(resenha comemorativa dos 20 anos de minha coluna em A TRIBUNA de Santos, publicada em 09 de abril de 2013, sem notas de rodapé ou anexo)
Ao iniciar esta minha coluna em A TRIBUNA, em 11 de abril de 1993, comentei A Música do Acaso (1990), de Paul Auster. Nada melhor como marco comemorativo, então, do que avaliar outro romance do grande escritor norte-americano, SUNSET PARK [2010, em tradução de Rubens Figueiredo], ainda mais que ele foi publicado 20 anos depois daquele livro emblemático.
Ao contrário de A Música do Acaso, que ia na jugular, com uma agilidade narrativa impressionante, num exercício fantástico de concisão e contenção, SUNSET PARK é um relato que se permite vários espraiamentos, permeados por um tom meditativo. Ele aborda três gerações da família Heller e, através delas, os rumos de uma América fraturada em suas aspirações de grandeza.
O avô, empreendedor imobiliário bem-sucedido, não lutou devido a uma lesão num jogo de beisebol, mas pertence à geração que “fez a (segunda) guerra”[1]. Ele e a esposa participaram da construção de um american way of life que parecia muito plácido e seguro de si, porém era, no fundo, a tradução do trauma (“mesmo os anos depois da guerra ainda faziam parte da guerra”[2]), que os conflitos bélicos de uma nação cada vez mais predatória e intervencionista aprofundariam a cada década, à custa da sanidade de uma boa parte da população: “Uma geração estranhamente otimista, pensa ele agora, resistente, digna de confiança, trabalhadora e também um pouco burra, talvez, mas todos eles compraram o mito da grandeza americana e viveram com menos dúvidas do que seus filhos, os rapazes e moças do Vietnã, os revoltados filhos do pós-guerra que viram seu país se tornar um monstro doentio e destrutivo (…) um universo ético feito das platitudes virtuosas dos filmes de Hollywood—valentia, garra, e render-se jamais.”[3]
Tendo o pai, Morris, como ponto de ligação, representando a geração do próprio Auster (atualmente com 66 anos), a dos “filhos da Grande Guerra” (a última com prestígio moral), o cerne de SUNSET PARK é o filho, Miles, que encontramos em plena crise causada pela explosão da “bolha imobiliária”, a qual projetou os EUA na decadência econômica aguda, numa nova Depressão. No começo do livro, ele está na Flórida e seu emprego é limpar casas que os donos perderam ao não “honrar” as hipotecas. Por conta da ligação amorosa com uma menor de idade (com quem pretende se casar), é obrigado a fugir para Nova York; se o avô fez dinheiro com especulação imobiliária, o neto fará parte de uma pequena comunidade que ocupa ilegalmente uma casa. Um daqueles eventos trágicos tipicamente austerianos fez com que Miles se autoimpusesse uma existência “abaixo da linha do radar”, meio assombrada e insubstancial, exilando-se da família por vários anos.
Possuidor de personalidade carismática “capaz de modificar a atmosfera toda vez que entrava em algum lugar. Seria o poder de seus silêncios, que o fazia atrair tamanha atenção, a natureza misteriosa, contida, de sua personalidade que o transformava numa espécie de espelho em que os outros se projetavam, a sensação inquietante de que ele estava presente e ausente ao mesmo tempo? Ele era inteligente e bonito, é verdade, mas nem todas as pessoas inteligentes e bonitas emanam essa magia (…) Algumas pessoas tinham raiva dele, é claro, sobretudo rapazes, rapazes mas nunca garotas (…) Mesmo agora, tantos anos depois, o efeito Heller parece ter sobrevivido à longa odisséia de ida e volta a lugar nenhum”, ele tem em si amplas reservas daquela fibra moral dos avós, só que ela parece empurrá-lo rumo a uma implosão emocional, a situações derrisórias, potencialmente trágicas. É como se esse ethos americano já não encontrasse mais lugar no mundo e estorvasse o caminho rumo a novas soluções.
SUNSET PARK se volta também para os outros membros da comunidade da casa invadida (há um discreto exercício polifônico; o que surpreende é que Auster não se interessa em nenhum momento em dar voz à Pilar, a namorada de Miles[4]). Como sempre em Auster, muitas histórias se entrelaçam, movida por coincidências sempre instigantes, gravitando em torno da conclusão inevitável: “A atração das histórias, sempre as histórias, milhares de histórias, milhões de histórias, e mesmo assim nunca nos cansamos delas, sempre há espaço no cérebro para mais uma história…”.
O que essa colisão de histórias, de pessoas, de gerações, de corpos e almas[5], de guerra e paz permite entrever é o abissal apego de Auster à ideia de família. Já vimos em outros romances sua obsessão com a paternidade, mas aqui o próprio conceito de lar é trabalhado até as últimas conseqüências, como parte essencial da nossa identidade, para o bem e para o mal. E como avesso da costura, um entorno fantasmática: apesar das referências mais concretas (datas, por exemplo), sempre há algo de dissolvente no universo do autor de O Livro das Ilusões (2002), uma possibilidade de vidas alternativas, a sombra desconcertante de existências não-vividas, vítimas do acaso que somos, presos no destino irrevogável que ele proporciona. Um escritor, muito amigo de Morris (e padrinho de Miles) diz: “É com essa ideia que ele anda brincando, diz Renzo, escrever um ensaio sobre as coisas que não acontecem, as vidas que não são vividas, as guerras que não são travadas, os mundos de sombras que correm paralelos ao mundo que tomamos como o mundo real, o não dito e o não feito, o não lembrado.”[6]
Um ligeiro toque “seis graus de separação” faz com que vários personagens analisem e citem o clássico hollywoodiano Os melhores anos de nossas vidas (1946), de William Wyler[7]. Só que ninguém consegue simplesmente “gostar” do filme, embora ele emocione alguns: sempre há de permeio uma atmosfera de “suspensão da ironia”, de relativização, de “apesar de”, e também de nostalgia, pois ele é parte daquela ideologia de superação e acomodamento que fez os EUA do american way of life triunfante:
“Você viu Os Melhores Anos de Nossas Vidas?
Claro, diz Ellen. Todo mundo conhece esse filme.
Você gosta?
Muito. É um dos meus filmes de Hollywood prediletos.
Por que você gosta?
Não sei. Me comove. Sempre choro quando assisto.
Não acha um pouco forçado demais?
É claro que é forçado. Afinal é um filme de Hollywood, não é? Todos os filmes de Hollywood são sempre artificiais, não acha?
Bom argumento. Mas esse filme é um pouco menos artificial do que a maioria—é o que você está dizendo?”
Ou seja, nunca poderemos simplesmente “assistir” ao filme sem todo o palimpsesto de admiração-pé atrás-decodificação de ideologia-admiração-apesar-disso. E, num efeito especular sumamente perverso, a mãe de Miles, famosa atriz, é convidada a estrelar uma montagem de Dias Felizes (1961), a peça mais desafiadora de Samuel Beckett (autor particularmente admirado por Auster). A própria área semântica que aproxima os dois títulos permite ao leitor refletir toda a corrosão interna da mentalidade (e do espetáculo) das gerações que viveram de 1946 a 1961, e seus herdeiros, já que hoje uma peça como Dias Felizes parece nos representar mais. Ninguém assiste com ironia e/ou nostalgia à peça.
Tudo somado, se é o caso de se lamentar (um pouquinho) o Auster mais arrojado formalmente, ou mais labiríntico, ou mais faca-só-lâmina, não deixo de saudar esse Auster mais reflexivo, pensador profundo de seu país, e que, além disso, acaba por surpreender seu leitor contumaz com amplas reservas de emoção e empatia (embora não tenha retrocedido de Dias Felizes a Os melhores anos de nossas vidas), que não deixam de ser também modos persistentes da fibra moral. Um Auster no esplendor da maturidade.
ANEXO
“Sua mãe foi uma filha da guerra, assim como foi também a mãe de Renzo, assim como foram todos os pais deles, tenham lutado na guerra ou não, tenham sido moças de quinze ou dezessete anos ou mulheres de vinte e dois, quando a guerra começou. Uma geração estranhamente otimista, pensa ele agora, resistente, digna de confiança, trabalhadora e também um pouco burra, talvez, mas todos eles compraram o mito da grandeza americana e viveram com menos dúvidas do que seus filhos, os rapazes e moças do Vietnã, os revoltados filhos do pós-guerra que viram seu país se tornar um monstro doentio e destrutivo. Garra. Essa é a palavra que lhe ocorre toda vez que pensa na mãe. Mulher de garra e sem papas na língua, com força de vontade e carinhosa, uma mulher difícil. Recasou duas vezes depois da morte de seu pai, em 78, perdeu os dois novos maridos para o câncer (…)era a ele que ela procurava quando tinha problemas, os quais nunca eram classificados como problemas (todas as palavras negativas tinham sido banidas do vocabulário da mãe), mas sim como ´coisinhas´, como em Eu tenho umas coisinhas para conversar com você. Cegueira voluntária, era assim que ele chamava aquilo, uma insistência obstinada em procurar o lado bom das coisas, as vitórias morais, uma atitude do tipo ´a hora escura é a que precede a alvorada´em face dos acontecimentos mais devastadores (…)aquele era o mundo de onde sua mãe tinha vindo, um universo ético feito das platitudes virtuosas dos filmes de Hollywood—valentia, garra, e render-se jamais. Admirável à sua maneira, sim, mas também enlouquecedor, e à medida que os anos transcorreram, ele compreendeu que boa parte daquilo era uma impostura, que dentro do espírito supostamente indomável da mãe havia também medo, pânico e uma tristeza avassaladora (…) Se a experiência nos ensinou que todos os corpos devem e vão trair a pessoa a quem pertencem, por que não vamos pensar que uma ligeira dor de estômago é o prelúdio de um câncer no estômago, que uma dor de cabeça significa um tumor cerebral, que uma palavra ou um nome esquecido é o augúrio da demência? Os últimos anos da mãe foram passadas entre consultas a médicos, dúzias de especialistas…”
[1] “Quando era muito pequeno, cinco ou seis anos de idade, sentia-se frustrado porque o pai não tinha lutado na guerra, ao contrário dos pais da maioria de seus amigos, e porque enquanto os outros estavam em partes remotas do mundo matando japoneses e nazistas e se transformando em heróis, seu pai estava em Nova York, mergulhando em detalhes triviais de sua empresa imobiliária, comprando prédios, administrando prédios, consertando prédios o tempo todo, e ele ficava intrigado com o fato de seu pai, que parecia tão forte e apto, ter sido rejeitado pelo exército quando tentou se alistar. Mas naquela altura ele ainda era jovem demais para compreender como tinha sido grave o ferimento no olho do pai, jovem demais para ser informado de que, do ponto de vista legal, o pai estava cego do olho esquerdo desde os dezessete anos de idade (…) uma parte de sua vida tinha sido arrancada naquele campo de beisebol no Bronx, em 1932, da mesma forma como o braço de um soldado pode ser arrancado num campo de batalha na Europa.” Ao longo do romance, são vários os casos trocados entre pais e filhos sobre carreiras truncadas no beisebol, a questão da “sorte” e do “azar” na carreira. E, detalhe importante, são sempre as mães que contam. Os homens se fecham em seu silêncio, e Miles Heller é o epítome tardio dessa atitude.
[2] “… é simplesmente impossível para ele falar a respeito daqueles anos, todos voltaram para casa enlouquecidos, estragados para a vida normal, e mesmo os anos depois da guerra ainda faziam parte da guerra, os anos dos pesadelos e dos suores noturnos, os anos de querer dar murros nas paredes, e então seu avô a distrai contando como cursou a faculdade com a bolsa que o governo ofereceu para os ex-combatentes, como conheceu sua avó num ônibus um dia e se apaixonou por ela à primeira vista, papo furado, papo furado, do início ao fim, mas ele é um daqueles homens que não conseguem falar, um membro de carteirinha da geração dos homens que não conseguem falar…”
[3] A passagem a que pertence esses trechos encontra-se em ANEXO.
[4] É um ponto que me incomodou também em O animal agonizante, de Philip Roth. Ver aqui no blog: https://armonte.wordpress.com/2013/03/16/resenhas-rotharianas-1-o-animal-agonizante-e-o-escritor-tambem/; por isso, nunca deixo de louvar a intimorata atitude de John Updike em um livro como Terrorista: https://armonte.wordpress.com/2013/03/21/o-mestre-da-mesmice-fosca-do-cotidiano-updike-flaubert-up-to-date/
[5] “O corpo humano vive na mente de quem possui um corpo humano e morar dento do corpo humano dotado de mente que percebe um outro corpo humano é viver num mundo de outros.” SUNSET PARK é, entre outras coisas, um romance sobre corpos/mentes que tomam plena consciência de outros corpos/mentes.
[6] Esse trecho faz parte de uma das passagens mais significativas do romance (entre outras coisas, por seu lado especular com relação à vida do protagonista, Miles). Tem a ver com a vida do próprio Renzo e de um dos atores do filme Os melhores anos de nossas vidas, Steve Cochran: “…a história que sua mãe certa vez lhe contou, que havia conhecido Cochran durante a guerra, sim, sua mãe, Anita Michaelson (…) contou para ele sobre sua breve paixão pelo teatro no início da década de quarenta, uma garota de quinze, dezesseis, dezessete anos, e como seu caminho se cruzou com o de Cochran em algum grupo de teatro de Nova York e ela ´ficou caída por ele´. Era um homem tão bonito, disse ela, um desses irlandeses rudes, morenos e passionais, mas nunca ficou totalmente claro para Renzo o que significava aquele ´caída´. Será que a mãe perdeu a virgindade com Steve Cochran em 1942, quando tinha dezessete anos? Será que foi um caso completo… ou só uma coisa superficial, um flerte de adolescente com um ator promissor de vinte e cinco anos? Impossível dizer, mas o que sua mãe relatou de fato foi que Cochran queria que ela fosse com ele para a Califórnia, e ela estava pronta para ir, mas quando seus pais souberam o que estava sendo armado, deram imediatamente um basta naquela história. Não com a filha deles, nada de escândalos nessa família, esqueça, Anita. E então Cochran partiu, sua mãe ficou e acabou casando com seu pai, e foi assim que Renzo nasceu—porque sua mãe não fugiu com Steve Cochran. É com essa ideia que ele anda brincando, diz Renzo, escrever um ensaio sobre as coisas que não acontecem, as vidas que não são vividas, as guerras que não são travadas, os mundos de sombras que correm paralelos ao mundo que tomamos como o mundo real, o não dito e o não feito, o não lembrado. Território arriscado, talvez, mas podia valer a pena explorá-lo”.
Mais adiante lemos:
“No final, o que mais fascina Morris é que ele suprimiu de forma completa os fatos acerca da morte de Cochran, que devem ter chegado a seu conhecimento quando tinha dezessete anos, mas, mesmo depois da conversa com a mãe (que teoricamente devia ter feito daquela história algo impossível de esquecer), ele esqueceu tudo. Em 1965, esperançoso de revitalizar sua moribunda empresa de produção cinematográfica, Cochran elaborou o projeto de um filme passado na América Central ou do Sul. Com três moças entre catorze e vinte e cinco anos de idade, supostamente contratadas como assistentes, ele partiu para a Costa Rica em seu iate de quarenta pés para começar a pesquisar locações. Algumas semanas depois, o barco foi lançado à praia pelas ondas, na costa da Guatemala. Cochran morreu a bordo com uma grave infecção pulmonar e as três moças dominadas pelo pânico, que nada sabiam de navegação à vela num iate de quarenta pés, ficaram à deriva no oceano durante dez dias, sozinhas com o cadáver de Cochran que já ia se putrefazendo. Renzo diz que não consegue apagar a imagem de sua mente. As três mulheres apavoradas, perdidas no mar com o corpo em decomposição do astro de cinema embaixo do convés, convencidas de que nunca mais iriam chegar a terra firme outra vez.”
[7] Que o leitor me permita uma extrapolação pessoal: hoje em dia é comum uma certa torcida de nariz para esse grande estilista da imagem e do drama da velha Hollywood. Mas foi justamente Os melhores anos de nossas vidas que eu assisti aos 10 ou 11 anos, e me impressionou muito, que me deixou com uma admiração indelével por Wyler, reforçada por outros que também vi logo cedo: Pérfida, Tarde Demais, A carta…Em todo caso, Os melhores anos é, para mim, um dos maiores momentos do cinema hollywoodiano.
VER TAMBÉM NO BLOG:
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