(resenha publicada em 30 de setembro de 1997)
Malgrado sua qualidade inegável, O silêncio dos inocentes marcou um patamar que se revelou mais um mal do que um bem ao longo dos últimos anos. É muito difícil encontrar agora qualquer thriller envolvendo um assassino em série que apresente um mínimo de inteligência e verossimilhança, já que é pedir demais originalidade. E aqui temos o primeiro ponto contra O ALIENISTA (The Alienist, traduzido por Pinheiro de Lemos), publicado há dois anos pela Record e que ganhou edição pelo Círculo do Livro: o déjà vu, a impressão de história gasta.
Outro ponto contra é o seu título. Para o leitor brasileiro, ele está definitivamente associado à obra-prima de Machado de Assis.
Contra o livro de Caleb Carr ainda está o fato de E.L. Doctorow, um dos maiores escritores norte-americanos, ter publicado seu ótimo The waterwork-A mecânica das águas nos EUA no mesmo ano, 1994. E daí? Daí que Doctorow utiliza a mesma época, o mesmo espaço-clímax (o reservatório de água, um ponto vital na arquitetura novaiorquina do século XIX) e um narrador em primeira pessoa na mesma condição (jornalista).
Mesmo assim, com tudo contra, O ALIENISTA é um belo romance. Nele, há um serial killer matando e mutilando garotos imigrantes extremamente jovens (abaixo dos quinze anos) que se prostituem na Nova Iorque de 1896. O comissário Teddy Roosevelt (o qual mais tarde será presidente), responsável por um polêmico e combatido programa de moralização da polícia, monta uma equipe inortodoxa para tentar capturar o psicopata.
Dessa equipe participam John Schuyler Moore, o narrador, jornalista do Times; Sara, que pretende tornar-se a primeira mulher investigadora; Marcus e Lucius, irmãos que se dedicam ao lado “científico” da criminologia, introduzindo noções “modernas” como o recolhimento de digitais; Cyrus e Mary Palmer, indivíduos que já cometeram violentos homicídios; e o líder, dr. Laszlo Kreizler, o “alienista” do título, que tenta aplicar os princípios da incipiente psicanálise para descobrir o assassino e renovar a ciência criminal (e, quem sabe, melhorar a sociedade). Para alcançar esse fim, ele treina sua “equipe” a montar o “perfil psicológico” do matador de prostitutos:
“…devíamos envidar todos os esforços possíveis para nos livrarmos de preconceitos sobre o comportamento humano. Não devíamos tentar ver o mundo através de nossos próprios olhos nem julgá-lo por nossos próprios valores, mas sim, com a mente de nosso assassino. A experiência dele, o contexto de sua vida, era tudo que importava. Qualquer aspecto de seu comportamento que nos desconcertasse, do mais trivial ao mais horrendo, devia ser explicado por eventos em sua infância que poderiam levar a tais eventualidades. Esse processo de causa e efeito—que aprenderíamos em breve ser chamado de determinismo psicológico—talvez nem sempre nos parecesse lógico, mas seria coerente. Kreizler realçou que nada de positivo resultaria de conceber aquela criatura como um monstro, porque era com certeza um homem (ou uma mulher), e esse homem ou mulher fora outrora uma criança”.
Ao contrário dos toscos filmes e livros que utilizam psicologia de araque para embasar suas tramas de psicóticos, O ALIENISTA encanta o leitor pela sua meticulosidade, pela capacidade de ir realmente construindo a personalidade do assassino, ao mesmo tempo que envereda pelas relações entre os membros da equipe e pela metrópole que Nova Iorque já era em 1896.
Aliás, o “perfil” que monta da Nova Iorque fin-de-siècle é outro aspecto muito bem sucedido do thriller de Caleb Carr, principalmente por lançar sombra sobre o presente (as notícias aterradoras que estão vindo à tona sobre redes de pedofilia, por exemplo). O ALIENISTA executa uma arqueologia do presente, mergulhando nas raízes das contradições da cidade paradigmática dos EUA. Não da forma simbólica e enviesada que caracteriza A mecânica das águas, porém de uma forma tão convincente que o leitor se sente tentado a pensar que Nova Iorque só poderia ser assim na década de noventa do século passado.
E fazendo o presente se inscrever no passado (assim como o assassino adulto que comete crimes em Nova Iorque está inscrito no garoto da cidadezinha de New Paltz). Carr evita habilmente o grande risco dos anacronismos, dos detalhes que ficariam inverossímeis demais colocados numa época passada e numa mentalidade distante. Lemos a Nova Iorque de 1896 pensando na Nova Iorque dos nossos dias, e a sobreposição das duas qualifica O ALIENISTA como o mais expressivo romance de mistério e suspense da década:
“Sabe, estive pensando que ainda podia sentir compaixão pelo homem, apesar de tudo que ele fez, por causa do contexto de sua vida. Cheguei a pensar que finalmente o conhecia.
Kreizler sacudiu a cabeça.
Não pode, John. Não tão bem assim. Talvez possa se aproximar o suficiente para se antecipar, mas no final, nem você nem eu nem qualquer outra pessoa poderá ver o que ele vê quando olha para as crianças, ou sentir exatamente as emoções que o levam a empunhar a faca. A única maneira de aprender tais coisas seria…—Kreizler virou-se para a janela, com uma expressão distante—…seria perguntar a ele”.
Recusando o ritmo de história em quadrinhos ou mesmo do cinema na condução da sua trama, nem por isso Carr deixa de tornar empolgante a tentativa do dr. Kreizler de ficar cara a cara com o assassino de forma a lhe fazer perguntas vitais. Deixo para o leitor descobrir, lendo um livro primoroso em seu gênero, se ele consegue ou não.
Quanto à edição do Círculo do Livro, nada contra, a não ser não terem conseguido encontrar uma capa tão expressiva quanto a da Record (uma foto inquietante de Alfred Stieglitz), que por si só já chamava a atenção para o romance de Carr nas livrarias.
NOVAS AVENTURAS DO DOUTOR KREIZLER E CIA.
(resenha publicada em 23 de maio de 2000)
Em O ANJO DAS TREVAS (The angel of darkness, 1997, traduzido por Raquel Zampil), um dos grandes lançamentos deste ano, Caleb Carr coloca em ação o mesmo grupo de personagens de O alienista (1994): o dr. Lazslo Kreizler, que tenta aplicar princípios da psicanálise para renovar a criminologia; os irmãos judeus Marcus e Lucius, sargentos-detetives, que se dedicam ao lado “científico” da investigação policial (preocupam-se com “modernidades” como recolhimento de impressões digitais e provas balísticas); Sara Howard, que se tornou a primeira mulher detetive particular; John Schuyler Moore, jornalista do Time e inveterado boêmio; Cyrus, negro que já cometeu um crime horrível e que trabalha para Kreizler, assim como Stevie, um moleque que era marginalzinho das ruas. Este último é o narrador do livro, substituindo Moore, que preenchia essa função na história anterior. Portanto, um grupo de pessoas nada ortodoxo na cultura norte-americana (como ela mesma gosta de se ver e proclamar ao mundo) e cuja visão em conjunto deixa as pessoas intrigadas e cheias de suspeitas (e a eles reunir-se-á, em O ANJO DAS TREVAS, um pigmeu filipino).
Se é o mesmo grupo em cena e a mesma época (final do século passado), há uma diferença fundamental entre as duas tramas: em O alienista, essa equipe procurava reconstruir, por assim dizer, a personalidade de um assassino que matava e mutilava michês novinhos, e cuja identidade só era descoberta no final; já em O ANJO DAS TREVAS, logo se sabe quem é a raptora da filha de um funcionário da embaixada espanhola na Nova Iorque de 1897, com os EUA vivendo um clima de preparação de guerra contra a Espanha.
E o fato de os investigadores do rapto chegarem não só à identidade da criminosa, Libby Hacht, como também ao local onde ela mantém o bebê escondido, transforma-se num dos encantos da leitura do livro de Carr. Isso acontece no 16º capítulo (são 59 ao todo), na página 189. E o leitor se pergunta: como serão recheadas aos outras 530 páginas? Afinal, 90% de O alienista acontecia sem que houvesse um confronto direto com o psicopata, que era um fantasma que ganhava corpo e vida aos poucos, com as deduções e descobertas meticulosas dos membros da equipe kreizleriana.
Pois o leitor não precisa duvidar: Caleb Carr realiza a mágica de preencher as 530 páginas com uma das tramas mais brilhantes da literatura policial. Nossos heróis, impedidos de resgatar a filhinha do diplomata espanhol no primeiro confronto com Libby Hacht, se dedicam a montar uma engenhosa armadilha que a apanhará. Para isso, começam a investigar o seu passado, o que os levará para fora de Nova Iorque, para as cidadezinhas ao norte do estado, especialmente Ballston Spa, onde descobrirão que, entre outras coisas (é bom não revelar muito), essa espantosa assassina matou dois filhos e quase conseguiu dar cabo da filha mais velha. A sobrevivente nunca mais falou com ninguém e o dr. Kreizler tenta fazer com que ela se comunique novamente, pois Rupert Picton, promotor amigo de Schuyler Moore, resolve levar Libby a julgamento por esse crime (embora tenham acontecido muitos, muitos outros e, ao longo da narrativa, acontecerão muitos, muitos outros mais).
É lógico que a reconstituição da época (e principalmente da sua mentalidade) é uma das preocupações obsessivas de Carr. Em O ANJO DAS TREVAS, um de seus objetivos básicos é discutir a incapacidade do senso comum em aceitar a violência praticada pela mulher. Ou seja, que uma mulher possa ter uma mente criminosa como o homem e, mais ainda, que uma mãe possa querer destruir fisicamente seus filhos. Esse senso comum é que atrapalha e embaraça as investigações de Kreizler & Cia, as quais são feitas com o mesmo vagar e com o mesmo apuro nos detalhes que já impressionavam na obra anterior. Que fique claro: quem gostar de ritmo frenético, de uma narrativa “cinematográfica” (como se costuma atribuir como qualidade de certos autores policiais e mesmo fora do gênero), não tolerará a leitura de O ANJO DAS TREVAS. Carr é um escritor que pede todo o tempo do mundo do leitor, mas a morosidade com que sua narrativa se constrói não a enfraquece de forma alguma. Muito pelo contrário, estamos diante de um autor que acredita na solidez de um enredo impecavelmente arquitetado e apresentado de uma forma que parece, ao leitor, estar experimentando o que o personagem experimenta. A impressão que temos é que dormimos, acordamos, trabalhamos, comemos, bebemos e corremos perigo junto com esses personagens de 1897.
Assim, o leitor se torna uma engenhosa armadilha para o leitor também, que fica com má vontade de retornar à sua vida de todo dia e se afastar do universo da trama, algo que só parecia possível nos romances oitocentistas. E as explicações psicológicas para o comportamento de Libby Hacth, a Medéia de Ballston Spa, conseguem o milagre, raríssimo em histórias desse tipo, de ganhar a dimensão de descobertas sobre a mente humana, cuja discussão nunca amesquinha os fatos como mera moldura para teoriazinhas.
E vários fatos nunca serão explicados, como já afirmava o advogado de Libby Hacht, o ilustre Clarence Darrow (que existiu realmente), durante o seu julgamento, nem com toda a meticulosidade de Kreizler/Carr. Um deles, por exemplo, é o motivo que levou a Record, que tinha melhorado de forma visível , a regredir tão lamentavelmente e colocou no mercado um resultado tão rampeiro quanto a sua edição de O ANJO DAS TREVAS, a qual sequer tem orelhas nas capas e vem com , digamos, ilustrações que parecem ter sido encomendadas a crianças do jardim da infância e que deveriam ter sido liquidadas pela psicopata do livro. E qual terá sido a Libby Hacht do mundo editorial que sugeriu o preço assassino de sessenta reais?! Que leitores poderão apreciar o talento de Caleb Carr e seu ótimo thriller com tal preço psicótico?
O Alfredo é muito minucioso mas cometeu um pequeno equívoco em uma das fotos. O escritor Harlan Coben é que está na foto ao lado da foto da capa da edição do Círculo do Livro de “O Alienista”. Caleb Carr tem longos cabelos e usa óculos, parece um eterno estudante de Harvard. Mas os dois tem um fato em comum: são escritores de livros policiais. Eu li um livro de Coben: “NÃO CONTE A NINGUÉM” (depois de lê-lo eu quase prometi “não contar a ninguém” mesmo). E este livro de Coben tem uma premissa ótima e um início arrasador mas, do meio pra frente, tudo vai ladeira abaixo. Aqui, na minha opinião, e discordando do Alfredo, existe um ponto em comum com o Caleb Carr e seu “O Alienista”: a ótima premissa. Mas, infelizmente, também mal aproveitada por Carr. Isto é uma simples opinião de leitor e não uma sentença de morte. Pois então lá vai a minha opinião: A narração do Sr. Moore é totalmente anacrônica, uma personagem feminina (Sara Howard) parece ter saído de um destes filmes policiais modernos da Angelina Jolie e não da época do livro e, tirando os vilões, os outros personagens são todos muito politicamente corretos (imaginar tanta preocupação com os homossexuais naquela época é forçado demais), Lazlo Kreizler é um arremedo de Sherlock Holmes e o final, que poderia ser a redenção do livro, não foi nada disso, foi isto sim um verdadeiro “letdown”. O livro é completamente ruim? Não, é claro que não, só uma grande decepção mesmo. Com aquela foto da capa, do grande fotógrafo americano Alfred Stieglitz (1864-1946), ele prometia mais. Tem seus momentos, poucos para mim, como a visita ao personagem Jesse Harding Pomeroy, um verdadeiro serial killer do século XIX. Não dá para olhar para uma foto de Pomeroy e não sentir uma certa inquietação, imagine ao vivo e a cores dentro de uma cela. É provável que este encontro, entre Kreizler e Pomeroy, tenha sido um oportunismo de Carr que tomou uma certa liberdade pois, até onde eu sei, Pomeroy nunca esteve preso na Prisão de Sing Sing (no estado de Nova Iorque) mas sim na Prisão Estadual de Charlestown (estado de Massachusetts). Mas, isto é um pequeno detalhe pois ele parece ter se esforçado na pesquisa histórica da velha cidade de Nova Iorque e isto é um ponto positivo a favor dele.
Quem gosta de frequentar sebos fará melhor negócio procurando um livro muito mais original que este de Carr. Um livro escrito em 1970, pelo americano Richard Neely, “WALTER SYNDROME” (no Brasil saiu pela Record com o nome de “FUROR HOMICIDA”). Também fala de um serial killer, também em Nova Iorque mas só que no século XX (na década de 30). No livro há um psicopata sexual que aterroriza Nova York, matando e mutilando mulheres e a história é contada por três pessoas diferentes e depois interligadas de forma hábil por Neely. O mais interessante talvez não seja o “whodunit” (muita gente pode sacar a coisa com certa antecedência) mas a forma meio caótica e hipnótica da narrativa e a maneira como ele nos abre a mente de um psicopata. Não estou chamando de obra-prima, mas é um livro legal e diferente, muito antes de qualquer coisa escrita por Thomas Harris, Patricia Cornwell ou Caleb Carr. Guardada as devidas proporções, o livro de Richard Neely me lembra Robert Bloch (1917-1994), Cornell Woolrich (1903-1968) e, mais ainda, o genial Fredric Brown (1906-1972), um escritor que hoje é injustamente esquecido.
Na capa do livro, da editora Record, lemos uma citação do jornal Chicago Sun-Times: “Um romance de alta tensão, pouco recomendado para pessoas impressionáveis”. E Richard Neely, singelamente, na dedicatória, escreveu: “para minha esposa”…
Comentário por Cássio Queirós — 29/12/2010 @ 17:48 |
Para você ver como é o negócio da opinião. Eu simplesmente adorei os livros de Carr. Ah, obrigado pelo toque da foto. E feliz 2011.
Comentário por alfredomonte — 29/12/2010 @ 18:02 |
Poxa vida, isto é que é rapidez para responder e para trocar uma foto. Você é mais “rápido no gatilho” do que aquela tal de Sara Howard, caro Alfredo. Quanto a opiniões… Eu apreciava mais as críticas negativas de Pauline Kael do que as positivas. Ela era tão brilhante em seus argumentos que quase, eu disse “quase”, me convencia. Feliz 2011 para você também e, falando em Kael, em setembro deste mesmo 2011 vão se completar 10 anos que ela faleceu por causa da doença de Parkinson. Junto com Judith Crist (com seus 88 anos de idade) e Dilys Powell (1901-1995), ela foi a maior crítica de cinema que já tive oportunidade de ler e conhecer. Aquela “baixinha” (menos de 1,5 m) faz uma falta danada.
Comentário por Cássio Queirós — 29/12/2010 @ 18:31
Finalizei a leitura do livro O alienista e procurando algumas bases na internet encontrei os comentários do Alfredo.
Apreciei a leitura e a construção dessa história, mas concordo com o Cássio sobre os personagens do livro,apesar de que essas figuras são bens comuns neste tipo de literatura.
Comentário por Isabel — 18/01/2011 @ 19:59 |
Obrigado pelo seu comentário, Isabel. Um abraço.
Comentário por alfredomonte — 21/01/2011 @ 13:12 |