MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

19/08/2014

“Virose” e o plano de deus para Lucas Barroso


1003165_512500272153696_1597815292_nvirose- capa

“O dia estava morrendo, um dia de que sequer lembraria. Um dia que não somaria nada à minha vida. Girei a chave com a intenção de não fazer barulho. Caminhei sorrateiramente em direção ao interruptor. Quando acendi a luz, minha mãe estava na sala, sentada no sofá.

__ Meu filho, estava preocupada com você. Tive um mau pressentimento. Você está bem?

    Não sabia responder. Me contive em observá-la. Em ter pena dela e de mim. Um sentimento idêntico para ambos. O que tínhamos feito, afinal, para sermos dignos de tanta pena?”

“Mas essa bagunça, essa maçaroca de tipos de acontecimentos chegou ao fim,  era muito cansativo ter que organizar a cabeça nesse mar de fatos. Não tinha um norte, uma linha a seguir.”

“Então, muitos acreditam em Deus. Eu apenas aumento o volume da televisão.”

(trechos de Virose)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de agosto de 2014)

Um homem é assassinado numa pizzaria, crime encomendado por sua companheira; um entregador com um membro de 30 cm, que nunca conseguira ereção com mulher alguma, encontra o amor com uma solitária, excessivamente dedicada ao trabalho secretária obesa; o funcionário de uma empresa de energia tem de cortar o fornecimento de uma família, da qual o pai não consegue parar em emprego, a mãe se chapa com medicações tarja preta e o filho fica diante da tela da tevê o dia inteiro; um velho funcionário subalterno, num daqueles periódicos “choques de gestão” (ou reengenharia, ou qualquer modismo do tipo), é cortado do quadro da empresa, pira e chacina os seus antigos chefes, reunidos numa confraternização; um magnata da área da informática, famoso pela filantropia, é o chefão do submundo da destinação ilícita do lixo; um vírus  apelidado de “gripe suína” transforma-se numa pandemia mortífera, alastrando-se pelo território do país…

Virose poderia ser uma coletânea de contos. Seria normal para uma estreia literária. Ambicioso, Lucas Barroso preferiu urdir um romance[1], explorando a vertente muito contemporânea dos seis graus de separação, em livros (Extremamente alto e incrivelmente perto, de Jonathan Safran Foer), filmes (Babel, Magnólia, Crash-No Limite, 360) e até seriados (Touch, com Kiefer Sutherland): a concepção, efetivada em termos de fabulação, de que as vidas individuais estão mais interligadas do que supõe nossa vã filosofia; e de que nenhum ato é gratuito, sem consequências, mesmo que inimagináveis para a pessoa fechada em seu mundinho próprio[2].

Nessa perspectiva, existências “se tocam” em Virose: por exemplo, o velho demitido é vítima das decisões do chefão da máfia do lixo; na cadeia, divide cela com o assassino da pizzaria. Certas frases reaparecem como refrões irônicos desses caminhos da providência, do plano de Deus: “as pessoas que não fazem dívidas não adquirem nada na vida”.

Um ponto que argamassa essas histórias: a maioria vira “noticiário” (mesmo os que não são notícia, transitam à volta do jornal que os veicula, como a secretária obesa e o entregador bem-dotado) nas mãos do único narrador em primeira pessoa dos 21 capítulos do romance, um jornalista “pau pra toda obra”, cobrindo todo tipo de matéria, e dando a cada uma delas o mesmo tratamento anódino, padronizado. De repente, é demitido também, contraindo uma vaga virose (como aquelas que estão  cotidianamente sendo diagnosticadas, mas não identificadas, de tal forma que viraram até piada pronta) que pode ser a mesma da pandemia, mas seus sintomas se traduzem mais numa paralisia da vontade, numa anomia: isolado no apartamento, sua única convivência próxima é com a mãe já morta, enquanto tem a expectativa de ser parte de uma contabilidade fatal:  “Quanto mais durmo, mais tenho sono… planejo ações que não pretendo realizar tão cedo. A vida é assim mesmo, a vida é assim… Minha mãe debate amenidades ou simplesmente me conta o que se passa na rua, nas horas que estou de olhos e ouvidos fechados. Minha mãe, agora, é minha consciência. Minha mãe faleceu há algum tempo (…) Mesmo não tendo uma rotina, sinto-me exausto… Ligo o computador e me atualizo um pouco…busco alguma companhia real: uma mulher, um amigo, um inimigo, tanto faz. Jogo conversa fora sem falar, sem sair da sala de estar. Discuto e me revolto sem me levantar da cadeira (…) Posso fazer parte de um grupo de risco, que não pode sair do hospital, de casa, de uma solitária. Posso desencadear uma peste ou derrubar um homem para sempre. Que lástima, como isso aconteceu? Ainda não tenho um diagnóstico. ..Minha vida estava em risco. Eu era notícia,um jornalista que poderia fazer parte da estatística, mais um número, talvez, mais um morto a ser inserido no balanço final. Quem escreveria minha história?”

Lucas Barroso é muito feliz na caracterização da “virose” de um jornalista que, encampando tantas histórias de vidas alheias, não se sente capaz de dar maior significado a elas[3] (por isso, nada mais natural do que a presença da falecida mãe: o mundo exterior se tornou fantasmático, virtual—e nesse mosaico “seis graus de separação” sua existência é a que não toca nenhuma outra[4]), a não ser colorindo-as de um falso verniz literário (é por isso que o romance começa—e isso não deve afugentar o possível leitor—da maneira mais fake possível, com diálogos inverossímeis entre o matador e sua vítima) quando não as desidrata no jargão associated press, nivelando o trágico, o exótico e o bizarro numa mesma miscelânea.

Já o acho menos bem-sucedido ao caracterizar a pandemia, narrada de forma ao mesmo tempo exagerada (fica parecendo um evento The walking dead) e truncada, mais uma sinopse do que um relato. Mais ainda: ele não consegue mesclar as duas “viroses”[5], o que seria crucial para as linhas de força de seu romance tão promissor, apesar dessa falha grave e de pequenos deslizes e arrefecimentos no seu texto, que se caracteriza, no geral, pelo uso austero e controlado (às vezes, por demais) da linguagem.

Assim como outros jovens escritores (como Javier Arancibia Contreras e Vinícius Jatobá), ele revitaliza os veios do expressionismo e do existencialismo; grosso modo, o mal-estar que envolve estar vivo numa sociedade tão desigual. Afinal, como desabafou seu conterrâneo Antônio Xerxenesky (cujo F comentei semana passada): “Depois de muito ter chafurdado na metaficção, deixei de lado esses recursos (…) Essa coisa de ficar escrevendo sobre o ato de escrever cansa – e muito!”. Já era tempo.

Acredito piamente que Deus tem um plano para Lucas Barroso como escritor.

lucas barroso

____________________________________________________________________

NOTAS

[1] Que ganhou uma boa edição (pela Bartlebee)—destaque para a capa com uma expressiva foto de Ramiro Furquim.

[2] VER: https://armonte.wordpress.com/2013/01/29/onze-de-bernardo-carvalho-o-mestre-de-paul-thomas-anderson-e-os-seis-graus-de-separacao/

[3] “(…) escrevo cinco matérias por turno e raramente ponho os meus pés na rua…”

[4] Pois mesmo as arestas, os aspectos desconfortáveis e risíveis (ainda que irrisórios) do dia a dia, não impedem que outros personagens procurem romper seu isolamento, como exemplifica a seguinte passagem: “Sabe-se lá a razão, mas com a obesinha, o motoboy, que tinha um pau de trinta centímetros, nunca broxou. Namoraram, casaram, tiveram filhos. Ele, no fundo, tinha um pouco  de vergonha dela.  Principalmente quando ia a jantares na casa de familiares e amigos. Ela também tinha vergonha da profissão e do rosto marcado dele. Principalmente quando conversava com familiares e amigas. De qualquer forma, ambos foram feitos um para o outro, gostavam-se.”

[5] A “virose” mais existencial (ao mesmo tempo, muito “social”) do jornalista também acomete outros personagens, como o assassino da pizzaria: “Conseguiu, depois de dois meses, uma vaga no departamento de lixo da cidade. Sentia-se humilhado por ter de enfiar a mão nos restos, na merda das pessoas, todo o dia. Doía ter que reciclar toda aquela imundície. Separar o que era orgânico do que era seco. O dia encerrava e ele sempre estava cansado, acabado. Como se contagiado por uma virose, que o prostrava mais e mais em sua solidão…” Neste trecho, insinua-se um dos pontos contraditórios e não inteiramente resolvidos de Virose: relatórios esquemáticos sobre a trajetória dos personagens—por vezes, esquemáticos em excesso; em contrapartida, transmitindo sucintamente a uniformidade que é uma praga contemporânea tão mortal quanto qualquer pandemia.

art2

1079743_657001167644148_905812803_n

2 Comentários »

  1. Gostei muito. Nos avise se houver lançamento em livrarias de SP. Mas já coloquei o título em minha lista de aquisições.

    Sorte a todos!

    Enviado via iPhone

    Comentário por lopestania — 19/08/2014 @ 21:25 | Responder

    • Isso cabe ao autor, mas obrigado pelo comentário gentil.

      Comentário por alfredomonte — 20/08/2014 @ 0:12 | Responder


RSS feed for comments on this post. TrackBack URI

Deixe um comentário

Crie um website ou blog gratuito no WordPress.com.