MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

22/12/2012

Dr. Fortunato e o Sr. Valdemar: o médico e a cobaia

PREÂMBULO BREVE- O texto abaixo foi escrito em 2008, como parte do material de leitura para meus alunos do curso As margens derradeiras: textos do limite,  que abordava oito textos curtos e paradigmáticos do século XIX: “O médico e o monstro”, “Bartleby”, “Memórias do Subsolo”, “A morte de Ivan Ilitch”, “O alienista”, “O mandarim”, “O coração das trevas” & “A volta do parafuso”; na órbita de cada um deles, analisei outros: “William Wilson”, “O homem invisível”, “O duplo”, “O capote”, “A tumba dos ancestrais”, “O horla”, “O homem da areia”, “A vida privada”, etc.

MOTE

“Quando o homem mata em si o Minotauro, o que nele resta é a razão. Um ser esvaziado de sentido, cadáver do mito.”

(Autran Dourado, Novas proposições sobre Labirinto e Mito, 1976)

PRIMEIRA VOLTA

Examinarei, aqui, dois grandes textos curtos: um, de Machado de Assis, muito próximo da época de Jekyll e Hyde, perto do fim do século, A causa secreta; o outro, mais para meados do século Os fatos do caso do Sr. Valdemar, de Poe.

A causa secreta é mais um dos casos estranhos da genialidade de Machado, pois foi escrito antes de O médico e o monstro: sua publicação original foi na “Gazeta de Notícias”, em agosto de 1885. Onze anos mais tarde ele foi incluído na coletânea Várias histórias. É um dos raros textos em que Machado é “cru”, não-dissimulado, na narração de perversidades e violências psíquicas.

O relato (em 3ª. pessoa) começa, em 1862, com uma cena doméstica, quase pose para uma fotografia ou um retrato: “Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, do Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço”.  Para a “pose” do retrato ou da moldura narrativa, reuniu-se um trio típico de Machado e da ficção oitocentista: marido, esposa e amigo.

Por trás da “pose” houve um assunto grave, “feio”, tão aflitivo que deixou os dedos de Maria Luísa trêmulos, e daí que há cinco minutos ninguém falasse nada. O narrador anuncia que remontará à origem da situação.

Garcia é o médico da história. Quando se encontraram pela primeira vez, ele ainda era estudante e o capitalista Fortunato causou-lhe forte impressão. Poucos dias depois, eles se reencontram no afastado teatro de S. Januário: “a peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ele e saiu; Garcia saiu atrás dele”.  Através da descrição (como sempre, irônica; Machado adora resumir enredos melodramáticos ou folhetinescos) da peça, Fortunato se revela um pouco para nós: um interesse pelo espetáculo violento, de fortes emoções. Seguindo o conhecido, Garcia viu a seguinte cena: “ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando”. Um Hyde à solta pelo Rio?

Semanas depois, um incidente: alguns homens trazem um sujeito todo ensangüentado (foi atacado por um grupo de capoeiristas e um deles meteu-lhe o punhal); como García diz que é preciso chamar um verdadeiro médico. Alguém replica que isso já foi feito. Esse alguém é Fortunato. Ambos permanecem para auxiliar o médico:  “A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo, ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito… Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria… Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acera do ferido, mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado  como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios [1]. Realmente, o coração humano é um poço de mistérios, mas a água que ali estagna é bem diferente do que pensava Garcia. Aliás, nós, que estamos treinados no olhar de suspeita pós-freudiano podemos desconfiar da perversidade e sadismo ocultos no “ato de rara dedicação” testemunhado pelo perplexo estudante; não esqueçamos como Machado escrevia numa época em que o que nos é “normal” como leitores e espectadores chocava, e muito. Aliás, o leitor que estivesse nessa altura do relato nem imaginaria, creio eu, o desenvolvimento que ele tomaria, pensaria decerto que há um “segredo” tão melodramático e folhetinesco na vida de Fortunato como o enredo da peça que assistiram (e Machado brinca com essa expectativa ingênua ao afirmar que o estudante suspeitou haver nela reminiscências pessoais). Acho que o leitor da época passava batido pelas bengaladas no cachorro ou no olhar frio e desapaixonado para o ferido.

Fortunato continua visitando o ferido por dias; quando este melhora, desaparece, “sem dizer ao obsequiado onde morava”.  Ele e Garcia só se reencontram tempos depois, e Fortunato casara nesse entreato; por esse motivo, convida o rapaz, que já se formara, para jantar na casa dele no primeiro domingo. Observando o casal, Garcia constata novamente a “frieza” que emana da pessoa do capitalista, embora obsequioso: “Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoas e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove”. Na segunda visita, Garcia percebe a dissonância entre o casal, a falta de “afinidade moral”. Um dia, ele conta a ela em que circunstâncias conheceu-lhe o marido (“uma bonita ação”) e ela se comove e se desconsola quando o ouve zombar do caso. O resultado dessa conversa é prático: Fortunato convida Garcia a fundarem uma casa de saúde, que seria ótima para alavancar a carreira de um médico iniciante. Dias depois, após certa hesitação, Garcia aceita e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele próprio o administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas”.

Medicina e quotidiano, essa é a grande época em que eles se aproximam. Podemos ver o lado “da luz” de Fortunato nessa empresa: o capitalista esperto que percebe onde sopra o vento, o que dará dinheiro, numa sociedade em transformação; por outro lado, há a sua fachada obsequiosa (apesar da frieza), a capacidade de enfrentar o sofrimento sem firulas, de agir quando necessário, o humanitarismo no capitalismo (não se criou nesse tempo o termo benemérito ?): “Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua de D. Manuel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza desse homem  [e onde Garcia encaixa as bengaladas nos cachorros? Ele e o leitor da época devem já ter esquecido rapidamente]. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações e nenhum outro curava os cáusticos. Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.

Enquanto isso, seu jovem amigo se torna familiar na casa, jantando ali todos os dias, e assim observando a “solidão moral” de Maria Luísa. Solidão que lhe duplica o encanto e, claro, ele se apaixona e ela, claro, percebe, e eles não ousam dar o próximo passo: “Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar cães e gatos. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa; e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer”.  Eis o cientista que surge como um poder social que substitui o pai de família, o patriarca. E eis as malfadadas cobaias que ainda assombram a nossa época, por mais que se grite e proteste. Não é à toa que a figura meio sinistra meio caricata do “cientista louco” correu mundo. A ciência como campo para o id e a pulsão da morte é um dos avatares do umheimlich.

Maria Luísa pede a Garcia, já que o marido não a ouviria se ela mesma o fizesse, que fale com Fortunato para acabar com esses “estudos” terríveis dentro de casa: “Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim”. Na cena em que agradece a García, ela tosse intermitentemente. Garcia fica apreensivo.

Dali a dois dias chega o momento em que os vimos no primeiro parágrafo, a pose, agora já convenientemente vista pelo avesso. Garcia chega para jantar e encaminha-se para o gabinete de Fortunato. De lá sai uma consternada e aflita Maria Luísa: “O rato! o rato! exclamou a moça sufocada”. Numa cena doméstica, poderia se pensar que um rato assustou-a, como é comum, mas o terror é de uma espécie que a visão de um bicho nojento jamais poderia causar. Eu geralmente pulo esse trecho, que me aflige também, e só o escrúpulo profissional me obriga a transcrevê-lo: “No momento em que Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo; e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado. Garcia estacou horrorizado. Mate-o logo!, disse-lhe. Já vai. E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez até a chama deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. Essa é uma das descrições de sadismo mais exatas e por isso mesmo esse relato é um dos textos mais terríveis que já li. Imaginemos o pacato Machado, sempre homem de meios-tons, sentado, escrevendo cada frase dessa cena horripilante. O que o obsedou para fazer com que ele criasse uma história tão diferente no tom da grande maioria das suas narrativas, e tão premonitória? Fortunato, o Kurtz brasileiro, o Jekyll que não precisa se dividir em Hyde: o médico é o monstro, afinal: “Garcia, defronte, conseguiu dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio, tão somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estéticaA chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue”  (ufa, espero que seja a última vez que leio linha por linha essa parte).

Fortunato finge ter se enraivecido com o rato porque ele lhe comera um documento importante, mas Garcia percebe a simulação. E formula o segredo, a causa secreta, do comportamento do sócio: sua “necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar”. E ainda acham que nossos tempos são violentos, há gente que se impressiona com os serial killers cinematográficos?

Fortunato ainda zomba dos nervos de Maria Luísa e aí os vemos na cena que abriu o relato: Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três… Pouco depois foram jantar… Maria Luísa cismava e tossia, o médico indagava a si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível, mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza, temeu por ela e cuidou de os vigiar. Será que ela realmente não é vítima de um dos “estudos” do marido? Ou é a saúde frágil, típica da época? Nunca saberemos. O certo é que Maria Luísa se revela tísica e Fortunato se revela, surpreendentemente, um marido dedicado, mas conforme a doença avança, sua “índole” subjuga a afeição: “Não a deixou mais, fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente… Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia”.  Essa fome de sensações só termina, e o deixa aturdido, quando ela morre.

À noite, Fortunato e Garcia velam o cadáver. Garcia manda que o sócio vá repousar por umas horinhas. Fortunato sai, deita-se no sofá da saleta contígua, e adormece por vinte minutos, não consegue mais conciliar o sono, se levanta e retorna à sala, caminhando na ponta dos pés (seu lado obsequioso) para não incomodar ninguém. E testemunha a seguinte cena: “Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lençol e contemplara por alguns instantes as feições defuntas[esse romantismo mórbido! Mas Henry James amaria essa reação]… como a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-o na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta… não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúme, note-se, a natureza compô-lo de maneira que não lhe deu ciúme nem inveja, mas dera-lhe a vaidade, que na é menos cativa ao ressentimento… Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver, mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longo, deliciosamente longa. Volto a perguntar: esse homem existia?  Machado já era Nélson Rodrigues antes deste pensar em nascer e escrever suas suburbanas tragédias cariocas e míticas. Freud estudou Hoffmann, o que não faria então com esse texto?

SEGUNDA VOLTA

Recuemos agora para 1845 e ao caso do Sr. Valdemar. O narrador começa dizendo que não se espanta em que o referido caso tenha sido muito discutido: “Torna-se necessário agora que eu exponha os fatos, até onde alcança minha compreensão dos mesmos”  [2]. Ele nos fala então do seu interesse, já de alguns anos, pelo fenômeno do magnetismo (portanto, temos o termo “caso” quase indicando a esfera policial, e o termo “magnetismo” nos levando para o domínio da ciência). Em todas as experiências do gênero havia uma lacuna: nunca nenhum moribundo fora submetido ao magnetismo, para verificar “até que ponto ou por quanto tempo a invasão da morte poderia ser impedida pelo processo magnético. O sonho da ciência: deter a morte. O  lado monstruoso da ciência: servir-se de cobaias.

O escolhido é Ernest Valdemar, a quem já submetera ao mesmerismo e ao hipnotismo, mas sem sucesso devido ou ao seu temperamento muito nervoso ou ao seu precário estado de saúde (“em período algum sua vontade ficava inteira ou positivamente submetida à minha influência”).Valdemar é declarado tísico: “tinha ele o hábito de falar sobre a aproximação de seu fim como de uma questão que não devia ser lastimada nem se podia evitar”. E mostra-se interessado na experiência que o narrador lhe propõe. Combinam que 24 horas antes do prazo marcado pelos médicos para o falecimento, ele será chamado pelo moribundo para efetuá-la. Segundo o narrador, isso acontece sete meses antes do início do relato. Quando chega ao quarto do doente, espanta-se com seu declínio físico (“sua magreza era tão extrema que os ossos da face quase lhe rompiam a pele”), embora conservando a lucidez da mente. Quando os médicos que o tratam se retiram, “falei francamente com o Sr. Valdemar sobre o assunto de sua morte vindoura, bem como , mais particularmente, sobre a experiência vindoura. Ele mostrou-se ainda completamente de acordo e mesmo ansioso por sua realização, e insistiu comigo que a começasse imediatamente”. O narrador o faz a partir das oito da noite do dia seguinte. Ele começa os “passes” para influenciar o moribundo, que horas depois, já tem o pulso quase imperceptível e a respiração estertorosa. Até que ele solta um suspiro que parece o último alento antes da morte: “Cinco minutos antes das onze[a experiência, é evidente, está sendo toda anotada e registrada]percebi sinais inequívocos da influência magnética. O movimento vítreo do olho mudara-se naquela expressão de inquietante exame interior que só se vê em casos de sonambulismo. Os médicos concluem que o homem que acabava de morrer se acha num estado de “sono mesmérico”.  Ele deixa sua cobaia “tranqüila” por algum tempo até que se decide a fazer com que ele execute movimentos: “fiz um esforço para influenciar seu braço direito a acompanhar o meu, que passava levemente para lá  e para cá, por cima de sua pessoa. Em tais experiências com esse paciente, nunca antes eu conseguiria êxito completo… para espanto meu, seu braço bem pronta, embora fracamente, acompanhou todos os movimentos que o meu fazia”.

Ele decide-se então a “conversar” com o Sr. Valdemar: todo seu corpo se agitou em um leve calafrio, as pestanas abriram-se, permitindo que se visse a faixa branca do olho; os lábios moveram-se lentamente e dentre eles, num sussurro, mal audível, brotaram as palavras: Deixe-me morrer assim!” Todos os médicos acreditam que é melhor deixá-lo nesse estado sonolento até advir a morte. O narrador resolve conversar de novo com ele e perguntar-lhe o que quer de fato: “Enquanto eu falava, ocorreu sensível mudança no magnetizado. Os olhos se abriram devagar, desaparecendo as pupilas para cima; toda a pele tomou um ar cadavérico… as manchas héticas, circulares, que até então se assinalavam fortemente no centro de cada face, apagaram-se imediatamente… Ao mesmo tempo, o lábio superior retraiu-se acima dos dentes que até então cobria por completo, enquanto o maxilar inferior caía com movimento audível, deixando a boca escancarada e mostrando a língua inchada e enegrecida. Suponho que ninguém do grupo ali presente estava desacostumado aos horrores dos leitos mortuários, mas tão inconcebivelmente horrenda era a aparência do Sr. Valdemar que houve recuo geral de todos da proximidade da cama.”

Como se vê, Poe se esmera nos detalhes fisiológicos. É o horror a olhos vistos.

Mas o Sr. Valdemar não morreu: “irrompeu dos queixos distendidos uma voz, uma voz tal que seria loucura tentar descrever… parecia alcançar nossos ouvidos, pelo menos os meus, de uma vasta distância ou de alguma profunda caverna dentro da terra… dava-me a impressão que as coisas gelatinosas e pegajosas dão ao sentido do tato”. O  Sr. Valdemar está respondendo ao narrador (lembrem-se que este tentara conversar com ele novamente: “… estava adormecido… e agora… agora… estou morto”. Quase todos abandonam correndo o quarto. O narrador testa a respiração da cobaia no espelho: não há. Tentativas de extrair sangue falham. Movimentos não mais: A única e real demonstração da influência magnética achava-se, então, de fato, no movimento da língua quando eu dirigia uma pergunta ao Sr. Valdemar”. Isso é que é ouvir voz do além! “Era evidente que, até ali, a morte (ou o que se chama usualmente morte) fora detida pela ação magnética. Parecia claro a nós todos que despertar o Sr. Valdemar seria simplesmente assegurar sua morte atual, ou, pelo menos, apressar-lhe a decomposição”. Será que em nenhum momento ele se sente mal por essa experiência horrenda? Não há remorso ou sentimento de interdito: isso não é permitido (mas o quê ou quem não permite, esse é um problema também). Ele faz visitas diárias, durante sete meses, à casa do Sr. Valdemar.  Até que se decidem a despertar o pobre coitado (e segundo o narrador foi o resultado desse despertar que causou toda a celeuma referida no início).

Ele utiliza seus passes para libertar o Sr. Valdemar da influência magnética anterior. Lentamente são obtidos alguns resultados: a íris desce (acompanhada de uma profusão ejaculatória de um pus amarelento, sob a pálpebra, com um odor acre e repugnante), os círculos héticos voltam às faces. O narrador pergunta: Sr. Valdemar, pode explicar-me quais são os seus sentimentos ou desejos agora?” O  Sr. Valdemar: “Pelo amor de Deus… depressa… depressa… faça-me dormir… ou então, depressa… acorde-me… depressa… afirmo que estou morto” . Perplexo, o narrador não sabe o que fazer; na dúvida, tenta despertar o paciente: E estou certo de que todos no quarto se achavam preparados para ver o paciente acordar  [já que mesmo com as horríveis aparências, qualquer simulação de vida nos parece vida, e é preferível à morte]. Para o que realmente ocorreu, porém, é completamente impossível que qualquer ser humano pudesse estar preparado. Enquanto eu fazia rapidamente os passes magnéticos… todo seu corpo, de pronto, no espaço de um único minuto, ou mesmo menos, contraiu-se…. desintegrou-se, absolutamente podre, sob minhas mãos. Sobre a cama, diante de toda aquela gente, jazia uma quase líquida massa de nojenta e detestável putrescência”.

Eis aí o resultado de uma ciência que pretende dominar o que está além do seu alcance. Mas a experiência toda é o lado Hyde do médico: não respeitando os limites, não respeitando a pessoa, sujeitando tudo e todos à idéia de um hipotético avanço: como se vê no conto, a morte foi vencida, e o resultado foi um cadáver vivo.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/03/06/para-seguidores-e-neofitos-de-poe-os-arabescos-de-contos-de-imaginacao-e-misterio/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/22/meu-duplo-no-meio-do-caminho-havia-um-superego/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/22/o-americano-nada-tranquilo-os-200-anos-de-poe/

 


[1] O narrador diz que Garcia acreditava ter “a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo.  O homem de ciência-detetive, personagem padrão da época.

[2] Uso a tradução constante na Ficção completa, poesias & ensaios da Aguilar, de Oscar Mendes.

09/12/2011

EM ROLETEMBURGO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04 de fevereiro de 2003)

É impressionante como várias editoras estão publicando obras de Dostoiévski e como estas ainda vendem bastante. Neste ano de 2003 mesmo, entre os lançamentos figuram novas edições de O idiota e de O JOGADOR  (comentado —aqui— na tradução de Moacir Werneck de Castro), sendo este último particularmente apropriado para uma época onde tanta gente “comum” investe seu tempo e dinheiro no bingo.

Dostoiévski já tinha há anos a idéia de um romance sobre o vício do jogo, do qual ele mesmo era vítima. Apesar disso, a forma que tomou O JOGADOR, escrito em poucas semanas (num período em que ele terminava Crime e Castigo, portanto já estamos na sua grande fase), em 1866, aconteceu porque seu editor o pressionou para entregar um romance pronto dentro de determinado prazo. Isso explica a evidente pressa que marca o andamento do texto (cujos elementos demandariam talvez um vagar maior) e algumas discrepâncias da história. Há até passagens que parecem, num primeiro momento, cochilos do excelente tradutor, como na página 136, onde se lê: “não a encontrara nem uma vez depois do incidente”, contudo parece ser um engano do próprio autor, uma vez que na tradução de Oscar Mendes (nas Obras Completas da Aguilar), pode-se ler: “nem uma vez lhe havia dirigido a palavra depois do incidente” (na edição da José Olympio, Costa Neves parece ter corrigido por sua conta o deslize).

O resultado final de O JOGADOR ficou um pouco estranho: boa parte do tempo aprece uma daquelas histórias curtas, jocosas e humorísticas do tipo A aldeia de Stiepântchikov e seus habitantes; perto do final, entra no clima delirante, abeirando-se do trágico—que não se consuma aqui, mas é o tom que permeia O idiota, por exemplo.

Apesar do título, o narrador-protagonista, Aleksei Ivanovitch, só mergulha no mundo do jogo no capítulo 14 (num total de 17), de modo irreversível, ao que parece. Dostoiévski escapa daquele didatismo naturalista que sempre empana um pouco as histórias sobre vícios e que detalham sua gênese e seus momentos críticos, seja o alcoolismo, sejam as drogas ou outra coisa qualquer, como Farrapo humano, Diário de um adolescente e um vasto etc.

Antes de Aleksei tornar-se jogador, sua narrativa concentra-se na pequena comédia humana em que está envolvido, em Roletemburgo (a qual representa as estações de água onde se pratica a roleta, como Baden Baden ou Wiesbaden), agregado (como preceptor) ao clã de um General arruinado, explorado por gananciosos franceses (a visão xenófoba de Dostoiévski fica bem clara na caracterização de certos personagens não-russos). Todos aguardam a notícia da morte da “babulinka” Antonida Vassilievna, a vovó rica da família.

As pequenas conspirações em torno do General só ganham importância para Aleksei na medida em que envolvem sua enteada, Polina, por quem é apaixonado e que é a típica representante de uma categoria marcante de mulheres no universo dostoievskiano: meio histérica, dúbia, destrutiva e destruidora. Por sua casa, Aleksei se  comporta de modo absurdo, muitas vezes degradante, como se vivesse em estado febril e dissociativo, uma atmosfera que desde O sósia (1848) vai caracterizar o herói típico do grande escritor russo.

As coisas tomam um rumo burlesco quando ao invés de um telegrama anunciando seu esperado “passamento”, aparece em Roletemburgo a “babulinka” em pessoa, a qual, durante dias, joga obstinadamente, perdendo cem mil rublos, acompanhada muitas vezes por Aleksei, que dessa maneira faz o seu aprendizado como futuro jogador. Tirando os capítulos finais, nos quais toda a paixão pelo jogo é descrita com  minúcias admiráveis, a intervenção dessa extraordinária senhora é o grande achado de O JOGADOR e permite, ao leitor, aproveitar o Dostoiévski humorístico, tão fantástico quanto o Dostoiévski trágico. Talvez o romance não tenha saído como ele queria e sonhava. Talvez seja mesmo um livro “menor”. Se essa é uma parcela pequena do gênio do seu autor, na roleta da literatura seria considerada uma fortuna para qualquer outro.

(em 05 de fevereiro de 2005, em A TRIBUNA de Santos, foi publicada a resenha abaixo, a qual reproduzo “enxugada” das passagens que repetem informações do texto acima):

A editora 34 continua firme com as obras de Dostoiévski (1821-1881), e por isso podemos contar novamente com a versão de Boris Schnaiderman para UM JOGADOR[1], já publicada há muito tempo, e onde se contraria, com seu uso do artigo indefinido, a tendência geral em que o título fica mesmo O jogador (é o caso da tradução, também recentemente relançada, de Moacir Werneck de Castro). Isso dá um ar ainda mais universal à pequena tragicomédia do protagonista-narrador, Aleksei Ivanovitch.

Dostoiévski era vítima do vício da roleta e escreveu o pequeno romance às pressas para cumprir prazos de entrega assumidos com seu editor. O resultado final acabou meio dividido, híbrido: boa parte do tempo parece pertencer a um filão recorrente nas suas primeiras obras; aproximando-se do final, entra num clima quase trágico. Comédia de erros se transforma em O mercador de Veneza.

Aléksei Ivanovitch  leva quatorze capítulos para descer ao inferno do jogo (…)

E, de repente, “baboulinka” irrompe em Roletembergo muito viva, roubando a cena, jogando dias e dias obstinadamente, lançando fora cem mil rublos: “Ela trocara sucessivamente todos os seus valores, apólices de cinco por cento, títulos de dívida interna e ações. Cheguei a admirar-me de como ela suportava ficar na cadeira aquelas sete a oito horas, quase sem se afastar da mesa, mas Potapitch contou que, por umas três vezes, ela realmente começara a ganhar muito, e, entusiasmada novamente com a esperança, não conseguira mais afastar-se dali. Aliás, os jogadores sabem como uma pessoa pode passar quase vinte e quatro horas sentada com um baralho, sem desviar os olhos das cartas”.

A intervenção dessa extraordinária senhora continua a ser, para mim, o achado maior de UM JOGADOR, embora a intensidade dos capítulos finais, nos quais a paixão por jogar é descrita, seja algo de definitivo quanto ao tema.

E após toda a discussão a respeito do fechamento dos bingos que envolveu o país, nada mais atual.


[1] No meu exemplar da José Olympio, como tradutor consta Costa Neves, mas Schnaidermann afirma que a tradução lançada nas “Obras Completas” é dele, e não há motivo para duvidar.

30/03/2011

Mr. Hyde emoldurado

 

   A abril coleções relançou uma das traduções brasileiras de O RETRATO DE DORIAN GRAY, a de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn, anteriormente lançada pela Francisco Alves. Por isso, resgatei um artigo em que justamente citava algumas traduções do livro (há mais).

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de fevereiro de 1999)

Quem já tentou assistir ao filme Wilde em São Paulo e se deparou com filas imensas e sessões lotadas não se surpreenderá em saber que a Civilização Brasileira está relançando uma das muitas traduções de O retrato de Dorian Gray (1891). Parece que o grande escritor irlandês entrou em moda novamente.

O único romance de Oscar Wilde conta a história de Dorian, rapaz de 20 e tantos anos, extremamento belo, que  impressiona (para dizer o mínimo) o pintor Basil Hallward e serve-lhe de modelo. Um amigo de Basil, Lord Henry, dândi cínico e espirituoso conhece Dorian no dia em que o quadro está sendo terminado e lhe diz que é uma pena que sua mocidade vá ser preservada na arte e não na vida. Assombrado pela própria beleza e juventude, desesperado com a idéia de perdê-las, Dorian formula o desejo de que a situação se inverta: o quadro poderia envelhecer e ele ficaria intocado pelo tempo. E o pedido é atendido, sabe-se lá por quais potências.

O problema é que, influenciado por Lord Henry, Dorian resolve fazer da sua vida uma experimentação constante, sem limites, o que o leva a uma deterioração moral que se torna visível nas transformações que o quadro sofre. Aos 38 anos, Dorian tenta mudar de rumo e destruir o quadro, mas é tarde demais.

É uma fábula moralista, como se vê. Só que o seu moralismo nada tem de edificante, pelo contrário, é cruel e corrosivo, bem dentro da tradição irlandesa da literatura britânica (Swift e Bernard Shaw, por exemplo).

Ao ler outras vezes O retrato de Dorian Gray, irritei-me com o Mefistófeles do herói, Lord Henry, com seu excesso de aforismos, epigramas e paradoxos (amplificados pelo narrador, que parece espelhar o tom do personagem). Relendo o livro agora, contudo, percebo que é absolutamente necessária à economia da trama a verbalização (aliás, muito sedutora) do cinismo e da amoralidade que a vida de Dorian encarnará (não na sua aparência “imaculada” e sim no retrato escondido num quartinho de sua mansão).

Henry e Dorian (além de Basil, o artista) complementam-se: um é a atitude; o outro, a vivência, a experimentação concreta. Ambas têm como motivação o maior medo do hedonista, daquele que vive para prazer e o momento: o envelhecimento, medo que já causara –por outros motivos– a perdição do Fausto da lenda.

A angústia do envelhecimento, a adoração pela juventude como momento supremo da vida, são recorrentes na literatura inglesa (eco da cultura helênica). E ninguém expressou melhor essas preocupações do que Virginia Woolf na sua suprema obra-prima, As Ondas (1931), no qual seis personagens são “acompanhados” pelo leitor, da infância à velhice, e um sétimo personagem, Percival, morre jovem e belo, permanecendo na mente dos demais como um símbolo do que foi perdido, da plenitude da mocidade e da beleza, tal como o retrato de Dorian o seria, se seu “pacto com o diabo” não tivesse invertido a ordem das coisas.

Ao criar tal situação, Wilde contribuiu para a série de histórias fantásticas nas quais subjazem os fracionamentos primordiais a que o ser humano é submetido nesta vida (Frankenstein, Jekyll & Hyde, A Volta do Parafuso). Só que ele faz isso, disfarçando-o com a mundanidade do tom e a espirituosidade de salão de vários diálogos que podem despistar o leitor do retrato profundamente desmoralizador que pinta da sociedade inglesa. Por exemplo, o seguinte diálogo de Dorian com a Duquesa Gladys: “Espero que o seu marido não a crive de alfinetes, Duquesa”; “Ah, a minha criada já faz isto, quando se aborrece comigo”; “E por que motivo ela se aborrrece, Duquesa”; “Pelas coisas mais banais, garanto-lhe. Geralmente porque entro em casa às dez para as nove e lhe digo que preciso estar vestida às oito e meia”; “Que criatura pouco razoável, deve despedi-la”.

Quanto à tradução de Lígia Junqueira, ela é fluente, de uma maneira que as de João do Rio (a mais tradicional e clássica) e de Oscar Mendes não eram, uma fluência que talvez só a de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn consiga também; porém, eliminou algumas expressões francesas (absolutamente essenciais à atmosfera em que se movimentam os decadentistas Dorian e Henry), principalmente nos primeiros capítulos. Pior ainda, alguns trechos ficaram incompreensíveis, como se pode constatar nas páginas 69 (onde se lê: “A adoração do rapaz por outra pessoa causara-lhe um leve aborrecimento, ou ciúme”; é justamente o contrário, Lord Henry não sente aborrecimento, ou ciúme, por Dorian se interessar por outra pessoa, acha tal fato um “objeto de estudo interessante”); 87 (a fala de Henry: “Dorian é demasiado sábio para não fazer tolices” quando o correto seria “Dorian é sensato, mas pode fazer tolices de vez em quando”) e 108 (“Sua vida valia bem a de Sybil. Se ele a ferira para sempre, ela o machucara por um momento”; o contrário, ou melhor dito, uma formulação mais matizada, parece o correto: “Se ele a magoara por um certo período, ela o destruíra num instante”).

São pequenos detalhes, porém desfiguram a beleza do texto e, no universo de Oscar Wilde, a beleza (e mesmo as conseqüências nefastas da beleza) é tudo. Só que para exprimi-la e preservá-la, se tem de passar pela fealdade inevitável da vida.

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VER TAMBÉM:

https://armonte.wordpress.com/2011/04/08/o-retrato-desfigurado/

https://armonte.wordpress.com/2011/04/12/o-livro-de-cabeceira-de-dorian-gray/

CINCO TRADUÇÕES DE UM TRECHO DE O RETRATO DE DORIAN GRAY:

Trata-se do trecho em que o mefistotélico Lord Henry atiça em Dorian a angústia de envelhecer e perder sua beleza, exaltando o doce pássaro da juventude:

Na versão de João do Rio:

“–Porque o senhor possue uma juventude admirável e a juventude é a única coisa desejável.

__Eu pouco me incomodo.

__ Pouco se incomoda… agora. Um dia verá, quando estiver velho, enrilhado e feio, quando o pensamento lhe houver sulcado a fronte com a sua garra e a paixão marcado os seus lábios de estigmas desfigurantes, um dia verá –dizia– que se há de incomodar amargamente. Em qualquer parte por onde ande atualmente acha prazer. Será sempre assim? A sua figura é admiravelmente bela, mr. Gray. Não se contrarie, porque, de fato, a possue… E a Beleza é uma das formas do Gênio, a mais alta mesmo, pois não precisa ser explicada; é um dos fatos absolutos do mundo, como o sol, a primavera, ou o reflexo nas águas sombrias dessa concha de prata que chamamos a lua…”

Na de Oscar Mendes:

“__ Porque possui uma maravilhosa juventude, e a juventude é a única coisa que vale a pena.

__ Não penso assim, Lorde Henry.

__ Não pensa agora. Algum dia, quando estiver envelhecido, enrugado, feio, quando a meditação lhe tiver murchado a fronte com as suas rugas e a paixão marcado seus lábios com horríveis estigmas, senti-lo-á terrivelmente. Agora, onde quer que apareça, encanta todo mundo. Será sempre assim? O senhor tem um rosto maravilhosamente belo, sr. Gray. Não se zangue. Tem-no de fato. E a Beleza é uma forma do Gênio, pois não precisa ser definida. É uma das realizações absolutas do mundo, como o sol, a primavera, ou o reflexo, nas águas sombrias, dessa concha de prata que chamamos lua.”

Na de Marina Guaspari (que eu nem lembrava mais que tinha, num exemplar das “Edições de Ouro” .minúsculo; talvez seja a minha favorita entre as cinco):

“__Porque o senhor é um prodígio de mocidade, e a mocidade tem valor.

__ Não tenho essa impressão, Lorde Henry.

__ Não a tem agora. Um dia, quando estiver velho e enrugado e feio, quando o pensamento lhe houver traçado vincos na testa e a paixão tiver-lhe crestado os lábios com o seu fogo detestável, terá a impressão que agora não sente: uma impressão terrível. Atualmente, aonde quer que vá, encanta o mundo. Será sempre assim?… Tem um rosto admiravelmente belo, senhor Gray — não tome essa expressão, estou falando verdade–. A beleza é uma forma de gênio…. mais elevada até do que o gênio, pois dispensa explicação. Pertence aos grandes fatos do universo, como a luz do sol ou a primavera, ou o reflexo, nas águas escuras, dessa concha de prata que chamamos lua…”

Na de Lígia Junqueira:

“__ Porque o senhor tem a mais maravilhosa juventude… e a juventude é a única coisa que vale a pena ter-se.

__ Não sinto, Lord Henry.

__ Não sente agora. Mas um dia, quando for velho, e enrugado, e feio, quando o pensamento tiver marcado de sulcos sua testa e a paixão estigmatizado seus lábios com seu fogo horrendo, há de sentir isto, há de senti-lo terrivelmente. Agora, aonde quer que vá o senhor encanta todo mundo. Será sempre assim?… O senhor tem um rosto maravilhosamente belo, mr. Gray. Não franza a testa. Tem, sim. E a Beleza é uma forma de Gênio, pois não requer explicações. É uma das grandes realidades do mundo, como a luz do sol, a primavera, ou o reflexo, em águas sombrias, daquela concha prateada que se chama lua…”

Na de José Eduardo Ribeiro Moretsohn:

“___Porque você possui uma juventude maravilhosa, e a juventude é a única coisa que vale a pena possuir.

__Eu não sinto as coisas desta maneira, lorde Henry.

__ Não sente agora. Um dia, quando estiver velho, enrugado, feio, quando o pensamento vier, com suas linhas, murchar-lhe a testa, e a paixão, com seu fogo medonho, vier cauterizar-lhe os lábios, você vai senti-lo, de modo terrível. Você, agora, onde quer que vá, encanta o mundo. As coisas serão sempre assim?… Você tem um rosto lindo, maravilhoso, sr. Gray. Não franza o cenho, pois é verdade. E a beleza é uma forma de genialidade; é, na verdade, mais elevada que a genialidade, pois não carece de explicação. Pertence aos grandes fatos do mundo, como a luz do sol, a primavera, o reflexo das águas turvas, ou aquela concha de prata a que chamamos lua…”

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