MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

04/01/2014

ADEUS ÀS ARMAS, a força do jovem Hemingway


hemingadeus armas

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https://armonte.wordpress.com/2012/03/21/o-que-o-diabinho-sussurrou-em-meus-ouvidos-sobre-o-sol-tambem-se-levanta-ou-o-romance-broxante-de-hemingway/

https://armonte.wordpress.com/2012/03/21/mar-morto/

(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de setembro de 1997)

O episódio contado pelo filme No amor e na guerra, de Richard Attemborough, serviu como inspiração para o romance ADEUS ÀS ARMAS (A Farewell to Arms, que comento na tradução de Monteiro Lobato, Companhia Editora Nacional). Quando o publico em 1929, Ernest Hemingway era ainda muito jovem e já bastante prestigiado como um autor que renovara a prosa da ficção, com seus contos e seu primeiro romance, o discutível O sol também se levanta (1926). Adeus às armas de certa forma encerra sua primeira fase como escritor. Provavelmente, nada do que escreveu depois possua a força dos escritos dessa década, principalmente a força da história de Frederic Henry e Catherine Barkley.

Durante a Primeira Guerra, o americano Frederic está servindo o exército italiano. Através de seu companheiro de quarto, Rinaldi, conhece a enfermeira escocesa Catherine. Quando é ferido pela queda de um obus e tem que operar o joelho, Catherine é transferida para o hospital onde está internado e eles iniciam uma ligação que não demora a se tornar bem séria, complicada pela gravidez. A diretora do hospital considera Frederic um sujeito jocoso e grosseiro (hoje em dia, chamaríamos de folgado), e, quando ele apresenta icterícia, ela crê ser uma artimanha para escapar do front. A licença de Frederic é cancelada e ele volta em tempo de participar de uma desastrosa retirada das tropas italianas. Como há uma verdadeira paranoia com relação a alemães infiltrados no exército italiano, e como Frederic tem sotaque estrangeiro, em meio à confusão da retirada, ele é quase fuzilado. Consegue escapar e deserta, fazendo uma “paz em separado”, como ele mesmo nos conta (o livro é narrado em primeira pessoa, como O sol também se levanta). Na região dos lagos italianos, reencontra Catherine e ambos fogem, num bote, para a Suíça, onde vivem um período de idílio até que chega a hora do parto. E da morte, da qual já disseram que “transforma a vida em destino”.

A palavra destino é muito pertinente numa narrativa em que a chuva que não para de cair durante a retirada, e depois, na noite do parto, contém um elemento de ameaça já inscrito numa premonição de Catherine, no início da sua ligação perigosa com Frederic: “… eu tenho muito medo da chuva… sempre tive medo da chuva… tenho medo porque às vezes me vejo morta na chuva… e às vezes também vejo você morto na chuva…” (aliás, casais hemingwayanos e chuva nunca combinam muito bem).

Esse detalhe premonitório, visto em retrospecto, lança uma atmosfera de melancólica ironia sobre a primeira parte da história, antes da volta de Frederic para o front. Ali, apesar do ferimento de Frederic, o livro mantém uma narrativa leve, quase pitoresca. Os personagens parecem muito jovens, muito imbuídos de um sentimento pueril de eternidade irresponsável, similar ao dos personagens das histórias de F. Scott Fitzgerald (por exemplo, em Belos e Malditos). A guerra é vista antes como uma operação tediosa, onde quase nada acontece e onde se trocam opiniões inconsequentes, se compartilham sacanagens; onde, enfim, se vai empurrando com a barriga; nesse diapasão, a ligação com Catherine a princípio é fundamentada basicamente no desejo sexual (Frederic tenta de todas as formas levá-la para a cama).

Toda a outra metade de Adeus às armas será a reversão da irresponsabilidade, da puerilidade, da urgência sexual e do sentimento de eternidade.

A guerra se revela para Frederic durante a retirada: “Ali ficamos na chuva, à espera de nova vez de sermos interrogados e fuzilados. Aqueles oficiais mostravam aquele devotamento à Justiça dos que lidam com a morte sem correr perigo nenhum”.

E o amor, que era exaltado de maneira tão piegas pelo casal, torna-se uma obsessão, verdadeiramente um “país à parte”: “Não quer sair sozinho, querido, para uma corrida de esquis com os homens… Às vezes me parece que você deveria gostar do convívio com outras pessoas em vez de ficar sempre comigo…”; “Eu também não… oh, querido, eu tanto desejava igualar-me a você…” “Já é igual a mim. Nós dois somos um”.

Porém, como prova a guerra, qualquer país pode ser invadido (e devastado). É o que acontece com o país criado pelo idílio de Frederic e Catherine (outra ironia: no país neutro por excelência). E essa invasão é que dá toda a medida da força de Adeus às armas.

Infelizmente, a tradução rebuscada e pesada de Monteiro Lobato trai sem dó nem piedade o famoso “estilo Hemingway”. Parece-me que o criador do Sítio do Picapau Amarelo resolveu enfeitar o texto, escolhendo as palavras menos básicas possíveis. Já que o enfadonho e ultraconvencional filme de Attemborough, um diretor que dá sono só em citar seu nome, resgata a pré-história do romance, seria uma boa hora para uma nova versão brasileira (a de Lobato é de 1942).

E por falar em No amor e na guerra, já comentei outras vezes aqui nesta coluna que Hemingway está passando por um processo de demolição da crítica mais recente, mais ligada ao politicamente correto e ao multiculturalismo (e ela, em alguma medida, está certa). Mas nenhum ataque ao autor norte-americano poderia ser tão cruel quanto fazer seu romance com Agnes von Kurowsky (ao qual deu tanta importância simbólica ao ponto de recriá-lo na sua melhor obra) ser vivido por figurinhas da hora como a inexistente Sandra Bullock e o igualmente nulo Chris O´Donnel. Nenhum autor tão importante merecia tal castigo.

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II

(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de abril de 2002; e excluí os trechos que repetem em linhas gerais o enredo do romance; vale lembrar que em 2013 a Bertrand reeditou o romance mais uma vez)

Na semana passada, comentei aqui nesta coluna Enquanto Agonizo, publicado em 1930. Seu autor, William Faulkner, iniciara no ano anterior uma grande fase, com Sartoris e O som e a fúria. Também de 1929, e igualmente notável, é Adeus às armas (além da proximidade cronológica com os livros de Faulkner, este ainda fez uma releitura da sua trama numa das histórias paralelas de As palmeiras selvagens, em 1939), destaque incontestável entre os relançamentos que a Bertrand Brasil vem fazendo da obra de Ernest Hemingway, embora reapareça numa capa que poderia ser o cartaz de um filme B (mesmo assim, a da Companhia Editora Nacional que eu possuo é campeã em breguice). Aliás, o episódio inspirador do romance (a paixão pela enfermeira Agnes von Kurowsky) foi contada num filme B (de bocejante, de borocochô) dirigido por Richard Attembourogh, no seu firme propósito de passar para a história do cinema como um David Lean genérico.

A tradução representa uma diversão à parte nesse relançamento da melhor obra do Nobel de 1954: talvez em respeito à figura de Monteiro Lobato não tiveram coragem de lançar uma nova tradução (a dele é de 1942 e sempre me pareceu pomposa e inábil, desrespeitando claramente o estilo famoso do autor norte-americano). Entretanto, esse “respeito” é apenas formal, uma cortina de fumaça: mexeram tanto no texto que de fato estamos diante de uma nova versão. Ainda bem.

bullock e chrisbullock e chris 2

ernest e agnes

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