MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

08/08/2012

O Teatro Mágico do “eu” dividido: “O lobo da estepe”

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de setembro de 2000

    Falta pouco para o século terminar e naturalmente tendemos a fazer as contas. Que obras literárias ficarão? Daí a importância do reaparecimento nas livrarias, em nova edição, daquelas em cuja sobrevivência apostamos. É o caso de O LOBO DA ESTEPE (“Der Steppenwolf, 1927; a tradução é de Ivo Barroso), a mais famosa das obras-primas de Hermann Hesse (1877-1962).

   Harry Haller, o protagonista, está chegando aos 50 anos obcecado pela ideia de degolar-se com uma navalha, para fugir da angustiante divisão do seu ser em duas personalidades: uma, burguesa, que deseja calor, companhia (ele, um errante, sempre se hospeda em casas que lembam sua infância); outra, que ele denomina de “lobo da estepe”, misantropa e desadaptada, destinada à solidão e orgulhosa dessa condição. No fundo, é a velha dicotomia entre o “mundo luminoso” e o “mundo sombrio” que atormentava Emil Sinclair em Demian.

    Doris Lessing, a respeito de The golden notebook- O carnê dourado, romance que tem muitas afinidades com O LOBO DA ESTEPE, inclusive por causa da estrutura ousada e complexa, afirmou que às vezes pirar é uma forma de autocura, uma maneira de nosso eu interior eliminar falsas dicotomias e divisões. É o que acontece com Harry Haller: ele é convidado a participar de um Teatro Mágico (o qual o tradutor, Ivo Barroso, interpreta como disfarce metafórico para o uso de drogas, numa decifração meio pobre), “só para raros e loucos”.

     Esse teatro é sua própria personalidade. Hesse investe contra a pretensa unidade do eu. Na verdade, somos um feixe de eus: “Não há nenhum eu, nem mesmo o mais simples, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas.. Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma (…) Nosso Lobo da Estepe crê levar também em seu peito duas almas (lobo e homem) e por isso sento o peito demasiadamente oprimido e estreito… Crê, como Fausto, que duas almas são demais para um só peito e podem arrebentar com ele. Mas, ao contrário, são demasiado poucas…”

      E Harry, ao longo do romance, irá experimentar algumas das suas outras almas, numa saudável esquizofrenia, por assim dizer, tendo como guias Hermione e Pablo. Hermione é seu duplo feminino, a cortesã que o obriga imperativamente a usufruir da vida, a dançar, a praticar intensamente o sexo (não com ela, entretanto), a se dissolver “na festa” (lembre-se, leitor, que O LOBO DA ESTEPE se passa nos anos 20 e a euforia desenfreada e desesperada que marcou essa década se insinua no romance de Hesse, embora de forma menos óbvia do que nos textos de Scott Fitzgerald; a atmosfera das experiências de Harry lembra também a dos textos de Arthur Schnitzler, o austríaco que inspirou De olhos bem fechados, de Kubrick). Aliás, a cena do baile à fantaisa é um dos grandes momentos de um livro da mais alta qualidade literária.

Pablo, por sua vez, é o belo músico aparentemente burro e tolo, mas que se revela o guia para os mais recônditos cenários do Teatro Mágico, aqueles onde Harry terá que se deparar com suas almas mais sombrias e estranhas, que paradoxalmente servirão para divertir os imortais Goethe e Mozart, os ídolos artísticos do Lobo da Estepe. Pois uma das “lições” da história de Harry Haller é que se precisa do humor, acima de tudo; para se encarar a vida a sério é necessário não se levar a sério. Como o Mozart do Teatro Mágico diz a Haller: “Aprenda a levar a sério o que merece ser levado a sério, e a rir de tudo o mais!”

    Contudo, o melhor de O LOBO DA ESTEPE é que não há soluções ou verdades definitivas, nem o personagem acaba bem, apaziguado, conciliado. Esse livro, na terceira leitura, como na primeira (e provavelmente numa quinta ou décima) é um duro e perturbador reaprendizado da sensibilidade e da percepção do mundo e, mesmo numa releitura, sempre se poderá repetir a seu respeito o comentário de Thomas Mann, numa carta de janeiro de 1928 ao amigo Hesse (essa correspondência é um dos amores da minha vida de leitor): O Lobo da Estepe conseguiu me ensinar novamente depois de muito tempo o que significa ler”. E sempre restará ao leitor a esperança de, na próxima leitura, ter aprendido a jogar melhor o jogo da existência, desejo formulado por Harry nas frases finais.

17/04/2011

GUGLIELMO, GUILHERME, WILLIAM: os trinta anos de O NOME DA ROSA

(resenha publicada de forma mais condensada em A TRIBUNA de Santos, em 28 de dezembro de 2010)

De vez em quando surge um livro que se torna fundamental (além de   sua qualidade) por satisfazer anseios de que os leitores talvez nem tivessem consciência. Um grande exemplo é O nome da rosa [Il nome della rosa]. Lançado em 1980 (no Brasil, foi traduzido em 1983 pela Nova Fronteira, que vivia então um grande momento), fez com que descobríssemos,  maravilhados, que não havia dicotomia entre o prazer da leitura e a exigência literária, que ninguém precisava se envergonhar de amar a fabulação narrativa, que isso não nos tornava escravos da indústria dos best sellers e da facilidade, que podia haver fruição de uma narrativa bem-arquitetada sem culpa, de que era possível ainda se escrever no sentido do folhetim: um livro a se devorar, absorvente do começo ao fim, ainda que fosse um  truque de prestidigitação, escondendo questões menos palatáveis e acessíveis ao gosto popular.

Os anos só confirmaram essa miraculosa alquimia conseguida por Umberto Eco: eu mesmo já li cinco vezes O nome da rosa (a última delas, há poucos dias,  aproveitando seu relançamento recente pela Record, a qual, com um mínimo trabalho de revisão, utiliza a tradução da Nova Fronteira, realizada por Aurora Fornoni Bernardini & Homero Freitas de Andrade; o detalhe mais notável é terem modificado o”despenseiro” Remigio para “celeireiro”) e, após tê-lo devorado da primeira vez pela sua história engenhosa e bem urdida, nunca deixo de encontrar coisas novas e surpreendentes em sua tessitura textual (sei por exemplo,agora, apesar de Eco alertar para o perigo de se abandonar o livro nas primeiras 100 páginas, que elas não são problema para o leitor comum, e sim o terceiro dia, o mais árduo em termos de leitura “comum”, pois praticamente nada acontece e ficamos mais no esclarecimento das seitas heréticas do século XIV; e no entanto mesmo isso é uma armadilha do grande escritor italiano, já que é neste terceiro dia que ocorre o encontro amoroso-sexual de Adso com a moça sem nome), e sempre sou atraído de novo para ele devido ao seu carisma e qualidade de romance único (e olhe que não faltaram imitações).Pode-se dizer que, em certo sentido, é  “o” livro da nossa época.

Em qualquer nível de leitura, o que nos mobiliza é a inesquecível dupla central: o narrador beneditino (já velho, tomado por um sentimento apocalíptico de “fim de mundo”,  aliás utilizando todos os clichês do tempo a respeito, relembrando seu tempo de  noviço), Adso de Melk, e seu mestre franciscano (e que seria um Sherlock Holmes, se no fundo não fosse uma paródia do método sherlockiano [1]), Guilherme (no original, Guglielmo; e na imperdoável versão cinematográfica, numa incrível interpretação de Sean Connery, William) de Baskerville, em suas aventuras durante sete dias, em 1327, numa abadia italiana, onde ocorre uma série de crimes enquanto se dá um encontro entre uma legação papal (chefiada por inquisidores) e membros de ordens mendicantes (consideradas heréticas) ligados ao imperador Ludovico (que se opõe a João XXII) para discutir se Cristo e seus apóstolos eram ou não pobres; na verdade, como observa Guilherme,  a questão mesmo é decidir se a igreja deve ser pobre, num momento em que ela se define pela corrupção e pela pompa desmoralizadora, e, mais ainda, se deve abdicar de sua intervenção no mundo secular, assunto que nunca saiu de moda, como vimos nas últimas eleições. Como pano de fundo, a idéia das seitas heréticas como “um mundo de ponta cabeça”, uma realidade que se quer monolítica virada ao avesso[2].

A abadia é famosa por sua biblioteca, cujo acesso é proibido. Ao tentar penetrá-la, Guilherme e Adso descobrem um labirinto. Monges morrem por causa de um manuscrito  envenenado (em todos os sentidos), cuja aquisição remonta à história secreta da sucessão dos bibliotecários do lugar.

O mistério e sua investigação nos colocam diante de uma visão abissal (porque roça a questão do poder e da autoridade) da ordem e da desordem: a cristandade (da maneira como se configurou), as ricas abadias, o labirinto, o conhecimento livresco, o romance policial clássico, tudo isso tenta promover um ideal de ordem no mundo (muitas vezes, aliás, tentando mantê-lo estático e imutável, como o conhecimento trancado na biblioteca labiríntica), enquanto os acontecimentos parecem indicar que a desordem e o caos são, no fundo, inerentes á vida: “Encontro o deleite mais jubiloso em desenredar uma bela intriga e intrincada intriga… como filósofo,  duvido que o mundo tenha uma ordem, consola-me descobrir, se não uma ordem, pelo menos uma série de conexões  em pequenas porções dos negócios do mundo”.[3]

A ordem monolítica virada do avesso vai transtornar até os sonhos de Adso como jovem em formação que está aprendendo a “ler” o mundo, como vemos na deliciosa passagem abaixo, com sua sibilina referência a Freud e ao desconstrucionismo advindo dele:

“__ Tu vivestes nestes dias, meu pobre rapaz, uma série de acontecimentos em que toda regra justa parece ter sido desfeita. E de manhã reaflorou em tua mente adormecida a lembrança de uma espécie de comédia em que, seja mesmo talvez com outras intenções, o mundo virou de cabeça para baixo… para reviver um grande carnaval em que tudo parece andar pelo lado errado e, todavia… cada um faz exatamente aquilo que faz na vida. E no fim te perguntaste, no sonho, qual é o mundo errado, e o que quer dizer andar de cabeça para baixo. Teu sonho não sabia mais o que era o alto e onde o baixo, onde a morte e onde a vida. Teu sonho duvidou dos ensinamentos que recebeste.

__ Mas então os sonhos não são mensagens divinas, são devaneios diabólicos, e não contêm verdade alguma?

__ Não sei, Adso, disse Guilherme. Já temos tantas verdades nas mãos que no dia em que aparecesse também alguém pretendendo tirar uma verdade de nossos sonhos, então estariam realmente próximos os tempos do Anticristo…”

“__ Tu hai vissuto in questi giorni, mio povero ragazzo, una serie di avvenimenti in cui ogni retta regola sembra essersi sciolta.  E stamane è riaffiorato alla tua mente addormentata il ricordo di uma specie di commedia in cui, sia purê forse con altri intenti, il mondo si poneva a testa in giù… un gran carnevale in cui tutto sembra andare per il verso sbagliato, e tuttavia… ciascuno fa quello che ha veramento fatto nella vita. E alla fine ti sei chiesto, nel sogno, quale sia il mondo sbagliato, e cosa voglia dire procedere a testa in giù. Il tuo sogno non sapeva più dove fosse l´alto e dove il basso, dove la morte e dove la vita. Il tuo sogno ha dubiato degli insegnamenti che hai ricevuto.

__ Ma allor i sogni non sono messaggi divini, sono vaneggiamenti diabolici, e non contengono nessuna verità!

__ Non lo so, Adso- disse Guglielmo. Abbiamo già tante verità nelle mani che il giorno che arrivasse anche qualcuno a pretender di cavare una verità dai nostri sogni, allora sarebbero davvero prossimi i tempi dell`Anticristo…”

Esses elementos todos se combinam numa cosmologia borgiana, onde uma biblioteca, quem diria, contém aventuras e perigos que colocam no chinelo qualquer Indiana Jones. Se “o paraíso deve ser algo bem parecido com uma biblioteca” (Borges), também aí pode haver a Queda. Nem todas as árvores do conhecimento podem ser tocadas. Sob o risco de o homem, abandonado por Deus, ter de pensar por si mesmo:

“__ Mas quem tinha razão, quem tem razão, quem errou? –perguntei perdido.

__ Todos tinham a sua razão, todos erraram.

__ E o senhor, gritei num ímpeto de rebelião, por que não toma posição, por que não me diz onde está a verdade?”

Guilherme permaneceu um tempo em silêncio, levantando em direção à luz  a lente na qual estava trabalhando. Depois abaixou-a sobre a mesa e me mostrou, através da lente, um instrumento de trabalho: Olha, disse-me, o que estás vendo?

__ O instrumento, um pouco maior.

__ É isso, o máximo que se pode fazer é olhar melhor.”

“__Ma chi aveva ragione, chi ha ragione, chi ha sbagliato?-domandei smarrito.

__ Tutti avevano la loro ragione, tutti hanno sbagliato.

__ Ma voi,  gridai quasi in un ímpeto di rebellione, perché non prendere posiozine, perché non mi dire dove sta la veritá?

Guglielmo stette alquanto in silenzio, sollevando verso la luce la lente Allá quale stava lavorando. Poi la abbassò sul tavolo e mi mostro, attraverso la lente, un ferro da lavoro: Guarda, mi disse, cosa vedi?

__Il  ferro, un poco più grande.

__Ecco, il massimo che si può fare è guardare meglio.”


[1] “Diante de alguns fatos inexplicáveis deves tentar imaginar muitas leis gerais, em que não vês ainda a conexão com os fatos de que estás te ocupando; e de repente, na conexão imprevista de um resultado, um caso e uma lei, esboça-se um raciocínio que te parece mais convincente do que os outros. Experimentas aplicá-lo em todos os casos similares, usá-lo para daí obter previsões, e descobres que adivinhaste. Mas até o fim não ficarás nunca sabendo quais predicados introduzir no teu raciocínio e quais deixar de fora. E assim faço eu agora. Alinho muitos elementos desconexos e imagino as hipóteses. Mas preciso imaginar muitas delas, e numerosas delas são tão absurdas que me envergonharia de contá-las. Vê, no caso do cavalo Brunello, quando vi as pegadas, eu imaginei muitas hipóteses complementares e contraditórias… Eu não sabia qual era a hipótese correta até que vi o despenseiro e os servos que procuravam ansiosamente. Então compreendi que a hipótese de Brunello era a única boa, e tentei provar se era verdadeira, apostrofando os monges como fiz. Venci, mas também poderia ter perdido. Os outros consideraram-me sábio porque venci, mas não conheciam os muitos casos em que fui tolo porque perdi, e não sabiam que poucos segundos antes de vencer, eu não estava certo de não ter perdido…”

“Di fronte ad alcuni fatti inspiegabili tu devi provare a immaginare molte leggi generali, di cui non vedi ancora la connessione coi fatti di cui ti occupi: e di colpo, nella connessione improvisa di un resultato, un caso e una legge, ti si profila un ragionamento che ti pare più convincente degli altri. Provi ad applicarlo a tutti i casi simili, a usarlo per trarne previsioni, e scopri che avevi indovinato. Ma sino alla fine non saprai mai quali predicati introdutre nel tuo ragionamento e quali lasciat cadere. E cosi faccio ora io. Allineo tanti elementi sconessi e fingo delle ipotesi. Ma ne devo fingire molte, e numerose sono quelle cosi assurde che mi vergognerei di dirtele. Vedi, nel caso dell cavalo Brunello, quando vidi le tracce, io finsi molte  ipotesi complementari e contraddittore… Allora capii che l´ipotesi di Brunello era la sola buona, e cercai di provare se fosse vera, apostrofando i monaci come feci. Vinsi, ma avrei anche potuto perdere. Gli altri mi hanno creduto saggio perché ho vinto, ma non  conoscevano i molti casi in cui sono stato stolto perché ho perso, e non  sapevano che pochi secondi prima di vencere io non erro sicuro che non avessi perduto…”

[2] O que diz Remigio, o despenseiro (ou celeireiro)sobre sua juventude “herética”, como assecla de Frei Dulcino:

“Dulcino representava a rebelião, e a destruição dos senhores… Foi, não sei como dizer, uma festa dos loucos, um grande carnaval… respirávamos um ar… posso dizer  de liberdade? Não sabia antes o que era a liberdade, os pregadores nos diziam: A verdade vos tornará livres. Sentíamo-nos livres, pensávamos que era a verdade. Pensávamos que tudo aquilo que professávamos era justo.”

“Dolcino rappresentava la ribellione, e la distruzione dei signore… È stata… non so come dire, una festa dei folli, un bel carnevale… respiravamo un´aria…posso dire di libertà? Non sapevo prima cosa fosse la libertà, i predicatori ci dicevano: La verità vi farà liberi. Ci sentivamo liberi, pensavamo che fosse la verità.  Pensavamo che tutto quello che facevamo fosse giusto…”

Ou, em outro sentido, a inversão e perversão do papel de uma biblioteca, tal como praticada na abadia:

“__ Não poderia, lendo Alberto, saber o que poderia ter dito Tomás? Ou lendo Tomás, saber o que tinha dito Averroes?

Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si. À luz dessa reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era então o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de forças não domáveis por uma mente humana, tesouro de segredos emanados de muitas mentes, e sobrevividos à morte daqueles que os produziram, ou os tinham utilizado.

__ Mas então, eu disse, de que serve esconder os livros, se pelos livros se pode chegar aos ocultos?

__ No decorrer dos séculos não serve para nada. No arco dos anos e dos dias  serve para alguma coisa. Vê como nos encontramos de fato perdidos.

__ E então uma biblioteca não é um instrumento para divulgar a verdade, mas para retardar sua aparição?-perguntei estupefato.

__ Não sempre e não necessariamente. Neste caso é.”

“__ Non potresti, leggendo Alberto, sapere cosa avrebbe potuto dire Tommaso? O leggendo Tommaso sapere cosa avesse detto Averroè?

Ora mi avvedevo che non di rado i libri parlano  di libri, ovvero è come si parlassero fra loro.  Alla luce  di questa riflessione, la biblioteca  mi parve ancora più inquietante.  Era dunque il luogo di un lungo e secolare  sussurro,  di un dialogo impercettibile  tra pergamena e pergamena, una cosa viva, un ricettacolo  di potenze non dominabili da una mente umana, tesoro di segreti emanati  da tante menti,  e sopravvissuti alla morte  di coloro che li avevano prodotti, o se ne erano fatti tramite.

__ Ma  allora, dissi, a che serve nascondere i libri, se dai libri palesi si può risalire a quelli occulti?

__ Sull´arco dei secoli non serve a nulla. Sull´arco degli anni e dei giorni serve a qualcosa. Vedi infatti come noi ci troviamo smarriti.

__ E quindi una biblioteca  non è uno strumento per distribuire la verità, ma per  ritardarne l`apparizione?- chiesi stupiro.

__ Non sempre e non necessariamente. In questo caso lo è.”

[3] “O máximo de confusão somado ao máximo de ordem: parece-me um cálculo sublime. Os construtores da biblioteca eram grande mestres.”

“Il massimo di confusione raggiunto con il massimo di ordine: mi pare un calcolo sublime. I costruttori della biblioteca erano dei gran maestri.”

14/01/2011

A velha disputa entre a prima rica e o primo pobre: Dona Paródia e Seu Pastiche

tabajara ruaso detetive sentimental

O DETETIVE SENTIMENTAL PERDE-SE NO BESTEIROL

   O herói de O Detetive Sentimental é Cid Espigão, investigador particular desempregado, em Porto Alegre, e que sobrevive como segurança de boate.  Logo nos primeiros capítulos (são 43 ao todo), ele ajuda um playboy bêbado a entrar no seu carro e ambos são seqüestrados por uma dupla estonteante de loiras (na verdade, usam perucas e são carecas) que os levam para os esgotos da cidade, diante do trono de sua líder: o playboy, um mexicano chamado Cisco Maioranos Júnior, será julgado pelos crimes do pai (embora ele seja filho daquele de quem herdou o nome, elas afirmam que seu pai é um tal Terry Lennox). Quanto a Cid Espigão, ainda que tenha entrado incautamente na situação, será devorado ou pelos ratos ou pelos jacarés que infestam as galerias subterrâneas.

    É um começo divertido, porém perigoso, dependendo do rumo que a trama seguirá. E logo constatamos o quão perigoso era: Cisco e Cid conseguem escapar dessa primeira situação de perigo, o detetive é contratado pelo mauricinho, e somos levados ao Pantanal (o pai do cliente tem uma fazenda no Mato Grosso) e depois aos EUA e ao México. Antes disso tudo, aparece um assassino chinês chamado Chung Ching Chim, falando como o Cebolinha da Turma da Mônica, e aí já sabemos que estamos no reino do besteirol. Entre os disparates que O Detetive Sentimental oferece temos: o bunker de um ditador, El Generalíssimo, em pleno Pantanal; uma tribo de cortadores de cabeças, cuja princesa perde a virgindade para Cid Espigão; uma caçadora de nazistas; uma cobra que engole um piloto de avião; um lobisomem; a aparição na trama de Philip Marlowe, o supremo detetive do noir; a transformação dos braços do herói em cobras em pleno deserto mexicano, quando então ele encontra um curandeiro centenário que o leva a uma pirâmide e… ufa, e ainda há a seita satânica que domina a mente de todos os vizinhos de Espigão e um gato maligno… ah, e também seres criados em laboratório…

    Tabajara Ruas não nos poupa nem do ridículo de fazer aparecer aquelas irritantes piruetas voadoras tipo O tigre e o dragão ou Cirque du Soleil: “E então você, detetive Cid Espigão, assistiu algo inacreditável: a bela Irmã Um deu dois passos e tomou impulso, dando um salto. Mas o salto foi mais do que um salto, foi um vôo de quatro metros de altura, passando sobre a cabeça de Chung Ching Chim e caindo atrás dele. Chung voltou-se para a Irmã Um, com a Magnum apontada” (pág. 408).

     Decerto, o autor gaúcho pretendia que seu livro fosse uma paródia, e toda paródia deveria por definição conter uma crítica. Confesso que não penetrei nos arcanos da mente tabajarana e não consigo ver o propósito de O Detetive Sentimental, a não ser o mesmo de besteiróis do tipo Todo mundo em pânico: despejar de cambulhada todo um entulho de referências, todo o lixo tóxico da indústria cultural. É exatamente o que fazem tantos filmes B e blockbusters e também tantos autores jovens que vinculam ficção ao sobrenatural e ao fantástico: todos eles misturam de forma estapafúrdia tantas coisas diferentes que elas perdem identidade, sabor, e se tornam irreversivelmente auto-paródicas, frívolas e risíveis. É um universo estético sem leis, e portanto sem consistência ou valor.

    No final, o cliente de Cid Espigão, Cisco Maioranos Júnior vira mulher (Dolores) e foge com Chung Ching Chim da maldade familiar. Ximena, sua irmã, revela-se a líder da seita secreta das mulheres carecas (“o rosto dela começou a partir-se em dois, pois a longa unha do seu dedo indicador descia por ele como se fosse um faca. Debaixo dos pedaços de pele que caíram até o chão havia outra carne e outro rosto”). E o pai deles, Cisco Maioranos, é Terry Lennox… e o Diabo. Quando o enfrenta no último capítulo, Cid Espigão o vê como realmente é (“o homem sentado na poltrona diante de mim tinha a cabeça de um touro negro com dois cornos afiados”).

    Meu Deus, fui um desmancha-prazer, revelei o final da história.  Ah, é verdade, não há prazer algum a desmanchar, só o aborrecimento de ler 440 páginas inúteis.

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Serviço: O Detetive Sentimental, de Tabajara Ruas. Coleção Negra. Record. 446 páginas. R$52,90.

(RESENHA PUBLICADA EM  “A TRIBUNA” EM 15/09/09)

ANOTAÇÕES DE LEITURA

INTRODUÇÃO (09.09.09)

        Volta e meia me ocupo de  algum título de uma das duas séries policiais que mantém uma constância já de anos: a da Companhia das Letras e a “Coleção Negra” da Record. A essa última pertence O DETETIVE SENTIMENTAL, do gaúcho Tabajara Ruas, que tem 440 páginas. Já li uma boa parte delas e estou na maior perplexidade. A princípio, achei que era uma pilhéria com os clichês do tipo de romance cujo herói é o detetive durão ( no fundo, todos os durões do noir são sentimentais), o que seria muito batido não fosse a ambientação em Porto Alegre e a inegável qualidade da prosa do autor (que é o motivo pelo qual ainda estou lendo o texto, por mais que ele me desagrade o tempo todo). Mas agora parece que Tabajara Ruas, sem perder o vezo de besteirol (antes pelo contrário, acentuando-o), parece que embarcou numa linha Carlos Ruiz Zafón, o autor de O jogo do Anjo & A sombra do vento, devido à presença cada vez maior de elementos fantásticos, os quais me parecem, francamente, ridículos.

       Ao que parece, Ruas retoma, trinta anos depois, o “herói” (o detetive particular Cid Espigão)  do seu romance de estréia, A região submersa (belo título), também publicado na mesma série. De lá (1978) para cá, ele publicou romances que tiveram certa repercussão (Os varões assinalados, Netto perde sua alma) e dirigiu alguns filmes.

       Há muito charme no seu estilo, tanto que mesmo sem estar gostando especialmente da história, estou totalmente envolvido por O DETETIVE SENTIMENTAL.

         Bem, além de pequenas discrepâncias na ortografia de nomes e palavras e até da época do ano (o narrador diz que tudo começou em agosto de 1987, depois afirma que é junho), que podem ser propositais, ainda que eu não atine na sua razão de ser; além de mudanças no foco narrativo (ora em primeira pessoa, ora numa segunda pessoa, como se o narrador estivesse se dirigindo a si mesmo, ora na terceira pessoa), procedimento que também parece gratuito; bem, além disso tudo, o andamento da história, que começava divertidamente exagerada, já chegou a um ponto em que se aparecer extraterrestre, vampiro ou templários, não vou me surpreender. O sexagenário Tabajara Ruas (nasceu em 1942) parece aqueles (infelizmente numerosos) autores jovens que praticam uma literatura fantástica meio chinfrim porque tentam misturar nossa realidade brasileira às fórmulas americanas e européias, e o resultado é sempre meio constrangedor.

continuação (10.09.09)

       Quando o livro começa, Cid Espigão (que ama a obra do uruguaio “suavemente perverso” Juan Carlos Onetti, num cruzamento de referências que não ajuda em nada a narrativa) está desempregado como detetive, com a arma no penhor (a única coisa de que não lança mão para penhorar é a cadeira do cliente, sagrada para ele), trabalhando como segurança de boate,  e recebendo a visita do folclórico Tio Chinão, o qual personifica o gaúcho proverbial, nas vestes e nas falas (após 40 anos trabalhando numa estância foi “aposentado” sumariamente, com uma mão na frente outra atrás, como ele mesmo diz, e veio cavar algum trabalho na capital). Na tal noite de agosto (ou será junho?), Espigão ajuda o playbozinho bêbado Cisco Maioranos Junior a entrar no seu rolls royce prateado (o livro começa assim: “Curvado sobre a porta do Rolls Royce, segurando as chaves, o bêbado ergueu um olhar interrogativo, onde poderia haver um anúncio de súplica”) e duas loiras estonteantes (uma delas, que lembra Jane Fonda, é chamada pelo narrador de “a mais bela mulher do mundo”) rendem a dupla (não antes de os dois descobrirem que as fartas cabeleiras louras são perucas e que as duas são carecas; a princípio eu achei que seriam travestis) com hilárias  pistolinhas com cabos de madrepérola. Os dois são levados para as entranhas dos esgotos de Porto Alegre, onde há uma mulher num trono, que diz a Maioranos que ele será réu em um julgamento. Espigão, por sua vez, que entrou na situação de gaiato, é trancafiado numa cela na qual milhares de ratos o atacam. Ele só não é devorado porque arrebenta uma tubulação e consegue escapar por uma abertura, após a água encher o recinto. Ao invés de encontrar libertação, se depara com jacarés (é isso aí, mesmo, leitor, nos esgotos de Porto Alegre) que o atacam, mas ele é salvo no último momento por Cisco Maioranos, que parece ter um”cinto de utilidades” (e que foi deixado “livre, leve e solto”,por assim dizer, pelas mulheres de peruca).  Correndo dos jacarés, os dois caem num abismo e são levados pela corrente, numa espécie de pesadelo sub-Sobre heróis e tumbas, a obra-prima de Ernesto Sábato onde há uma sequência similar envolvendo um dos protagonistas, Fernando Vidal Olmos (mas que diferença!!!!). Peripécia vai, peripécia vem,  eles conseguem sair do mundo dos esgotos e chegam à superfície numa lixeira, onde são perseguidos por pivetes que tentam incendiá-los. E esses foram os quatro primeiros capítulos.

tn_311_600_tabajara_ruasa região submersa

       No seu apartamento, assistido pelo recém-chegado Tio Chinão, Cid Espigão jaz adoecido (também foram milhares de mordidas de ratos) por tr~es dias. Recuperado, ele pensa (pois quando o texto se inicia, acabou de fumar um baseado) se não sofreu um baita pesadelo, uma bad trip  (“Sentei-me na cama, o coração pensando. As louras de peruca! Os ratos. O subterrâneo da Borges! Os jacarés! Santo Deus, teria sido tudo um pesadelo? O baseado estaria batizado com alguma droga pesada?”), mas recebe um bilhete de Cisco Maioranos, que deseja contratá-lo profissionalmente. porque, além da aventura que viveram, suspeita que está sendo seguido e mulheres misteriosas telefonam-lhe com ameaças, mencionando uma “dívida de sangue” e um tal Terry.  Os dois se encontram numa churrascaria e Cisco revela ser mexicano, filho de um latifundiário(para cúmulo do ridículo, ele é estudante de filosofia e está preparando uma tese sobre Spinoza, dá para acreditar, claro): “Meu pai tem fazendas no Mato Grosso do Sul e propriedades na Bolívia e no Paraguai… Mas acho que o negócio principal são os cassinos, em Las Vegas… Ele centraliza tudo, não deixa ninguém tomar parte nas decisões de negócios importantes. E tem outros negócios: petróleo, indústrias… Mas eu sei muito pouco sobre isso”

     Nisso, eles vêem uma das mulheres que os levaram ao subterrâneo e correm no seu encalço, no rolls royce de Cisco. Mas uma kombi investe contra eles e explode. Escapando ilesos, eles se deparam, na luxuosa suíte do hotel de Cisco, com um portentoso assassino chinês, Chung Ching Chim (a essa altura, eu já não levava mais o livro a sério),o qual fala como o Cebolinha (parece que estamos lendo uma tradução ruim de algum autor B), e que com uma espada decepa uma das mãos do Tio Chinão (que agora já não poderia sair da estância “com uma mão na frente e a outra atrás”, com certeza), além de dar golpes que quebram móveis, destroem o telefone e abrem um buraco na parede. Só não dá cabo do trio porque Tio Chinão mesmo maneta consegue prender seus pés com uma boleadeira.

      Cisco recebe outro telefonema, e a mulher o chama de “irmãozinho”, diz que ambos são filhos de Terry Lennox e que ele deve ir a Las Vegas, a um cassino chamado Terrapin Club, falar com um tal de Randy Starr. Porém, Cisco envia o seu detetive contratado, Cid Espigão, primeiro para o Mato Grosso, para a fazenda do pai: “Quero que você fale com minha irmã”, que não é a do telefonema, mas a real, Ximena. Antes de viajar, Cid descobre que a Seita das tais mulheres marcou seu apartamento com uma cruz de sangue (é mole?).

     O avião, um jato de oito lugares, rota Porto Alegre-Cuiabá, leva além de Cid uma mulher loura, magra, alta, usando óculos de lentes grossas e um homem que parece morto. E cai no meio do Pantanal. Sobrevivem os três passageiros e um piloto, que está em choque e regrediu ao estado infantil, chamando Cid de “Papai” !!!!! Eles enfrentam o ataque de jacarés (não iguais àqueles do subterrâneo, os quais, segundo Maioranos, foram treinados pela CIA) e são resgatados  por uma piroga na qual vem sentado o Reverendíssimo Cardeal Acevedo e que é conduzida pelo Capitão Marvel (um índio de braços raquíticos, com apenas um dente na boca e usando um “macacão amarelo, puído, colado ao corpo, e que lhe ficava pelo meio das canelas. No peito, meio descosido, um raio de veludo vermelho. Nas costas, presa ao pescoço por uma corda desfiada, esvoaçante capa de seda azul. Estava descalço, os pequenos pés escuros embarrados”), que os declara prisioneiros de Sua Excelência, El Generalíssimo. Nesse passo, entramos numa espécie de versão tupiniquim e pândega do bunker do enlouquecido Kurtz de Coração das Trevas.  Pois bem, El Generalíssimo é um sujeito que pesa 180 kilos e que age como imperador do lugar, tendo os nativos sob seu comando, e negócios com contrabandistas e ate com o pai de Cisco Maioranos. Quem tem negócios com este último também é a outra passageira do jato caído, a loira, Golda, que caça nazistas para o latiundiário (o homem que está com ela e que realmente está morto é uma presa, era um deles). Como se vê, estamos num  samba-enredo sem pé nem cabeça. Há também uma escrava de El Generalíssimo, que é na verdade a princesa de uma tribo que coleciona cabeças dos seus inimigo.  Antes de a tribo atacar (comandada pelo irmão da princesa, que não pode governar sua tribo por ser homem, já que sua sociedade é matriarcal, e por isso aderiu ao marxismo para libertar as massas da sua alienação), o piloto que sofria de crises de tatibitate é devorado por uma imensa jibóia chamada Fraternidad, cena narrada com pormenores gráficos e que deve ter se inspirado no filme Anaconda. E de onde saiu essa tribo de colecionadores de cabeças? Apesar de todo o nonsense estapafúrdio, numa saraivada de disparates como ainda estou para ver igual, dois detalhes me divertiram muito: em primeiro lugar, El Generalíssimo, que sempre invoca a proteção que oferece aos “direitos humanos” e depois manda torturar, matar ou cometer horrores decretando que os direitos humanos estão suspensos por duas horas,ou até o amanhecer, etc (isso sem contar o Cardeal que tem um manual da Inquisição para inspirá-lo nos interrogatórios aos prisioneiros do Generalíssimo); e em segundo ludar,  o esdrúxulo monarca chama os jacarés de “ingleses”, descrevendo suas características psicológicas. Prova de que, apesar da gratuidade irritante do seu romance, Tabajara Ruas não é nada bobo.

      Após muitas páginas e peripécias indianajonescas (El Generalíssimo acaba comido por piranhas, só sobrando a cabeça), Cid Espigão transa com a princesa da tribo selvagem, restituída à sua dignidade. E dorme… acordando sozinho em pleno pantanal. O Capitão Marvel lhe explica (será o seu guia para que ele alcance a terra firme e depois a fazenda dos Maioranos): ela só podia ofertar sua virgindade a um estrangeiro, desde que depois ele partisse, é o costume!

     Ufa, ele agora é hóspede dos Maioranos. E descobre que Cisco pai nada tem de mexicano, com seus olhos azuis muito norte-americanos! Além de ser um gangster ameaçador, que causa medo na própria filha. E pode ser outra coisa, pois um lobisomem (é isso aí, leitor) aparece no quarto de hóspedes de Cid Espigão em plena lua cheia. Não satisfeito com essa bobajada, na volta de Espigão para Porto Alegre (o cliente e Tio Chinão já foram para os EUA), o autor faz com que todos os vizinhos do detetive estejam possuídos pela seita satânica e o cercam. Até o gato que fica na escada do segundo andar se transforma sobrenaturalmente. E Porto Alegre parece a Barcelona de Zafón, transfigurada por um imaginário para lá de discutivel: “… eu estou com medo. A cidade de Porto Alegre está contaminada: doença maligna a corrói”,  lemos na pág. 241, capítulo 22.

      Amanhã vamos para os EUA…

11.09.09- continuação da leitura de ontem:

       Nos EUA, eles procuram Randy Starr um mumificado macróbio, que os informa que Tenny Lennox era um “herói” (“Um herói não é o mais valente ou o mais nobre. É aquele que, depois de três dias numa trincheira cheia de água, sem comer nem dormir, ainda tem forças para apanhar  uma granada dos alemães e mandá-la de volta“),mas que tivera uma história trágica: “Dizem que ele tinha matado a mulher. Fugiu para o México.O México é um bom lugar para uma pessoa fugir, mas alguma coisa deu errado. Meteu uma bala na cabeça.”  E evoca os tempos de guerra, uma evocação chatíssima, aliás, mas que fornece o gancho para reforçar a idéia de Maioranos Pai é na verdade Terry Lennox, já que este fora prisioneiro dos nazistas e o latifundiário financia caçadas aos nazistas.

    Nos EUA, o trio (o cliente, o detetive e o tio folclórico) recebem nova visita de Chung Ching Chim, que passou para o lado deles. Aí então vão para um clube noturno, o Gipsi´s, onde iipera a música punk (“foram envolvidos violentamente na teia urdida pela música alucinada dos Sex Pistols”) e é nas redondezas do Gipsi´s que Cid Espigão reencontra a perigosa mulher mais bela do mundo, a Irmã Zero, e ambos vivem uma dos capítulos amoroso-sexuais mais horrendos de que já se teve notícia na ficção (eles sentem que estão numa “trégua” e fazem amor num parquinho de diversões, no barco do amor, na roda gigante, etc) e ela tira a peuca: “Era o lado verdadeiro ou que poderia ser o lado verdadeirodela, que se revelava, e era u lado extremo, desafiador, acima das leis e convenções a que estava acostumado, e que considerava  plenas e aceitas por todos”. Não se pode deixar de notar que apesar de sentimental e fodido na vida,nosso herói mesmo assim é um fodão com as mulheres, sendo objeto de desejo da Irmã Zero,da Princesa do Pantanal e até de Ximena, a irmã do cliente: “Caminharam de mãos dadas, gozando o doce prestígio de desafiar o destino, incomodados pela proximidade da manhã, escondida atrás do azul cada vez mais claro do céu. Ele comprou um sorvete de morango e uma rosa de uma menina mexicana… Tinham se amado no alto da roda-gigante, apertados na barquinha, as pernas dela apoiadas em seu ombro. Amaram-se depois, vestidos, em pé contra o muro do estacionamento, ouvindo o som do sax atravessá-los de nostalgia. Amaram-se na areia que se tornava rosa, quando no horizonte do mar apontou a primeira fímbria da manhã, dourada e vitoriosa”.

      Para arrematar essa abobrice toda, ela dá uma dica a Cid: ele tem de falar com um homem chamado Philip Marlowe. E aí  O DETETIVE SENTIMENTAL despenca ladeira abaixo. Nem vou me dar ao trabalho de resumir a participação de um envelhecido e chatinho Marlowe nessa sequência americana.  Ele surge na pág. 274 (num asilo) e só nos livramos dele na pág. 329 (nesse ínterim, Randy Starr foi eliminado e Cisco Maioranos Júnior sequestrado).

    Tio Chinão volta para o Brasil  e Cid Espigão vai para o México de ônibus, a partir do capítulo 32 (e eu já achando o livro interminável, enfadado ao extremo). Vem então o pior: durante a viagem todos os passageiro se tornam gordos imensos, as mãos do detetive sentimental começam a esverdear e seus braços viram cobras (justificando a capa da edição da Record, aliás). Ele é expulso do ônibus suspeito de rir (já que todos são gordos), e vaga pelo deserto, até ser levado para uma povoação onde um curandeiro centenário, emprestado talvez de Castañeda, lhe propõe uma jornada existencial rumo a uma pirâmide, para se livrar da “maldição”. Apesar de achar tudo um porre, fui lendo achando que as bizarrices prosseguiriam de uma forma ou outra e eis que, para minha estupefação, Tabajara Ruas utiliza o manjadíssimo recurso de fazer toda essa parte mexicana ser um pesadelo ocorrido durante a viagem (um pesadelo de leitura que vai da  pág.330 até a 387). No México, conversando com um corcunda, ele apura mais fatos sobre o passado de Cisco Maioranos Pai, que agora temos quase certeza ser Terry Lennox, como se isso tivesse o menor interesse.

     E agora voltamos para Porto Alegre… Estou na pág. 400 e o vizinho hippie de Cid Espigão aponta uma arma para ele, levando-o para um carro dirigido pela parceira da Irmã Zero, a Irmã Um…

12/12/2010

A meticulosidade de Caleb Carr: apaixonando o leitor sem pressa

(resenha publicada em 30 de setembro de 1997)

Malgrado sua qualidade inegável, O silêncio dos inocentes marcou um patamar que se revelou mais um mal do que um bem ao longo dos últimos anos. É muito difícil encontrar agora qualquer thriller envolvendo um assassino em série que apresente um mínimo de inteligência e verossimilhança, já que é pedir demais originalidade. E aqui temos o primeiro ponto contra O ALIENISTA (The Alienist, traduzido por Pinheiro de Lemos), publicado há dois anos pela Record e que ganhou edição pelo Círculo do Livro: o déjà vu, a impressão de história gasta.

Outro ponto contra é o seu título. Para o leitor brasileiro, ele está definitivamente associado à obra-prima de Machado de Assis.

Contra o livro de Caleb Carr ainda está o fato de E.L. Doctorow, um dos maiores escritores norte-americanos, ter publicado seu ótimo The waterwork-A mecânica das águas nos EUA no mesmo ano, 1994. E daí? Daí que Doctorow utiliza a mesma época, o mesmo espaço-clímax (o reservatório de água, um ponto vital na arquitetura novaiorquina do século XIX) e um narrador em primeira pessoa na mesma condição (jornalista).

Mesmo assim, com tudo contra, O ALIENISTA é um belo romance. Nele, há um serial killer matando e mutilando garotos imigrantes extremamente jovens (abaixo dos quinze anos) que se prostituem na Nova Iorque de 1896. O comissário Teddy Roosevelt (o qual mais tarde será presidente), responsável por um polêmico e combatido programa de moralização da polícia, monta uma equipe inortodoxa para tentar capturar o psicopata.

Dessa equipe participam John Schuyler Moore, o narrador, jornalista do Times; Sara, que pretende tornar-se a primeira mulher investigadora; Marcus e Lucius, irmãos que se dedicam ao lado “científico” da criminologia, introduzindo noções “modernas” como o recolhimento de digitais; Cyrus e Mary Palmer, indivíduos que já cometeram violentos homicídios; e o líder, dr. Laszlo Kreizler, o “alienista” do título, que tenta aplicar os princípios da incipiente psicanálise para descobrir o assassino e renovar a ciência criminal (e, quem sabe, melhorar a sociedade). Para alcançar esse fim, ele treina sua “equipe” a montar o “perfil psicológico” do matador de prostitutos:

“…devíamos envidar todos os esforços possíveis para nos livrarmos de preconceitos sobre o comportamento humano. Não devíamos tentar ver o mundo através de nossos próprios olhos nem julgá-lo por nossos próprios valores, mas sim, com a mente de nosso assassino. A experiência dele, o contexto de sua vida, era tudo que importava. Qualquer aspecto de seu comportamento que nos desconcertasse, do mais trivial ao mais horrendo, devia ser explicado por eventos em sua infância que poderiam levar a tais eventualidades. Esse processo de causa e efeito—que aprenderíamos em breve ser chamado de determinismo psicológico—talvez nem sempre nos parecesse lógico, mas seria coerente. Kreizler realçou que nada  de positivo resultaria de conceber aquela criatura como um monstro, porque era com certeza um homem (ou uma mulher), e esse homem ou mulher fora outrora uma criança”.

Ao contrário dos toscos filmes e livros que utilizam psicologia de araque para embasar suas tramas de psicóticos, O ALIENISTA encanta o leitor pela sua meticulosidade, pela capacidade de ir realmente construindo  a personalidade do assassino, ao mesmo tempo que envereda pelas relações entre os membros da equipe e pela metrópole que Nova Iorque já era em 1896.

Aliás, o “perfil” que monta da Nova Iorque fin-de-siècle é outro aspecto muito bem sucedido do thriller de Caleb Carr, principalmente por lançar sombra sobre o presente (as notícias aterradoras que estão vindo à tona sobre redes de pedofilia, por exemplo). O ALIENISTA executa uma arqueologia do presente, mergulhando nas raízes das contradições da cidade paradigmática dos EUA. Não da forma simbólica e enviesada que caracteriza A mecânica das águas, porém de uma forma tão convincente que o leitor se sente tentado a pensar que Nova Iorque só poderia ser assim na década de noventa do século passado.

E fazendo o presente se inscrever no passado (assim como o assassino adulto que comete crimes em Nova Iorque está inscrito no garoto da cidadezinha de New Paltz). Carr evita habilmente o grande risco dos anacronismos, dos detalhes que ficariam  inverossímeis demais colocados numa época passada e numa mentalidade distante. Lemos a Nova Iorque de 1896 pensando na Nova Iorque dos nossos dias, e a sobreposição das duas qualifica O ALIENISTA como o mais expressivo romance de mistério e suspense da década:

“Sabe, estive pensando que ainda podia sentir compaixão pelo homem, apesar de tudo que ele fez, por causa do contexto de sua vida. Cheguei a pensar que finalmente o conhecia.

Kreizler sacudiu a cabeça.

Não pode, John. Não tão bem assim. Talvez possa se aproximar o suficiente para se antecipar, mas no final, nem você nem eu nem qualquer outra pessoa poderá ver o que ele vê quando olha para as crianças, ou sentir exatamente as emoções que o levam a empunhar a faca. A única maneira de aprender tais coisas seria…—Kreizler virou-se para a janela, com uma expressão distante—…seria perguntar a ele”.

Recusando o ritmo de história em quadrinhos ou mesmo do cinema na condução da sua trama, nem por isso Carr deixa de tornar empolgante a tentativa do dr. Kreizler de ficar cara a cara com o assassino de forma a lhe fazer perguntas vitais. Deixo para o leitor descobrir, lendo um livro primoroso em seu gênero, se ele consegue ou não.

Quanto à edição do Círculo do Livro, nada contra, a não ser não terem conseguido encontrar uma capa tão expressiva quanto a da Record (uma foto inquietante de Alfred Stieglitz), que por si só já chamava a atenção para o romance de Carr nas livrarias.

NOVAS AVENTURAS DO DOUTOR KREIZLER E CIA.

(resenha publicada em 23 de maio de 2000)

Em O ANJO DAS TREVAS (The angel of darkness, 1997, traduzido por Raquel Zampil), um dos grandes lançamentos deste ano, Caleb Carr coloca em ação o mesmo grupo de personagens de  O alienista (1994):  o dr. Lazslo Kreizler, que tenta aplicar princípios da psicanálise para renovar a criminologia; os irmãos judeus Marcus e Lucius, sargentos-detetives, que se dedicam ao lado “científico” da investigação policial (preocupam-se com “modernidades” como recolhimento de impressões digitais e provas balísticas); Sara Howard, que se tornou  a primeira mulher detetive particular; John Schuyler Moore, jornalista do Time e inveterado boêmio; Cyrus,  negro que já cometeu um crime horrível e que trabalha para Kreizler, assim como Stevie, um moleque que era marginalzinho das ruas. Este último é o narrador do livro, substituindo Moore, que preenchia essa função na história anterior. Portanto, um grupo de pessoas nada ortodoxo na cultura norte-americana (como ela mesma gosta de se ver e proclamar ao mundo) e cuja visão em conjunto deixa as pessoas intrigadas e cheias de suspeitas (e a eles reunir-se-á, em O ANJO DAS TREVAS, um pigmeu filipino).

Se é o mesmo grupo em cena e a mesma época (final do século passado), há uma diferença fundamental entre as duas tramas: em O alienista, essa equipe procurava reconstruir, por assim dizer, a personalidade de um assassino que matava e mutilava michês novinhos, e cuja identidade só era descoberta no final; já em O ANJO DAS TREVAS, logo se sabe quem é a raptora da filha de um funcionário da embaixada espanhola na Nova Iorque de 1897, com os EUA vivendo um clima de preparação de guerra contra a Espanha.

E o fato de os investigadores do rapto chegarem não só à identidade da criminosa, Libby Hacht, como também ao local onde ela mantém o bebê escondido, transforma-se num dos encantos da leitura do livro de Carr. Isso acontece no 16º capítulo (são 59 ao todo), na página 189. E o leitor se pergunta: como serão recheadas aos outras 530 páginas? Afinal,  90% de O alienista acontecia sem que houvesse um confronto direto com o psicopata, que era um fantasma que ganhava corpo e vida aos poucos, com as deduções e descobertas meticulosas dos membros da equipe kreizleriana.

Pois o leitor não precisa duvidar: Caleb Carr realiza a mágica de preencher as 530 páginas com uma das tramas mais brilhantes da literatura policial. Nossos heróis, impedidos de resgatar a filhinha do diplomata espanhol no primeiro confronto com Libby Hacht, se dedicam a montar uma engenhosa armadilha que a apanhará. Para isso, começam a investigar o seu passado, o que os levará para fora de Nova Iorque, para as cidadezinhas ao norte do estado, especialmente Ballston Spa, onde descobrirão que, entre outras coisas (é bom não revelar muito), essa espantosa assassina matou dois filhos e quase conseguiu dar cabo da filha mais velha. A sobrevivente nunca mais falou com ninguém e o dr. Kreizler tenta fazer com que ela se comunique novamente, pois Rupert Picton, promotor amigo de Schuyler Moore, resolve levar Libby a julgamento por esse crime (embora tenham acontecido muitos, muitos outros e, ao longo da narrativa, acontecerão muitos, muitos outros mais).

É lógico que a reconstituição da época (e principalmente da sua mentalidade) é uma das preocupações obsessivas de Carr. Em O ANJO DAS TREVAS, um de seus objetivos básicos é discutir a incapacidade do senso comum em aceitar a violência praticada pela mulher. Ou seja, que uma mulher possa ter uma mente criminosa como o homem e, mais ainda, que uma mãe possa querer destruir fisicamente  seus filhos. Esse senso comum é que atrapalha e embaraça as investigações de Kreizler & Cia, as quais são feitas com o mesmo vagar e com o mesmo apuro nos detalhes que já impressionavam na obra anterior. Que fique claro: quem gostar de ritmo frenético, de uma narrativa “cinematográfica” (como se costuma atribuir como qualidade de certos autores policiais e mesmo fora do gênero), não tolerará a leitura de O ANJO DAS TREVAS. Carr é um escritor que pede todo o tempo do mundo do leitor, mas a morosidade com que sua narrativa se constrói não a enfraquece de forma alguma. Muito pelo contrário, estamos diante de um autor que acredita na solidez de um enredo impecavelmente arquitetado e apresentado de uma forma que parece, ao leitor, estar experimentando o que o personagem experimenta. A impressão que temos é que dormimos, acordamos, trabalhamos, comemos, bebemos e corremos perigo junto com esses personagens de 1897.

Assim, o leitor se torna uma engenhosa armadilha para o leitor também, que fica com má vontade de retornar à sua vida de todo dia e se afastar do universo da trama, algo que só parecia possível nos romances oitocentistas. E as explicações psicológicas para o comportamento de Libby Hacth, a Medéia de Ballston Spa, conseguem o milagre, raríssimo em histórias desse tipo, de ganhar a dimensão de descobertas sobre a mente humana, cuja discussão nunca amesquinha os fatos como mera moldura para teoriazinhas.

E vários fatos nunca serão explicados, como já afirmava o advogado de Libby Hacht, o ilustre Clarence Darrow (que existiu realmente), durante o seu julgamento, nem com toda a meticulosidade de Kreizler/Carr. Um deles, por exemplo, é o motivo que levou a Record, que tinha melhorado de forma visível , a regredir tão lamentavelmente e colocou no mercado um resultado tão rampeiro quanto a sua edição de O ANJO DAS TREVAS, a qual sequer tem orelhas nas capas e vem com , digamos, ilustrações que parecem ter sido encomendadas a crianças do jardim da infância e que deveriam ter sido liquidadas pela psicopata do livro. E qual terá sido a Libby Hacht do mundo editorial que sugeriu o preço assassino de sessenta reais?! Que leitores poderão apreciar o talento de Caleb Carr e seu ótimo thriller com tal preço psicótico?

20/08/2010

GÊNIO DA ARCA OU PESSOA-LIVRO?

pessoa

(resenha publicada em 23 de julho de 2002, na comemoração 20 anos de publicação)

Livro_do_Desassossego

     Há exatamente 20 anos aconteceu uma reviravolta com relação à obra de Fernando Pessoa, com a publicação de O Livro do Desassossego, organizado a partir de centenas de fragmentos em prosa. Constatou-se então que o gênio do escritor português (falecido em 1935) ia muito, muito além da poesia pela qual era famoso. Como mostra Robert Bréchon na sua excelente biografia Estranho Estrangeiro, a prosa composta por “Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa” teve mais leitores e admiradores em todo o mundo do que todo o restante da obra. Muitos até acreditam que O Livro do Desassossego seja a grande obra-prima de Fernando Pessoa. Como se sabe, ele se desdobrou em heterônimos tão conhecidos quanto ele mesmo, o ortônimo: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis. Pessoa considerava Bernardo Soares, o autor “definitivo” do livro desassossegado (pois ele começou a ser escrito por “outro”, Vicente Guedes), um semi-heterônimo, por ser muito parecido com ele, sem a diferenciação extrema dos “outros”. Curiosamente, lendo os mais de 500 fragmentos, o leitor tem a impressão de estar acompanhando um desdobramento do clima de um dos mais famosos (e belos) poemas de Álvaro de Campos, Tabacaria: “Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro (…) Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu (…) Conquistamos todo o mundo antes de nos levantarmos da cama Mas acordamos e ele é opaco Levantamo-nos e ele é alheio( …) Meu coração é um balde despejado Como os que invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada…” Nas primeiras páginas do Livro encontramos: “A Glória noturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido… E na mesa do meu quarto absurdo, reles, empregado e anônimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me no poente impossível de montes altos, vastos e longínquos…”

   Vivendo em Lisboa num quarto andar, trabalhando para o patrão Vasques num escritório na rua dos Douradores, com seu metro e setenta de altura e sessenta e um quilos, Bernardo Soares se autodiagnostica: “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais do que o alimento do pensar”.

     Ele e seu criador Fernando Pessoa também acabaram por realizar, sem querer, o sonho de muitos escritores maiores do século XX, a obra aberta. Júlio Cortazar, por exemplo, propõe, no Jogo da Amarelinha, ordens alternativas de leitura para seu romance, mas é algo calculado e sistemático. Da maneira como foram deixados os manuscritos e originais datilografados do Livro, na famosa arca de Pessoa, que até hoje está sendo explorada (com descobertas muitas vezes deploráveis), fica a critério de cada selecionador e organizador o resultado final. Desde que apareceu pela primeira vez (em dois volumes) em 1982, organizado pelo grande Jacinto do Prado Coelho (a partir da decifração e transcrição dos originais por duas especialistas em/fanáticas por Pessoa, Teresa Sobral Cunha e Maria Aliete Galhoz), O Livro do Desassossego já ganhou vários formatos, de acordo com a leitura de cada “ordenador”. No Brasil, anteriormente à edição que a Companhia das Letras coloca em circulação novamente (cujo responsável é Richard Zenith), houve uma magnífica e indispensável seleção feita por Leyla Perrone-Moisés (que foi como fiquei conhecendo o Livro, a princípio, e sempre me parece a “verdadeira” cara do Desassossego), publicada pela Brasiliense nos anos 80, e a versão “rebelde” (quanto ao cânone estabelecido por Prado Coelho) de Teresa Sobral Cunha, publicada pela editora da UNICAMP, nos anos 90. Como diz Zenith: “Oferece-se mais uma arrumação possível, sem desassossego pelo que tem de arbitrário e com a esperança de que o leitor invente a sua própria… Ler sempre fora de ordem eis a ordem correta para ler essa coisa parecida com um livro”.

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CONTINUAÇÃO  (30 de julho de 2002)

     Na seção anterior comentei a importância que O Livro do Desassossego adquiriu dentro da obra de Fernando Pessoa, desde a sua publicação em 1982. Agora é preciso comentar mais detidamente a edição da Companhia das Letras que utiliza a organização feita por Richard Zenith. Apesar da sua qualidade e arrojo, ela não escapa do maior defeito dos volumes confiados a especialistas: o leitor tem de aturar inúmeros trechos truncados e inúteis, que terminam no meio de uma frase (uma vez que os especialistas acham que é necessário publicar TUDO), fora os trechos onde o organizador teve de adivinhar qual a palavra que falta ou que está ilegível!!!?? Porém, mais risíveis são os trechos em que se anota que há erro de português (com um sic). O bom senso, em se tratando de rascunhos e esboços, mandaria que simplesmente se corrigisse o erro, sobretudo quando é um caso gritante de concordância. Mas os especialistas consideram os textos dos seus autores mais sagrados do que um rabino consideraria a Torá ou um muçulmano o Alcorão. Isso faz com que seja árduo, cansativo e muitas vezes desanimador e contraproducente enfrentar o Livro tal como nos é proposto na edição da Companhia das Letras, ainda mais se pensarmos na sua carga de negatividade e seu clima paradoxal, que antecipam a obra de Samuel Beckett. Seria uma perda enorme, no entanto, desistir da leitura, pois poucas vezes se encontra na vida tantos trechos lindos, perturbadores e brilhantes. Como, por exemplo, o momento em que Bernardo Soares (suposto autor do Livro e que seria um alter ego de Pessoa assim como um personagem de romance o é para qualquer outro autor) fala da gramática, às tão vezes tão maltratada por ele: “A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo,os verbos em transitivos e intransitivos, porém o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente. Se quero dizer que existo, direi: Sou. Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesmo se dirige e forma… como hei de empregar o verbo ser senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi: Sou-me. Terei dito uma filosofia em duas palavras”.

    E assim, numa Lisboa que aparece para o leitor de forma tão poderosa quanto a Paris de Baudelaire (“A manhã do campo existe; a manhã da cidade promete. Uma faz viver; a outra faz pensar”), tal como nos revelou Walter Benjamin, Bernardo Soares vai sendo-se (ou, pelo contrário, não sendo-se, continuar no clima “antigramaticalmente supremo”), equacionando ação e sonho, sentir e pensar, num “drama que consiste apenas no cenário”, que “estivesse às avessas”, e no qual ele é “espectador irônico de mim mesmo”;“… um romântico faria disto uma tragédia, um estranho sentiria isto como uma comédia; eu, porém, misturo as duas coisas, pois sou romântico em mim e estranho a mim, e viro a página para outra ironia”; “… sonho porque sonho, mas não sofro o insulto próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia não me abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida”.

     E são (são-se) apenas migalhas de citações desse universo de 500 páginas na qual Soares, como a parte mais resignada e melancólica de Pessoa, arrasta a “a cruz do seu pensar” (tal como o Fausto do grande escritor português, a sua outra suprema obra-prima, e da qual há também diferentes ordenações e versões) como “transeunte de tudo até da minha própria alma, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada, centro abstrato de sensações impessoais, espelho caído sentiente, virado para a variedade do mundo”. O transeunte de tudo, até da própria alma, previu com precisão seu reconhecimento póstumo: “Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram”. E viva o desassossego. _________________________________

17/05/2010

Doctorow, Rushdie, DeLillo e a virada do milênio

Primeira parte

    Nos anos 80, um recorde de estupidez foi alcançado quando a Rocco transformou Roger´s version, de John Updike, em Pai-Nosso Computador. A Record, talvez inspirada por seu nome, tentou quebrá-lo recentemente com o título brasileiro de City of God, de E.L. Doctorow: Deus—Um fracasso amoroso!!??

      Doctorow escreveu um dos melhores romances norte-americanos, O livro de Daniel (1971). Chegou perto com A Grande Feira e a novela Vida dos poetas, e ainda tem outros belos livros, como os muito famosos Ragtime e Billy Bathgate, além de Tempos Difíceis (na verdade, Benvindo a Tempos Difíceis, pois Hard Times é o nome de um lugarejo) e The Waterworks- A mecânica das águas.

      Estabelecida, portanto, a minha admiração, é preciso dizer que City of God (traduzido com empenho por Roberto Muggiati) representa um fracasso amoroso de leitura. O título original nada tem a ver com o nosso Cidade de Deus, de Paulo Lins, e sim com Santo Agostinho. Como a metrópole urbana dos nossos dias, representada por Nova Iorque, pode ser o palco da manifestação do Senhor, como podemos nos relacionar com Ele num mundo como o nosso, com seus problemas específicos e carregando o fardo dos horrores muito particulares do século XX?

      “…do jeito que as coisas estão acho que temos de refazê-Lo. Se precisamos nos refazer, precisamos refazer o Senhor, Deus”.

     Um Deus contemporâneo?  “Estamos vivendo numa democracia pós-moderna. Acha que Deus não sabe disso?”

    O livro de Santo Agostinho serve como referência devido à “toda a sua mala de truques de escritor. Todas aquelas doutrinárias tratadas como se existissem, como personagens num romance de Henry James” (outro padroeiro do romance é Wittgenstein, o qual tem até seu estilo parodiado).

      Os problemas de Deus são associados aos problemas dos narradores. Como organizar esse material caótico à nossa volta? Tim Pemberton, o protagonista, diz ao seu amigo Everett: “Está perturbado porque se deu conta… como você, errônea e gloriosamente, presumiu que podia escrever um livro sobre isto!” Everett tenta tecer um romance partindo do roubo da cruz de uma Igreja Episcopal, ato sacrílego que servirá para  aproximar o casal central, o reverendo Pemberton e a rabina Sarah Blumenthal, embora Doctorow, autor evocativo por excelência, continue a exercitar sua máquina do tempo, desta vez com incursões nos guetos judeus da época da Segunda Guerra e nas trincheiras da Primeira, só para dar dois exemplos. Ele se vale também dos nomes de família que utilizou em Mecânica das águas, Pemberton e McIlvaine.

    Ele precisava de 350 páginas para exercitar a ironia de contestar a onipresença tanto de Deus quanto do Narrador? Já que estamos no terreno religioso, Doctorow cometeu os pecados do orgulho e da soberba, pretendeu escrever o Livro da virada do milênio, a obra-referência. Não conseguiu. O que salva City of God de ser apenas um romance cansativo e falho, são as mesmas qualidades que também salvavam Loon Lake- O lago da solidão, até então seu trabalho mais discutível: iluminações repentinas, o estilo, enfim,  toda a sua mala de truques de escritor.

(resenha publicada em  26 de outubro de 2004)

 

Segunda parte

    Em City of God, de E.L. Doctorow, tentativa meio frustrada de sintetizar ficcionalmente a virada do milênio, se pode ler: “Os infelizes migrantes do mundo acham que, se conseguirem apenas chegar aqui, poderão fincar um pé. Manter uma banca de jornais, uma birosca, dirigir um táxi… o que pintar. Você quer dizer a eles que este não é um lugar para pessoas pobres. A linha de fractura racial que corre pelo coração da terra também corre através do seu coração. Somos seres étnicos sujeitos a um código de cor e criadores de enclaves sociais, multiculturalmente desconfiados e verbalmente agressivos, como se a cidade, considerada como uma Idéia, fosse um fardo pesado demais até mesmo para as pessoas que moram nela”.

     Outro grande escritor, Salman Rushdie, ousou encarar de frente a virada do  milênio elegendo Nova Iorque, o centro do Império, como ponto de inflexão, apesar do resultado não ser tão caudaloso quanto suas imensas (e fabulosas) obras-primas anteriores (Os filhos da meia-noite; Os versos satânicos; O último suspiro do mouro). Enquanto Doctorow investigava manifestações de Deus na secularização triunfante (e Deus é uma obsessão norte-americana, junto com as armas, como bem lembrou Harold Bloom), Fúria (Fury, traduzido por José Rubens Siqueira e lançado pela Companhia das Letras), o modesto—em páginas—romance do milênio de Rushdie , atualiza o mito grego das Erínias, ou seja, as Fúrias, as divindades destruidoras que ameaçam seu protagonista, Malik Solanka, no primeiro verão do novo  milênio, enquanto Bush e Al Gore, ou Gush e Bore, se digladiam pela posse da coroa do Império, com os resultados que conhecemos.

     Solanka está longe de ser o migrante pobre que tenta fincar pé na terra da promissão americana. Pelo contrário, está rico devido à criação de uma boneca, Little Brain, um dos produtos mais rentáveis da indústria cultural. Amargurado com o destino da sua criatura, e após um ligeiro surto psicótico (quando pensara em assassinar esposa e filho), ele abandona sua família em Londres, como já riscara da sua vida suas origens, em Bombaim, procurando a América como lugar de renascimento. Dentro de si ele surpreende o regurgitar de uma raiva avassaladora, com lapsos de memória que o levam a suspeitar que bem poderia ser o assassino de três belas jovens da alta-sociedade, enquanto o eterno ruído da cidade o persegue (“A cidade estava lhe ensinando uma lição. Não havia como escapar da invasão do barulho. Viera em busca de silêncio e encontrara um ruído maior que aquele que deixara para trás. O ruído agora estava dentro dele”).

    “Debaixo da auto-satisfação retórica dessa Améria empacotada, homogeneizada, dessa América com 22 milhões de novos empregos e a maior taxa de casas próprias da história, dessa América Shopping Center dona de ações, de orçamentos equilibradose baixo déficit, as pessoas estavam estressadas, pirando, e falando nisso  o dia inteiro em supercadeias de clichês burríssimos”.

      Não pense o leitor que Fury se limita a ser essa diatribe anti-Império Americano, embora haja passagens assassinas, de uma forma que Michael Moore jamais sonharia.  A grande força de Salman Rushdie, apesar de todo o magma discursivo do livro, que não poupa nada e ninguém, ainda reside no seu talento incomum de contar histórias, com relação ao qual não parece ter perdido o prazer (ao contrário de Doctorow), na teia emocional que ata Malik Solanka às três mulheres mais importantes da sua vida: sua esposa; Mila, uma garota sérvia que lembra (pois quer fazer lembrar) sua boneca Little Brain; e sua verdadeira paixão, Neela, que fará com que ele se confronte com sua infância e o arrastará para fora de Nova Iorque,a city of god da hora,  ainda que para se dar conta de que a Fúria, ou seja, aquela linha de fractura racial que corre pelo coração da terra, está confortavelmente alojada no mundo todo.

(resenha publicada em 2 de novembro de 2004)

 

Terceira Parte

    Em Cosmópolis, o poema em prosa de Don DeLillo a respeito da insubstancialidade do mundo contemporâneo, pode-se ler: “O futuro se torna insistente… o passado está desaparecendo. Antigamente, a gente conhecia o passado, mas não o futuro. Isso está mudando… Precisamos de uma nova teoria do tempo”.

     Há duas semanas, estou comentando obras que vinculam o novo milênio a essa insistência do futuro em detrimento da percepção do passado e o sentimento fantasmagórico que o real, pensado dessa forma, suscita: City of God (2000), de E.L. Doctorow, Fury (2001), de Salman Rushdie. Neste último, vimos como o ruído da cosmópolis (DeLillo: “A cidade come e dorme barulho. Ela faz barulho em qualquer século. Faz os mesmos barulhos que fazia no século XVII, mais os outros que surgiram de lá para cá”, diz o protagonista, que mandara forrar sua limusine com cortiça) correspondia às potências destruidoras agitando-se dentro de Malik Solanka, o professor de história das idéias (passado) que ficou rico com a criação de uma boneca-ícone da indústria cultural (a insistência do futuro).

      Na visão escabrosa de Rushdie, a condição-boneca se torna o epítome da deterioração do material humano, daí a intensa associação entre esse artefato lúdico e três jovens da  alta-sociedade barbaramente assassinadas (“Um corpo morto na rua parece muito uma boneca quebrada”). Em sua origem, a boneca representava diretamente uma pessoa e era um perigo em mãos alheias.Mais tarde, com o advento da produção em massa, tal ligação se rompeu, pois as bonecas passaram para a esfera da linha de montagem, sem personalidade, uniformes: “Tudo isto estava mudando de novo. A conta bancária de Solanka devia tudo ao desejo das pessoas modernas de possuir bonecas não apenas com personalidade, mas com individualidade. Agora mulheres vivas queriam ser como bonecas, cruzar a fronteira e parecer brinquedos. Agora a boneca era o original, a mulher a representação”.

     Nesse caos,com seres humanos-brinquedos,com o virtual devorando o real, há espaço no entanto para um momento literariamente extraordinário, de resgate do Mito em plena cosmópolis. Mila, a garota que imitava a boneca de Solanka, o leva para  o mercado da alta-computação, e vendo-a em frente ao seu laptop, ele assiste, na verdade, à aparição daquele tipo de entidade tão recorrente na cultura da Índia, a que destrói e refaz o mundo: “Mila como Fúria, a engolidora do mundo, o eu como pura energia transformadora. Nessa encarnação, era simultaneamente aterrorizante e maravilhosa”.

(resenha publicada em 9 de novembro de 2004)

 

Quarta Parte

    “Estava parado na rua. Não havia o que fazer. Nunca havia imaginado que isso pudesse acontecer com ele. Era um momento esvaziado de urgência e propósito. Ele não havia planejado aquilo. Onde estava a vida que ele sempre levara?  Não tinha vontade de ir a lugar nenhum, não tinha nada em que pensar, não havia ninguém à sua espera. Como podia dar um passo em determinada direção se todas as direções eram a mesma?”

      Tenho examinado a solução que grandes escritores encontraram (ou não) para representar o início do novo milênio. Nada mais justo que terminar a série com Don DeLillo, autor do maior romance dos derradeiros anos do século passado, Submundo, e cujo Cosmópolis (2003) possivelmente representa a mais alta literatura de ficçãoque se pode encontrar nesses primeiros anos do novo século-milênio-era. Na história do último dia (em abril de 2000) do jovem—já se sentindo ultrapassado (“Eu sempre fui mais jovem que todo mundo. Um dia isso começou a mudar”)—milionário Eric Packer, mega-especulador financeiro, que perde sua fortuna e é assassinado enquanto cruza Nova Iorque para cortar o cabelo (“Ele não sabia o que queria. Então descobriu. Queria cortar o cabelo”), numa limusine gigantesca forrada com cortiça, a grande tentação de qualquer resenhador é citar, citar, citar (mesmo porque a tradução de Paulo Henriques Britto, publicada pela Companhia das Letras, é irretocável). 

    Como se trata de um texto alucinantemente perfeito, pode-se extrair citações incríveis quase que página a página, embora talvez o melhjor seja seguir o conselho da primeira: “Dizer o quê? Era uma questão de silêncio, não de palavras”.

     Parente espiritual do Psicopata americano, de Bret Easton Ellis, Eric move-se (embora o trânsito com freqüência fique congestionado, inclusive com violentas manifestações contra a globalização, numa das grandes seqüências do livro) num mundo em que a obsolescência é muito rápida e no qual as relações esgarçam-se ao ponto da insubstancialidade: “Levou um instante para se dar conta de que conhecia a mulher no banco de trás do táxi ao lado. Era a mulher com quem ele havia se casado 22 dias antes”.

    A característica mais intrigante em DeLillo é que ele consegue manter o estatuto épico, que é básico para uma narrativa (ainda que tão maltrato na ficção contemporânea), mesmo quando mergulha fundo na estética minimalista mais fantasmática. Como Clarice Lispector e Robert Musil, ele mantém-se no mundo do grandioso, evocando mitos e potências muito maiores do que a da pós-modernidade: “Estavam cercados por um crescendo de buzinas. Havia naquele barulho alguma coisa que ele não queria apagar da mente. Era o tom de alguma dor fundamental, um lamento tão antigo que parecia aborígene. Pensou em homens esfarrapados em bandos, dando urros rituais, unidades sociais formadas para matar e comer. Carne vermelha. Era esse o chamado, essa a necessidade gritante”.O motorista de Eric: “Ibrahim parecia desconfiado e reparado, uma preparação que ele adquirira em algum deserto, setecentos anos antes de nascer”. O assassino de Eric lhe diz: “Mesmo quando você se autodestrói, você quer fracassar mais, perder mais, morrer mais que os outros, feder mais que os outros. Nas tribos antigas o chefe que destruía mais coisas dele mesmo que todos os outros chefes era o mais poderoso”.

      A citação que abre este texto mostra como a jornada de Eric por Nova Iorque e sua própria vida são desprovidas de sentido. Cosmópolis, porém, mostra que a literatura ainda faz todo o sentido do mundo.

(resenha publicada em 16 de novembro de 2004)

 

06/03/2010

A PERSPECTIVA DOS ESPELHOS

acesse LIVRARIA PORTO DAS LETRAS na intenet: www.estantevirtual.com.br/acervo/livrariaportodasletras

O PÁSSARO DA JUVENTUDE (doce?!)

“Uma mulher como eu não teria coragem de terminar? Vamos, vamos, já tivemos o suficiente, minha bela, para nossa casta. Contemplava a magnífica Léa de pé, mãos nas cadeiras, que lhe sorria.

        Uma mulher assim não termina nos braços de um velho. Uma mulher assim, que teve a sorte de nunca sujar as mãos nem a boca com uma criatura decrépita! Sim, aí está ela, a vampira que só quer carne fresca.

      Chamou em sua memória os namorados e amantes de sua juventude preservada de velhos, e viu-se pura, altiva, devotada havia 30 anos a moçoilos radiosos ou adolescentes frágeis (….)

     Bolas! Adeus a tudo, é o mais apropriado. Vamos comprar um baralho, um bom vinho, fichas de bridge, agulhas de tricô, todos os bibelôs necessários para vedar uma grande caverna, tudo que é necessário para disfarçar o monstro: a mulher velha…”

“Sinto em mim a perspectiva dos espelhos” (Chérie, de Colette)

Não sou muito fã da primeira reunião entre o diretor Stephen Frears e Michelle Pfeiffer, Ligações Perigosas. Acho que ela é o grande destaque do filme. A adaptação de Christopher Hampton é dinâmica, mas superficial, “ligeira” demais, acentuando o aspecto vaudevillesco presente no livro de Laclos, o que é acentuado pela direção de Frears (cuja produção é muito irregular). E a dupla central, Glenn Close & John Malkovitch, deixa muito a desejar. Ele, na minha opinião (ainda mais comparando com a interpretação de Colin Firth do mesmo personagem, Valmont, dirigido por Milos Forman), é um desastre, com suas caras e bocas, seu andar afetado, sua ridícula “aura” de sedutor consumado. A grande Glenn Close, por sua vez, está em certos momentos ótima como megera ou como mulher vingativa, perversa e ressentida (e, no final, há um grande close dela),  porém muitas vezes ela está também na base da interpretação burlesca e careteira, e é ainda mais difícil de engolir como “femme fatale”, grande sedutora.

Frears & Pfeiiffer se reúnem em outra adaptação literária, outro filme de época: CHÉRI, um romance da hoje em dia meio esquecida Colette  (1873-1954), que teve muita influência na primeira metade do século passado, com seu ciclo sobre a heroína Claudine e o romance A vagabunda. Assim como Gide e Proust (guardadas as devidas proporçoes entre este, um visionário , tirante seu apego ao mundanismo, e todos os outros que eu pssa citar), ela herdou aquela perspectiva balzaquiana da sociedade, mas numa clave mais intimista. Ela pertence àquele grupo de autores (o próprio Proust, Oscar Wilde,  certo Tolstói, certo Thomas Mann, o Eça final,  Henry James, Edith Wharton, para lembrar alguns) tão encharcados de mundanismo que muita gente hoje em dia acha muito recôndito, muito elitista, “ultra-civilizado” em demasia,  para que eles tenham algum interesse para o leitor atual (o que é uma pena, pois se trata de uma leitura superficial).

A atmosfera dessa novela (é uma pequena narrativa, com cerca de 170 páginas na edição brasileira, publicada pela Record e traduzida por André Telles) é toda huis clos, com  poucos ambientes e poucos personagens, uma sociedade muito restrita, composta basicamente de cortesãs aposentadas ou a ponto de, sua criadagem, seus agregados e amantes. Trata-se de um mundo em que o vestuário, os objetos, as jóias, são tão importantes para os personagens quanto seus sentimentos. Léa usa uma roupa marrom e, dolorosamente, evoca o amante perdido: “ele, que nunca foi  capaz de  suportar o marrom”; ele, por sua vez, elogiando a antiga mentora: “Essa mulher, meu velho, quando está com o chapéu apropriado (…) pode colocar qualquer outra mulher de lado, ninguém lhe chega aos pés”.  Ou ainda, para reforçar essa materialidade mundana e ultra-civilizada, ainda que não necessariamente sofisticada: “Tenaz, incisivo, mistura de flores intensas e madeiras exóticas, o perfume de Chéri circulava”.

É uma linguagem bem “francesa”, com muita auto-inspeção dos personagens, examinando os próprios sentimentos, muitas formulações que parecem silogismos filosóficos e muitas réplicas, que mostram o universo “venenoso” e dúbio em que as personagens se movem. Afinal, as duas personagens femininas centrais mantêm uma “amizade rancorosa de rivais à espreita da primeira ruga e do primeiro fio de cabelo branco”. Eis algumas réplicas:

“Mme. Peloux- Você sabe, quando um Peloux volta a sua casa depois da devassidão, não sai mais de novo.

Léa- É uma tradição de família?”

 

“Mme. Peloux- Você sabe como lido com fofocas!

Léa- Ninguém sabe melhor do que eu”

 

“Mme. Peloux- Anda a tricotar?

Léa- Ainda não, mas vai acontecer”

Hoje em dia podemos ler superficialmente Chéri (publicado em 1920) como algo recôndito, quase exótico, com suas cortesãs ricas, que moram em mansões e vivem à larga, com motoristas e criadagem. Léa de Lonval, a protagonista, é uma lenda entre elas. Aos 49 anos “encerrava uma bem-sucedida carreira”, poupada pela vida “das catástrofes lisonjeiras e das mágoas nobres”. Seus deuses são “o amor e o dinheiro”.

Chéri, ou Fred, é o filho de uma ex-rival, a venenosa Charlotte Peloux (no filme, a grande Kathy Bates; no texto é descrita com uma megera com voz trombeteante  e cujos olhos “não exprimiam senão a suspeita, a atenção indiscreta e implacável“), e fez sua educação sentimental com Léa: dos 19 aos 25 anos foi seu amante, ele que é um ai-jesus da mulherada, cobiçado por todas : “ser belo a esse ponto é uma nobreza”, diz Léa a respeito dele, mesmo achando-o muitas vezes bruto, burro, e sobretudo vendo os aspectos vulgares herdados da mãe (além da avareza): “Aqueles langores da tarde davam-lhe asco. Nunca seu jovem amante a surpreendera desarrumada, nem com o espartilho aberto, nem de chinelos durante o dia. Numa, se quiserem, dizia ela, mas nunca desmazelada. Pegou de volta seu jornal ilustrado e não o leu. Ponha essa mãe Peloux e seu filho, pensava, diante de uma mesa farta ou leve-os para o campo e pronto, a mãe tira o sutiã e o filho o colete. Naturezas de donos de botequim em férias. Ergueu os olhos rancorosos para o dono de botequim incriminado e viu que ele dormia, os cílios pousados sobre suas faces brancas, a boca fechada. O arco delicioso do lábio superior, iluminado por baixo, retinha em seu topo dois pontos de luz prateada, e Léa admitiu que ele se parecia mais com um Deus do que com um vinhateiro.”

    Chéri não é nenhum Julien Sorel. Ele é rico (todo mundo é rico, no texto), mas tem alma de gigolô: “alguém é gigolô quando possui 300 mil francos de renda. Isso não depende da cifra, depende da mentalidade. Existem indivíduos a quem se poderia dar meio milhão e que nem por isso seriam gigolôs… Mas Chéri? E no entanto nunca lhe dei dinheiro… Mesmo assim…”

Quando a narrativa começa, mme. Peloux está planejando o casamento do filho. A partir daí, começa a imperar a “perspectiva dos espelhos” para Léa; curiosamente, tanto no começo quanto no fim, são os espelhos que marcam a situação dos personagens; no início é Chéri quem se contempla: “Achava-se em frente a um espelho comprido… e contemplava sua bela imagem de adolescente, nem alto nem baixo, cabelo azulado como a penugem de um melro. Abriu o pijama e exibia um peito fosco e duro, abaulado como um escudo…” etc, etc; no final, é a própria Léa, mas não antecipemos).

Ao se consumar a sua separação de Chéri,  percebe que o amava bem mais do que pretendia e até supusera, e o mimado rapaz se transforma numa espécie de anjo da morte, um pouco como o Tadzio de Morte em Veneza, de Thomas Mann, ou seja, o apelo final de Eros,  a apoteose de uma vida, após a qual virá o inevitável declínio.

O próprio Chéri, sem saber, faz um diagnóstico perfeito do destino da amante, mesmo antes da separação: não ligo a mínima para o fato de não ter sido seu primeiro amante! O que eu gostaria, ou melhor, o que teria sido… conveniente…limpo…seria ter sido o último”. Aliás, essa fala está em um passo magnífico do texto, em que se misturam o tom ferino que rege as relações entre as personagens, a dor escamoteada da separação (mas ainda muito exangue e pálida perto do que virá depois) e  a confirmação da percepção de Léa, de que ela e Chéri têm uma ligação em que “não falam a mesma língua”. Ela joga na cara o dinheiro que gastou com ele, e que ele economizou do próprio dinheiro (“Então não valho isso?”,o vaidoso moçoilo replica), e ele diz que ela devia cumprir seu papel na comédia: “Você, a vítima. Você, o personagem simpático da coisa, uma vez que eu a estou dispensando”. Ao que ela retruca ironicamente: “Ora, meu querido, não tenho a intenção de mudar nada em minha vida. Durante uma semana, continuarei a encontrar em minhas gavetas um par de meias, uma gravata, um lenço… E quando digo uma semana… são muito bem-arrumadas, você sabe, minhas gavetas. Ah! Vou mandar reformar o banheiro.” Vendo a expressão dele, de desgosto, por ela não demonstrar o sentimento de vítima de um cataclismo (o que ela será de fato, mas as aparências…, o jogo de poder que existe em cada relação): “Não ficou satisfeito? Queria o quê? Que eu voltasse para a Normandia para esconder meu sofrimento? Que eu emagrecesse? Que não tingisse mais os cabelos? Que mme. Peloux acorresse à minha cabeceira?

      Imitou a trombeta de mme. Peloux abanando os antebraços: A sombra de si mesma!A sombra de si mesma! A infeliz envelheceu 100 anos! 100 anos! Era isso que você queria?

     Ele a escutara com um sorriso abrupto e um frêmito das narinas que talvez fosse emoção: Sim.”

É interessante experiência de ler essa lapidar autópsia de sentimentos  num momento em que o sucesso de um filme “alto astral” como Simplesmente complicado (dirigido por Nancy Meyers, que também utilizou a mesma fórmula em Alguém tem que ceder) representa um auge na valorização da mulher madura, reflexo da emancipação feminina de vários tabus e preconceitos, pelo menos em certa faixa social.  Chéri é um registro definitivo daquela mentalidade patriarcal em que o destino da mulher mais velha é a solidão e o recolhimento, por mais sombrios que sejam, ou o ridículo e o escândalo. Seu relacionamento era, na verdade, de amante-mãe, todo em estufa, visando protelar o momento em que o amado-filho cairá no mundo, e só restará o vazio, o tricô, as fofocas e a troca de farpas em meio a uma mulherada que só tem passado, e nenhum futuro. Por isso mesmo, poucas cenas são mais patéticas do que aquela em que, após um idílio fugaz com Chéri, Léa se vê abandonada definitivamente por ele, que desce a escada da mansão dela e pára “no meio do pátio. Ele está voltando! Ele está voltando!, ela gritou, erguendo os braços. Uma velha ofegante repetiu, no espelho oblongo, seu gesto, e Léa perguntou-se o que ela podia ter em comum com aquela louca”.

Seria uma inverdade afirmar que essa “perspectiva dos espelhos” não assombra mais as mulheres. Ela só adquiriu novas formas de pressão e tortura.

(uma versão da resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 09 de março de 2010)

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