MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

26/03/2013

CHINUA ACHEBE (1930-2013) E A MALDIÇÃO DA SERPENTE


chinua achebe

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“O primeiro dia de Obi no serviço público foi memorável, quase tão memorável quanto seu primeiro dia na escola da missão do campo, em Umuofia, quase vinte anos antes. Naquele tempo, homens brancos eram muito raros… O Sr. Jones era inspetor de escolas e era temido em toda a província… Visitava cada escola mais ou menos de dois em dois anos e sempre fazia algo de que todos se lembravam até a visita seguinte. Dois anos antes, ele havia jogado um menino pela janela da sala de aula. Dessa vez foi o diretor que se meteu numa encrenca. Obi nunca descobriu qual foi o problema, porque tudo foi tratado em inglês. O Sr. Jones ficou vermelho de raiva enquanto andava para lá e para cá, dava passadas tão largas que, a certa altura, Obi achou que ele ia passar direto por cima dele. O diretor, Sr. Nduka, ficou o tempo todo tentando explicar alguma coisa.

   Cale a boca!, esbravejou o Sr. Jones, e completou com um tapa. Simeon Nduka era uma daquelas pessoas que haviam adotado os costumes dos brancos, numa fase bem inicial da vida. E uma das coisas que ele tinha aprendido em sua juventude era a grande arte da luta corpo a corpo. Num piscar de olhos, o Sr. Jones estava estatelado no chão e a escola inteira se transformou numa grande confusão. Sem saber por quê, professores e alunos fugira todos em desabalada carreira. Derrubar no chão um homem branco era o mesmo que desmascarar um espírito ancestral.

   Aquilo tinha acontecido vinte anos atrás. Hoje, poucos brancos ousariam sonhar em dar um tapa num diretor de escola em seu local de trabalho e, de fato, nenhum faria tal coisa. O que era a tragédia de homens como William Green, o chefe de Obi.”

A.paz_.dura_.pouco_.Chinua.Achebe

(resenha publicada sem notas de rodapé em A TRIBUNA de Santos, em 26 de março de 2013)

Certa feita, Chinua Achebe comentou de forma acerba o reparo a uma hipotética “falta de universalidade da literatura africana”: “…é claro que não ocorreria a esses críticos duvidar da universalidade de sua literatura. Pela própria natureza das coisas, a obra de um escritor ocidental é automaticamente modelada pela universalidade. São só os outros que têm de lutar para atingi-la… Como se a universalidade fosse uma curva lá longe na estrada, a que você pode chegar se seguir o suficiente na direção da Europa ou dos Estados Unidos, se você colocar uma distância adequada entre você e sua casa.”[1]

Bem, é um assunto de monta e muito longe de esgotar. Indubitáveis mesmo são a universalidade e relevância alcançadas pelo próprio Achebe. Romances como Things Fall Apart- O mundo se despedaça (1958) e A flecha de deus (1964) estão entre as maiores realizações do gênero. Já tive a oportunidade, nesta coluna, de realçar a importância deles. E agora vou aproveitar o recente lançamento de A paz dura pouco (1960, em tradução de Rubens Figueiredo[2]) pela para homenagear o magnífico escritor nigeriano, falecido neste último dia 21, aos 82 anos.

A narrativa centra-se em Obi Okonkwo, neto do protagonista de O mundo se despedaça. Enquanto este era um livro de forte teor simbólico tanto quanto histórico, seu sucedâneo é mais realista, e focado na geração a que pertenceu de fato seu autor (nascido em 1930): Obi é o nativo da região tribal da Umuofia (cujo dialeto é o ibo) escolhido para estudar na Inglaterra e preencher futuramente um dos cargos no governo que, antes, eram reservados aos brancos. Com a configuração pré-Independência, há a possibilidade de ascensão real para alguns “eleitos” recrutados entre as comunidades, e decorrente desse privilégio, uma grande responsabilidade pessoal (além da pesada dívida pelo subsídio).

Filho de um ferrenho praticante do cristianismo, Obi se revela uma decepção: de fato, alcança posição razoável na nova máquina administrativa, mas acaba se afastando da Associação dos seus compatriotas (a qual financiou seus estudos) e da própria família por insistir no relacionamento com uma moça osa (pária).

Mergulhando na vida típica de um jovem nigeriano de Lagos nos anos 50, Obi afrouxa seus vínculos étnicos. Ironicamente, numa das reuniões em que era festejado como a esperança comunitária, ele (no vezo africano de ilustrar todas as experiências com provérbios e historietas) discorrera retoricamente sobre a “maldição da serpente”, “o perigo de viver separado dos seus”“Se todas as serpentes vivessem juntas num mesmo lugar, quem é que teria coragem de se aproximar delas? Mas as serpentes deixam que cada uma viva por sua própria conta e por isso se tornam presa fácil para o homem”.

african-trilogy-things-fall-apart-no-longer-ease-chinua-achebe-hardcover-cover-art

Vivendo por sua própria conta, Obi enreda-se em dívidas e termina por ceder à prática que lhe causava a mais profunda repulsa quando escrevia poemas patrióticos: a aceitação de propinas. No longer at ease começa com o seu julgamento por esse crime (praticado indiscriminadamente), que o desmoraliza. Como diria o seu chefe, o inglês Mr. Green, num tom que nos é familiar, nestes últimos tempos, pelas declarações do pastor Marcos Feliciano, o homem-forte da comissão dos direitos humanos e minorias, para a alegria geral: “São todos corruptos. Sou totalmente a favor da igualdade e tudo o mais… Mas a igualdade não vai modificar os fatos… os africanos, ao longo de muitos séculos, foram vítimas do pior clima do mundo e de todas as doenças imagináveis. Não é culpa deles, claro. Mas o fato é que foram mental e fisicamente solapados. Nós trouxemos para eles a educação ocidental. Mas de que isso adianta?”[3]

Ao narrar a “maldição da serpente” que vitima Obi, não se pense que Achebe tome partido da tradição. Com sua prodigiosa capacidade de síntese, se não há aquela impressionante atmosfera ancestral de O mundo se despedaça (onde se confrontavam os valores e decisões do avô e do pai de Obi), em No longer at ease ele consegue nos enfronhar na  formação de seu herói lukácsiano, desvendando  ao mesmo tempo (de uma forma pedagógica) conflitos de gerações, estruturas de poder, dilemas éticos, lembrando muito aqueles romances russos maravilhosos, como os de Turgueniev (Pais e Filhos; Rudin), nos quais a trajetória e os conflitos de um personagem descortinavam um amplo panorama social e de embates ideológicos, geralmente num momento de encruzilhada[4].

E assim como Turgueniev e outros russos geniais, que sempre estão na pauta do dia, Chinua Achebe já desde o início de sua trajetória (ele publicou No longer at ease aos 30 anos) virava aquela curva da estrada onde particularidade e universalidade se cruzam. Um escritor essencial.

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ANEXO

JOURNEY OF THE MAGI

“A cold coming we had of it,

Just the worst time of the year

For a journey, and such a long journey:

The ways deep and the weather sharp,

The very dead of winter”.

And the camels galled, sore-footed, refractory,

Lying down in the melting snow.

There were times we regretted

The summer palaces on slopes, the terraces,

And the silken girls bringing sherbet.

Then the camel men cursing and grumbling

And running away, and wanting their liquor and women,

And the night-fires going out, and the lack of shelters,

And the cities hostile and the towns unfriendly

And the villages dirty and charging high prices:

A hard time we had of it.

At the end we preferred to travel all night,

Sleeping in snatches,

With the voices singing in our ears, saying

That this was all folly.

 

Then at dawn we came down to a temperature valley,

Wet, bellow the snow line, smelling of vegetation,

With a running stream and a water-mill beating the

         Darkness,

And three trees on the low sky.

And an old white horse galloped away in the meadow.

Then we came to a tavern with vine-leaves over the lintel,

Six hands at an open door dicing for pieces of silver,

And feet kicking the empty wine-skins.

But there was no information, so we continued

And arrived at evening, not a moment too soon

Finding the place; it was (you may say) satisfactory.

 

And this was a long time ago, I remember,

And I would do it again, but set down

This set down

This: were we led all that way for

Birth or Death? There was a Birth, certainly,

We had evidence and no doubt. I had seen birth and death,

But had thought they were different; this Birth was

Hard and bitter agony for us, like Death, our death.

We returned to our places, these Kingdoms,

But no longer at ease here, in the old dispensation,

With an alien people clutching their gods.

I should be glad of another death.”

Journey_of_the_Magi__TS_Eliot_drawings_by_McKnight_Kauffer


[1] Devo essa citação à leitura de Cultura e Imperialismo, de Edward W. Said (traduzido por Denise Bottmann para a Companhia das Letras). Tenho problemas com certas idéias e principalmente algumas análises de Said, e já cheguei a detestar seu livro, mas agora acredito tratar-se de uma leitura obrigatória.

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[2] Antes de comentar o infeliz título nacional, adianto que fiquei realmente surpreso, desagradavelmente surpreso, com essa tradução de Rubens Figueiredo, que me parece indigna dele. Não teria espaço aqui para enumerar as infelizes soluções (por exemplo, em vez de adotar um glossário, como fez a falecida—exatamente dois anos antes de Achebe, em 21 de março de 2011) Vera Queiroz da Costa e Silva, em suas ótimas versões de O mundo se despedaça & A flecha de Deus, ele usa o termo africano e o parafraseia!!!??? Além do mais, há passagens como aquela em que Obi tira uma garota para dançar e lemos: “Você vem dançando há muito tempo?”!!!??? (alguém fala assim?). E quando Obi está discutindo a obra-prima de Graham Greene, The heart of the matter, ele traduz o título literalmente como O coração da matéria (que não quer dizer nada, convenhamos), na melhor e mais bizarra tradição Oscar Mendes, mesmo sabendo que recentemente lançaram uma versão do livro de Greene com o título (correto) de O cerne da questão.

Possivelmente não é culpa do tradutor, mas A paz dura pouco é um título muito ruim. No original, é No longer at ease, retirado de um poema de T.S. Eliot, Journey of the magi-A viagem dos magos, que fazem parte dos Poemas de Ariel.

Chinua Achebe utiliza como epígrafe do se romance, os versos finais:

“We returned to our places, these Kingdoms,

But no longer at ease here, in the old dispensation,

With an alien people clutching their gods.

I should be glad of another death”.

Podemos não culpabilizar Figueiredo da escolha do título brasileiro, mas sim da tradução sofrível que ele faz do trecho:

“Voltamos para nossas moradas, estes reinos,

Mas a paz dura pouco aqui, nos antigos domínios,

Com um povo estrangeiro, aferrado a seus deuses.

Uma outra morte me deixaria feliz.”

Vejamos a solução encontrada por Ivan Junqueira (no volume dedicado à Poesia Completa de Eliot, publicado pela ARX):

“Regressamos às nossas plagas, estes Reinos,

Porém aqui não mais à vontade, na antiga ordem divina,

Onde um povo estranho se agarra aos próprios deuses.

Uma outra morte me será bem-vinda.”

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[3] É preciso dizer que Mr. Green, com toda a possível caracterização caricatural, é um dos achados do romance. Vejamos a percepção que Obi tem dele:

“Havia tempo que Obi passara a admitir para si mesmo que, por mais que o Sr. Green lhe desagradasse, ele tinha algumas qualidades admiráveis. Por exemplo, sua dedicação ao serviço. Com chuva ou sol, estava no escritório meia hora antes do horário oficial, e muitas vezes trabalhava até muito depois das duas horas, ou voltava de novo ao anoitecer. Obi não entendia aquilo. Ali estava um homem que não acreditava num país, e mesmo assim trabalhava duro por ele. Será que acreditava no dever simplesmente como uma necessidade lógica? Vivia adiando sua consulta ao dentista porque, como sempre dizia, tinha um trabalho urgente para fazer. Era como um homem que tem uma tarefa grandiosa e suprema que deve ser concluída antes que ocorresse uma catástrofe final. Aquilo fazia Obi se lembrar de uma coisa que tinha lido sobre Mohammed Ali do Egito, que quando velho trabalhou freneticamente para modernizar seu país, antes de sua morte.

   No caso do Sr. Green, era difícil enxergar qual era seu prazo, a menos que fosse a independência da Nigéria. Diziam que tinha pedido demissão quando se pensou que a Nigéria podia ficar independente, em 1956. Depois se viu que isso não ocorreria, e o Sr. Green foi persuadido a retirar o pedido de demissão.”

[4] É por esse motivo que me causou espanto a tosca crítica de Luís Brás sobre o livro na Folha de São Paulo, na qual o resenhista também faz um paralelo com um russo, no caso Dostoievski, e erra o alvo (a questão do final edificante), diferenças de opinião à parte, tanto com relação ao do livro de Achebe quanto com relação a Crime e Castigo:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/91794-nocao-de-justica-infalivel-tira-a-forca-de-livro-de-nigeriano.shtml

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