MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

04/12/2011

SOBRE MENINOS E LOBOS: a sedução dos contos de Nilton Resende


“A nossa saída do casebre foi muito diferente de quando saímos de casa pela manhã; e a incerteza sobre o estado do Rei deixava-nos silenciosos. Não nos encarávamos, Luís não dirigia palavras a ninguém; nenhum de nós conversava. Pensei por um tempo se tinha ou não raiva por ele ter me repelido daquele jeito, mas ao fim, como a borra precipitada no fundo de uma xícara, restou-me uma estranha sensação de poder, de como agachado, choroso, ondulante e frágil, por trás de arbustos, mesas, cortinas, mas sempre me mostrando frágil, era assim que devia permanecer, amando o ofício  que desde sempre conhecia, o de portinhola, durante a caminhada, fui-me deixando ir atrás, para poder ver sem ser visto, e para poder decorar os contornos de Luís, que de costas lembrava-me o mesmo Luís que eu tinha visto quando se estirou na cerca e pulou nu e rodopiando, o pião mais belo que já vi…”  

(Nilton Resende, Ofício)

“Percebe que estivera parada tempo demais, emolduram-se rostos nas janelas dos carros, as pessoas já estão olhando, então espalma as mãos, levando-as ao rosto, à boca, ao buço, à base do nariz, espalmar de prece-petição. Os cotovelos apoiados no ventre, a boca semi-aberta e o passo largo, que agora já-já o semáforo irá fechar. E é preciso que haja pressa, um carro está buzinando, e ela assim, tão lerda, tão contida em uma concha. Algumas vezes fora quieta, sem necessidade de ser vista, mas hoje não. Não hoje, por favor!, que se transforma em pura expansão se tomada de imensa alegria, como pela manhã indo às compras. Expansão. Os braços em volta dos filhos, dos netos, do esposo, quando os tinha. Sorrisos em esboço para o outro, porque não se é dono da própria face; esta, quando não se está só, é de quem a vê…”

(Nilton Resende, Não é tempo de maçãs)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de novembro de 2011)

Diabolô, coletânea de nove contos que marca a estréia de Nilton Resende no gênero[1], apresenta tal força que já pode ser considerado um dos destaques entre os lançamentos deste ano.

Os dois textos que emolduram o livro, A ceia e A fresta, apresentam guris envolvidos em jogos perversos e ainda incompreensíveis para eles mesmos: no primeiro, há um duelo sub-reptício com o avô, com o menino fazendo maldades e delatando supostos abusos, até que os pais mandem o velho para um asilo; no segundo, enquanto os adultos se embebedam, a descoberta das delícias e as dores do voyeurismo.

O mundo da infância, segundo a ótica do talentoso escritor alagoano, é um repertório de códigos de desejos e segredos aprendidos e alimentados, à margem da educação “oficial”. Não há inocência, porque em algum momento a fresta se abriu, as tentações se apresentaram, e os lobos maus estão dentro de nós, já no latejar do sangue e no ritmo do corpo: “Põe-se na ponta do pé e espia por uma frincha da janela. O homem beija e alisa com a língua o joelho de uma mulher de pernas abertas, enquanto toca a mão nas carnes em meio aos pêlos, esfregando os dedos e forçando-os na entrada. Ainda mexendo cm os dedos, ele sobe a língua até os peitos dela e chupa-os. Deita-se, e a mulher coloca a mão no negócio dele, que está duro. O menino encosta-se na parede, pressionando o corpo e esfregando-se.”.

É o caso, emblemático, de A canção e a sombra, no qual o narrador—também um garoto—viaja com os pais para a fazenda da avó e lá é “iniciado” por uma “tia louca”, na verdade, um patético homem trancafiado pela família, como um segredo vergonhoso. Note-se, entretanto, que antes mesmo de conhecer o mistério da “tia”, o menino já pressente em si todo um território perigoso: ”Eu quis dormir, mas vi um rio que surgiu repentino, muito fino, ao lado dos mulungus. Não dava para ver se corria, ou se andava, mas antes me parecia uma superfície parada, um espelho acompanhando a cerca morta-viva. Na escola eu havia aprendido que os rios correm. E agora me surgia aquele tão calmo. Comecei a rir, já me preparando para gozar da cara da professora, mas engoli o riso: num ponto, o espelho se estilhaçou, fez uma curva e passou por entre as árvores, desaparecendo numa depressão. Ainda olhei para trás, mas não consegui ver aonde ia dar. Tive medo e resolvi que o melhor agora seria realmente dormir. Fechei os olhos, deitei-me estirado no banco e comecei a contar carneirinhos que logo se transformaram em mulungus de braços estendidos e cabeleira elétrica, correndo atrás do carro com as bocas abertas. Adormeci.”

Em todos esses contos, assim como nos igualmente ótimos Flamor[2] (eu gosto muito de Diabolô, inclusive do título escolhido para a coletânea, todavia um dos poucos reparos que tenho a fazer é por conta dos títulos de vários contos, nada sedutores[3]) e Casaram-se numa quinta-feira (texto cruel, onde o desejo de paternidade como afirmação plena de si consome um homem), Resende mostra-se um urdidor habilidoso, que sabe nos envolver com uma história bem tramada, afora seus recursos de linguagem, invejáveis.

Mas a face talvez mais autenticamente pessoal, mais caracteristicamente sua, parece estar nos dois textos mais longos, Não é tempo de maçãs e Ofício, a meu ver, os pontos altos de Diabolô, mesmo sem um acabamento perfeito ou clareza narrativa, em sua tessitura densa. São sobrecarregados, frementes, agregam muitas imagens nem sempre harmônicas, e no entanto têm um poder aliciante que mostra quão proveitoso foi o convívio intenso de Resende com o universo de autoras do naipe de Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles.

Em Não é tempo de maçãs, um narrador ardiloso relata o suplício de uma senhora que ia comprar roupa para o casamento do filho, ao ser desprezada por uma vendedora (que fala, à socapa, mas é ouvida, para as colegas: “Essa vaca não toma banho? Se for inventar de provar tudo, a gente vai ter que lavar a loja inteira. Ela fede a azedo…”) e que envenena empadas numa vingança que é mais uma auto-imolação.

Ofício mostra as brincadeiras de infância de um grupo de garotos que delineiam uma hierarquia sexual, uma aprendizagem de papéis estereotipados (“Afastei-me para pegar uma toalha. Quando ia voltando, vi o Rei discutir com Luís e Afonso, dizendo que era ´uma merda da porra´ eles ficarem  comigo ali, o pessoal ia ficar falando e eles iam levar fama sem  ter feito nada, se pelo menos eu fizesse ´o favor de dar o cuzinho, ele disse e encheu a mão no calção, dizendo ´olha aqui o que eu tenho pra ele´’); ao mesmo tempo, é de um erotismo impregnante.

É no equilíbrio tenso entre sua vigorosa veia narrativa e sua tendência  a ser “excessivo”, derramado, agônico, isto é, de liberar a linguagem quase que sem freios, num ritmo fluvial, que Nilton Resende poderá produzir uma obra singular. Apesar da presença marcante do homoerotismo, sua escritura foge tanto dos clichês e apelações da infausta “literatura de gênero” quanto do “típico nordestino[4]”. É prosa ficcional de primeira. Só fico esperando o que vem pela frente.


[1] Nilton também é homem de teatro (fez uma adaptação de Mário e o Mágico, um texto com um argumento  fascinante de Thomas Mann) e poeta (tem uma coletânea publicada, O orvalho e os dias), Além disso, tem blogs (ligados a todas esss atividdes artísticas):

www.trajeslunares.wordpress.com

www.ciaganymedes.wordpress.com

www.niltonresende-portfolio.blogspot.com

[2] Um trecho de Flamor:

“O moço olhou para trás e levantou a mão.

A moça pensou que fosse com ela e sorriu. Já indo levantar a sua mão, também, ensaiou uma corrida, quando um senhor a ultrapassou e foi ter com o rapaz.

Para não perder o gesto e a corrida no ar, procurou algo no chão, encontrou um ramo com uma flor e abaixou-se para pegá-lo. Levantando-se, e levando uma folha à boca, beijou-o como se fosse a barriga daquele moço.”

[3]  Curiosamente, os dois textos que menos aprecio (por uma questão de temperamento, não pela qualidade—tenho certeza de que serão elogiados e amados por outros leitores; como sempre digo,  não se pode gostar de tudo) têm títulos bacanas: Manual de como manusear & Balada da noite insone.

Um trecho do primeiro: “Seja forte, seja extremo, seja farpa. E se tudo isso dito é debalde, por ser úmido o teu rosto se se vê de frente ao outro; se ele treme, só em pensar nalgum toque; se a boca freme toda só de ver os outros lábios {…} e tualma, só em vê-lo, muito e toda se alarga—corre  aos montes, que é morte essa onda que se dobra caudalosa.” Só um autor de categoria (o que é o caso aqui) consegue utilizar termos como  “freme” sem cair no ridículo.

Um trecho do segundo (onde há um exercício à La Cântico dos Cânticos, a paródia verdadeira, a sério): “E então entrou à casa. E o sorriso que levava foi de chofre reprimido; e lhe perguntou o homem o que era aquele cheiro. E puxou-o para perto e cheirou-lhe o pescoço. E empurrou-o para o chão. E o outro levantou-se, gargalhando, que o cheiro era nada, fora tudo brincadeira, para ver como agia o amado se sentisse por acaso o perfume doutro homem permeando sua pele, pra testar o sentimento, uma prova de que tanto quando dito o amava.

      E a vela foi acesa. E as bodas, de festivas, transformaram-se em luto, que o homem, raiva e choro, levantou, para perto de seu rosto {…} E do homem, nunca mais se viu espectro, voz, perfume, riso, nada.”

[4] Outros que fogem do “típico nordestino” e que se destacaram nos últimos anos são Pedro Salgueiro e André Laurentino (autor do belo romance A paixão de Amâncio Amaro).

4 Comentários »

  1. Alfredo,
    obrigado. Por agora e por antes.

    Abração.
    Nilton.

    Comentário por niltonresende — 04/12/2011 @ 0:18 | Responder

    • Nilton, como já disse e redisse, eu é que sou grato pelos seus textos, que tenho na mais alta conta.
      Muito sucesso, meu caro amigo.

      Comentário por alfredomonte — 04/12/2011 @ 0:54 | Responder

  2. […] seu blog, Alfredo Monte escreveu sobre os contos de Nilton Resende. Desabou entre nós um livraço, diz Sérgio Rodrigues […]

    Pingback por Links e Notícias da Semana #66 — 09/12/2011 @ 13:01 | Responder

  3. […] dezembro, diabolô recebeu sua primeira crítica, feita por Alfredo Monte e publicada em seu blog, Monte de […]

    Pingback por Meninos e lobos no Monte de Leituras « trajes lunares — 09/02/2012 @ 9:26 | Responder


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