Em todos e em cada um dos dias de sua vida foi enviado ao mundo da sensibilidade, ao campo de batalha da sensibilidade, onde tudo é “proximidade”, “pele”, “emoção”, “compartilhar”, “pranto”, e em todos e em cada um de seus dias, soldadinho obediente, ele regressou, e a algaravia com que seu pai o recebeu a cada vez, algaravia dupla se o viu voltar sem uma perna, tripla se voltou sem um olho e uma mão a menos, foi menos um prêmio do que um incentivo, o suborno necessário para garantir que no dia seguinte acordará cedo, vestirá o uniforme, partirá outra vez. Embarcam na viagem seu pai e, sobretudo, o véu úmido que lhe embaça os olhos toda vez que o vê voltar, com butim ou sem ele, do campo de batalha da sensibilidade que parece adensar-se nos cantos dos olhos e quando está para se coagular, quando está prestes a tornar-se lágrimas, zás, evapora—o mesmo véu de umidade, aliás, que seu pai, com o passar do tempo, faz brilhar como num passe de mágica em seus olhos, toda vez que ele está prestes a fazer alguma objeção, ir a fundo num problema que prefere esquecer, pôr em evidência o que sua estupidez o impede de ver, e que de repente embaça seus olhos—“embaça”, palavra que passa a detestar, ligada que está ao “café”, ao “calor” de um café no inverno, aos “apaixonados” que “desenham” um “coração” no “vidro embaçado” do “café”, ou seja, a repulsiva galáxia onde continua reinando o cantor de protesto-e, além de protegê-los, amansando-a, desativa no ato a ofensiva que o ameaça. (Alan Pauls, História do pranto)
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de setembro de 2014)
Em A vida descalço (2006), passeio ensaístico-memorialístico pelo imaginário praiano, pode-se ler: “Se eu tivesse de odiar a praia, acho que usaria para odiá-la o mesmo ódio com que odeio minha pele, minha brancura de ex-menino de propaganda nazista, minhas sardas, minhas pintas, meus rubores terríveis, que posso tolerar quando delatam pudor e que me assustam quando interpreto que anunciam algum surto de psoríase… Como não odiar o estúpido círculo vicioso de que sou feito?”[1]
Para sondar os círculos viciosos da autoimagem em sua conflituosa relação com o mundo, os afetos, a geração a qual pertence, Alan Pauls se lançou a um dos mais belos empreendimentos literários deste século, uma trilogia de Histórias (numa paródia do estudo das mentalidades que renovou a historiografia): História do pranto (2007), História do cabelo (2010), História do dinheiro (2013). E olhe que ele já havia publicado, em 2003, O passado, uma das obras de ficção fundamentais do nosso tempo.
Enquanto História do cabelo tem a dicção narrativa mais próxima daquele extenso e belíssimo romance (tão mal filmado por Hector Babenco), um espraiamento maior, ancorado numa certa linearidade do relato, História do pranto é uma experiência mais radical. Pauls até encontrou um signo gráfico, o […], para pontuar a narração, como que mapeando um arquipélago de momentos cronológicos não-lineares justapostos, girando em torno da oscilação do protagonista entre o polo da hipersensibilidade (que o faz chorar diante do pai quando criança de uma forma que define a relação entre eles) e o polo da rejeição ao pranto — no sentido de chantagem existencial, de exploração de um nauseante território em que “bondade humana”, “ternura”, “extravasamento de emoções” mascaram inautenticidade, má-fé, coisa pré-fabricada.
O ângulo mais chamativo, do ponto de vista “temático” desse mergulho do personagem em diversos momentos da sua vida pontuados pela questão da “emoção” efetivada pelo pranto, é que eles em geral se referem a uma educação sentimental especificamente esquerdista (colocada contra o pano de fundo da ditadura militar argentina): é a rejeição da melosidade e sentimentalismo barato das canções de um famoso cantor de protesto, amigo do pai (cujas ligações “subversivas” são meio obscurecidas, apenas insinuadas, nas rememorações da sua figura — diga-se, de passagem, que ele e a mãe moram num bairro predominantemente militar, após a separação dos pais; a mãe, deprimida e distante, odeia voltar a ficar sob dependência financeira, e o avô provoca o neto, chamando-o de “mariquinhas”, o proverbial remédio patriarcal para exterminar tendências “sensíveis”); é, em contrapartida, a sensação de estar afastado da “vida real” das emoções, ao flagrar-se como mero espectador, sem emoção (pelo menos, a ratificada por lágrimas), via televisão, da derrubada do governo Allende, e seu cadáver sendo retirado do Palácio de La Moneda (em 11 de setembro de 1973), situação que leva ao choro inconsolável um amigo.
O protagonista é um estudioso do marxismo, discute seus autores seminais mais agudamente que o amigo, admira profundamente as realizações socialistas do governo Allende, mas é incapaz não só de exteriorizar suas emoções, como até mesmo de “senti-las”. No entanto, a partir do fato, ele toma uma decisão friamente passional, se posso me expressar assim: rompe o namoro com a menina chilena com a qual estava envolvido há meses (para admiração geral dos colegas), porque a família dela é de direita e deve estar exultante com o golpe.
Por outro lado, uma emoção próxima da náusea (física inclusive) ronda a recordação de um vizinho, militar, sob os cuidados de quem o menininho que o protagonista foi às vezes ficava, quando a mãe tinha de sair. Há uma vaga atmosfera de ambiguidade sexual, contudo os bloqueios da memória, que tornam tudo meio difuso, não permitem que ele localize exatamente que elementos podem comprovar essa percepção, ou mesmo porque persiste a nota pungente de emoção na recordação desse vizinho. O clímax de História do pranto será a revelação da sua identidade.
Chama a atenção também o fato de que o protagonista, apesar de precaver-se contra a chantagem sentimentalista, seja muitas vezes ouvinte do que chamamos de desabafos emocionais desde a tenra infância, e que muitas vezes isso represente uma espécie de violação simbólica: veja-se o episódio do jantar em que ele está todo orgulhoso de uma relação feliz com uma bela mulher, meio que se pavoneando, e um desconhecido senta ao seu lado e lhe sussurra: “Isso porque você nunca esteve amarrado a um estrado de metal enquanto dois sujeitos davam choques no seu saco”. [2]
O ângulo mais impressionante mesmo, feitas as contas, é que acompanhamos um texto em que o frase a frase é atordoante. Dá vontade de citar tudo. É a poesia da prosa em plenitude. Possivelmente, apenas o chileno Alejandro Zambra conseguiu algo próximo da proeza de Pauls, em mesclar memória afetiva, geracional e política, com seu Formas de voltar para casa (2011).
Se o Nobel resolvesse corrigir a persistente e notória injustiça com a literatura argentina (repleta de autores avassaladores), o ex-menino de propaganda nazista seria um nome a se pensar seriamente, rubores terríveis à parte. Pois ele — aos 55 anos — é, sem dúvida, um dos maiores autores vivos.
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NOTAS
[1] Utilizo a tradução de Josely Vianna Baptista (Cosacnaify, 2013) para La vida descalzo.
[2] Utilizo a tradução de Josely Vianna Baptista (Cosacnaify, 2010) para Historia del llanto.
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