A abril coleções relançou uma das traduções brasileiras de O RETRATO DE DORIAN GRAY, a de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn, anteriormente lançada pela Francisco Alves. Por isso, resgatei um artigo em que justamente citava algumas traduções do livro (há mais).
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de fevereiro de 1999)
Quem já tentou assistir ao filme Wilde em São Paulo e se deparou com filas imensas e sessões lotadas não se surpreenderá em saber que a Civilização Brasileira está relançando uma das muitas traduções de O retrato de Dorian Gray (1891). Parece que o grande escritor irlandês entrou em moda novamente.
O único romance de Oscar Wilde conta a história de Dorian, rapaz de 20 e tantos anos, extremamento belo, que impressiona (para dizer o mínimo) o pintor Basil Hallward e serve-lhe de modelo. Um amigo de Basil, Lord Henry, dândi cínico e espirituoso conhece Dorian no dia em que o quadro está sendo terminado e lhe diz que é uma pena que sua mocidade vá ser preservada na arte e não na vida. Assombrado pela própria beleza e juventude, desesperado com a idéia de perdê-las, Dorian formula o desejo de que a situação se inverta: o quadro poderia envelhecer e ele ficaria intocado pelo tempo. E o pedido é atendido, sabe-se lá por quais potências.
O problema é que, influenciado por Lord Henry, Dorian resolve fazer da sua vida uma experimentação constante, sem limites, o que o leva a uma deterioração moral que se torna visível nas transformações que o quadro sofre. Aos 38 anos, Dorian tenta mudar de rumo e destruir o quadro, mas é tarde demais.
É uma fábula moralista, como se vê. Só que o seu moralismo nada tem de edificante, pelo contrário, é cruel e corrosivo, bem dentro da tradição irlandesa da literatura britânica (Swift e Bernard Shaw, por exemplo).
Ao ler outras vezes O retrato de Dorian Gray, irritei-me com o Mefistófeles do herói, Lord Henry, com seu excesso de aforismos, epigramas e paradoxos (amplificados pelo narrador, que parece espelhar o tom do personagem). Relendo o livro agora, contudo, percebo que é absolutamente necessária à economia da trama a verbalização (aliás, muito sedutora) do cinismo e da amoralidade que a vida de Dorian encarnará (não na sua aparência “imaculada” e sim no retrato escondido num quartinho de sua mansão).
Henry e Dorian (além de Basil, o artista) complementam-se: um é a atitude; o outro, a vivência, a experimentação concreta. Ambas têm como motivação o maior medo do hedonista, daquele que vive para prazer e o momento: o envelhecimento, medo que já causara –por outros motivos– a perdição do Fausto da lenda.
A angústia do envelhecimento, a adoração pela juventude como momento supremo da vida, são recorrentes na literatura inglesa (eco da cultura helênica). E ninguém expressou melhor essas preocupações do que Virginia Woolf na sua suprema obra-prima, As Ondas (1931), no qual seis personagens são “acompanhados” pelo leitor, da infância à velhice, e um sétimo personagem, Percival, morre jovem e belo, permanecendo na mente dos demais como um símbolo do que foi perdido, da plenitude da mocidade e da beleza, tal como o retrato de Dorian o seria, se seu “pacto com o diabo” não tivesse invertido a ordem das coisas.
Ao criar tal situação, Wilde contribuiu para a série de histórias fantásticas nas quais subjazem os fracionamentos primordiais a que o ser humano é submetido nesta vida (Frankenstein, Jekyll & Hyde, A Volta do Parafuso). Só que ele faz isso, disfarçando-o com a mundanidade do tom e a espirituosidade de salão de vários diálogos que podem despistar o leitor do retrato profundamente desmoralizador que pinta da sociedade inglesa. Por exemplo, o seguinte diálogo de Dorian com a Duquesa Gladys: “Espero que o seu marido não a crive de alfinetes, Duquesa”; “Ah, a minha criada já faz isto, quando se aborrece comigo”; “E por que motivo ela se aborrrece, Duquesa”; “Pelas coisas mais banais, garanto-lhe. Geralmente porque entro em casa às dez para as nove e lhe digo que preciso estar vestida às oito e meia”; “Que criatura pouco razoável, deve despedi-la”.
Quanto à tradução de Lígia Junqueira, ela é fluente, de uma maneira que as de João do Rio (a mais tradicional e clássica) e de Oscar Mendes não eram, uma fluência que talvez só a de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn consiga também; porém, eliminou algumas expressões francesas (absolutamente essenciais à atmosfera em que se movimentam os decadentistas Dorian e Henry), principalmente nos primeiros capítulos. Pior ainda, alguns trechos ficaram incompreensíveis, como se pode constatar nas páginas 69 (onde se lê: “A adoração do rapaz por outra pessoa causara-lhe um leve aborrecimento, ou ciúme”; é justamente o contrário, Lord Henry não sente aborrecimento, ou ciúme, por Dorian se interessar por outra pessoa, acha tal fato um “objeto de estudo interessante”); 87 (a fala de Henry: “Dorian é demasiado sábio para não fazer tolices” quando o correto seria “Dorian é sensato, mas pode fazer tolices de vez em quando”) e 108 (“Sua vida valia bem a de Sybil. Se ele a ferira para sempre, ela o machucara por um momento”; o contrário, ou melhor dito, uma formulação mais matizada, parece o correto: “Se ele a magoara por um certo período, ela o destruíra num instante”).
São pequenos detalhes, porém desfiguram a beleza do texto e, no universo de Oscar Wilde, a beleza (e mesmo as conseqüências nefastas da beleza) é tudo. Só que para exprimi-la e preservá-la, se tem de passar pela fealdade inevitável da vida.
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VER TAMBÉM:
https://armonte.wordpress.com/2011/04/08/o-retrato-desfigurado/
https://armonte.wordpress.com/2011/04/12/o-livro-de-cabeceira-de-dorian-gray/
CINCO TRADUÇÕES DE UM TRECHO DE O RETRATO DE DORIAN GRAY:
Trata-se do trecho em que o mefistotélico Lord Henry atiça em Dorian a angústia de envelhecer e perder sua beleza, exaltando o doce pássaro da juventude:
Na versão de João do Rio:
“–Porque o senhor possue uma juventude admirável e a juventude é a única coisa desejável.
__Eu pouco me incomodo.
__ Pouco se incomoda… agora. Um dia verá, quando estiver velho, enrilhado e feio, quando o pensamento lhe houver sulcado a fronte com a sua garra e a paixão marcado os seus lábios de estigmas desfigurantes, um dia verá –dizia– que se há de incomodar amargamente. Em qualquer parte por onde ande atualmente acha prazer. Será sempre assim? A sua figura é admiravelmente bela, mr. Gray. Não se contrarie, porque, de fato, a possue… E a Beleza é uma das formas do Gênio, a mais alta mesmo, pois não precisa ser explicada; é um dos fatos absolutos do mundo, como o sol, a primavera, ou o reflexo nas águas sombrias dessa concha de prata que chamamos a lua…”
Na de Oscar Mendes:
“__ Porque possui uma maravilhosa juventude, e a juventude é a única coisa que vale a pena.
__ Não penso assim, Lorde Henry.
__ Não pensa agora. Algum dia, quando estiver envelhecido, enrugado, feio, quando a meditação lhe tiver murchado a fronte com as suas rugas e a paixão marcado seus lábios com horríveis estigmas, senti-lo-á terrivelmente. Agora, onde quer que apareça, encanta todo mundo. Será sempre assim? O senhor tem um rosto maravilhosamente belo, sr. Gray. Não se zangue. Tem-no de fato. E a Beleza é uma forma do Gênio, pois não precisa ser definida. É uma das realizações absolutas do mundo, como o sol, a primavera, ou o reflexo, nas águas sombrias, dessa concha de prata que chamamos lua.”
Na de Marina Guaspari (que eu nem lembrava mais que tinha, num exemplar das “Edições de Ouro” .minúsculo; talvez seja a minha favorita entre as cinco):
“__Porque o senhor é um prodígio de mocidade, e a mocidade tem valor.
__ Não tenho essa impressão, Lorde Henry.
__ Não a tem agora. Um dia, quando estiver velho e enrugado e feio, quando o pensamento lhe houver traçado vincos na testa e a paixão tiver-lhe crestado os lábios com o seu fogo detestável, terá a impressão que agora não sente: uma impressão terrível. Atualmente, aonde quer que vá, encanta o mundo. Será sempre assim?… Tem um rosto admiravelmente belo, senhor Gray — não tome essa expressão, estou falando verdade–. A beleza é uma forma de gênio…. mais elevada até do que o gênio, pois dispensa explicação. Pertence aos grandes fatos do universo, como a luz do sol ou a primavera, ou o reflexo, nas águas escuras, dessa concha de prata que chamamos lua…”
Na de Lígia Junqueira:
“__ Porque o senhor tem a mais maravilhosa juventude… e a juventude é a única coisa que vale a pena ter-se.
__ Não sinto, Lord Henry.
__ Não sente agora. Mas um dia, quando for velho, e enrugado, e feio, quando o pensamento tiver marcado de sulcos sua testa e a paixão estigmatizado seus lábios com seu fogo horrendo, há de sentir isto, há de senti-lo terrivelmente. Agora, aonde quer que vá o senhor encanta todo mundo. Será sempre assim?… O senhor tem um rosto maravilhosamente belo, mr. Gray. Não franza a testa. Tem, sim. E a Beleza é uma forma de Gênio, pois não requer explicações. É uma das grandes realidades do mundo, como a luz do sol, a primavera, ou o reflexo, em águas sombrias, daquela concha prateada que se chama lua…”
Na de José Eduardo Ribeiro Moretsohn:
“___Porque você possui uma juventude maravilhosa, e a juventude é a única coisa que vale a pena possuir.
__Eu não sinto as coisas desta maneira, lorde Henry.
__ Não sente agora. Um dia, quando estiver velho, enrugado, feio, quando o pensamento vier, com suas linhas, murchar-lhe a testa, e a paixão, com seu fogo medonho, vier cauterizar-lhe os lábios, você vai senti-lo, de modo terrível. Você, agora, onde quer que vá, encanta o mundo. As coisas serão sempre assim?… Você tem um rosto lindo, maravilhoso, sr. Gray. Não franza o cenho, pois é verdade. E a beleza é uma forma de genialidade; é, na verdade, mais elevada que a genialidade, pois não carece de explicação. Pertence aos grandes fatos do mundo, como a luz do sol, a primavera, o reflexo das águas turvas, ou aquela concha de prata a que chamamos lua…”
Encontrei seu blog quase por um acaso, um feliz acaso.
Parabéns pelas publicações, gostaria de ter o dom para escrever, mas não sou muito boa nisso.
Saudações
Comentário por Cintia — 30/03/2011 @ 17:24 |
Obrigado pelo seu comentário, Cintia. Um grande abraço.
Comentário por alfredomonte — 31/03/2011 @ 15:04 |