo pelas paredes
Não era normal
o que tinha de lagartixa na palavra paredes.
(Passeio número 4)
O homem se olhou: só o seu lado de fora subindo
a ladeira…
Caminhos que o diabo não amassou — disse.
Atrasou o relógio
Viu um pouco de mato invadindo as ruínas de
sua boca!
Deixe um comentário