MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

06/07/2012

A pulp fiction de Faulkner: “Lance Mortal” (“Knight´s Gambit”)


(resenha originalmente publicada—sem a citação inicial e as notas de rodapé—em  A TRIBUNA, de Santos, em 03 de julho de 2012)

“Como promotor  do condado, ele nada tinha a fazer ali, mesmo que não tivesse sido um acidente.  Sabia disso. Ia olhar o rosto do homem morto por uma razão sentimental. O que era agora o condado de Yoknapatawpha fora fundado não por um único pioneiro, mas por três ao mesmo tempo. Eles vieram juntos a cavalo, através do desfiladeiro Cumberland, das  Carolinas, quando Jefferson ainda era um posto da Agência Chicasaw, e compraram terra na área indígena e estabeleceram famílias e prosperaram e desapareceram, e agora, cem anos depois, havia no condado que eles ajudaram a fundar um único representante desses três nomes.

   E ele era Stevens, porque o último da família Holston falecera antes do final do século passado, e Louis Grenier, cujo rosto morto Stevens estava dirigindo 12 quilômetros no calor de uma tarde de julho para ver de perto, nunca soube que era Louis Grenier.  Ele não podia nem soletrar Lonnie Grinnup como ele mesmo se chamava…”

(trecho de Mãos sobre as águas)

No dia 6 deste mês faz 50 anos que William Faulkner morreu. Dos vários títulos da sua obra que a Editora Benvirá acaba de lançar, o único ainda inédito por aqui é Lance Mortal, coletânea de cinco contos e um pequeno romance, publicada originalmente em 1949, no momento em que o mais genial dos ficcionistas norte-americanos (e, na minha opinião, o maior escritor do século XX, junto com Thomas Mann) ganhava o prêmio Nobel.

Mais uma vez, como acontece amiúde com Faulkner no Brasil, o título original (Knight´s Gambit, “Gambito do cavalo”, clássico ardil do jogo de xadrez) foi inoportunamente alterado; mais uma vez foram veiculadas informações errôneas (na contracapa, afirma-se que Gavin Stevens, o protagonista das histórias, é “advogado de defesa de uma pequena cidade do interior”; na verdade, ele é o promotor, como se pode confirmar na citação acima); e mais uma vez, apesar de sua respeitabilidade, a versão de Wladir Dupont (tradutor de vários outros livros do criador da mítica região de Yoknapatawpha, simbolizando o Sul dos EUA: Enquanto agonizo, O povoado, A cidade, A mansão, Os invictos) deixa muito a desejar e embota o brilho faulkneriano com soluções desanimadoras[1].

Nem por isso o leitor brasileiro deixará de ter prazer pelo menos com os enredos fabulosos e intrigantes dos seis relatos. Faulkner sempre gostou de publicar conjuntos de histórias que poderiam até ser tomados como um romance por conta de algum forte elemento unificador. No caso, esse papel cabe a Stevens (na maior parte das vezes, visto obliquamente por seu sobrinho), porta-voz dos valores mais profundos e sólidos do Deep South e do próprio Faulkner: fatalista, mas nunca cínico; desiludido com o empedernimento da natureza humana, mas nunca indiferente.[2]

Sua atuação como promotor explica o flerte que o livro faz com o gênero policial. Há todos os ingredientes da chamada pulp fiction: sexo, cobiça, triângulos amorosos fatais, gangsterismo, psicopatia, o que faz a diferença é a maneira sinuosa com que tudo é contado. Como Henry James, seu compatriota mais ilustre na área da ficção, Faulkner tem horror a contar de forma direta, e tudo fica alusivo: o que é importante ocorre nos bastidores e parece que mais se faz uma exegese dos acontecimentos do que se narra[3].

A melhor história é Amanhã (no original, Tomorrow), onde Stevens quer saber por que um único jurado apenas não votou pela absolvição de um pai que matara o sedutor da filha. Assim, ele procura os vizinhos do renitente cidadão e vai montando o quebra-cabeça do voto contra. É um momento magistral da arte falkneriana.

Também adoro Fumaça (no original, Smoke)[4] e Um erro de química (no original, Na error in chemistry), onde truques à Perry Mason no tribunal ou à Agatha Christie (personagens disfarçados que enganam todo mundo) auferem um clima teatral  aos enredos mirabolantes. Os dois envolvem uma ganância lenta e paciente, cultivada entre os labregos sulistas, e são quase bíblicos ao retratar as relações de parentesco ou casamento.

Monk e Mãos sobre as águas (no original, Hand upon the Waters) também não poderiam ser de outro escritor, são imediatamente reconhecíveis como faulknerianos em seu mergulho na mentalidade capiau e sonsa de criminosos de Yoknapatawpha (na sua dupla representação do Mississipi e também do cosmo).

A decepção acaba sendo o texto-título. A primeira parte, ainda que um pouco decalcada (para pior) dos temas da obra-prima Absalão, Absalão! (com a família poderosa, enredada em relações meio incestuosas) é mais interessante. Depois, o relato mistura coisas demais (a associação da paixão por cavalos e os lances do xadrez[5], ilusões da juventude[6], o fascínio da guerra, visão sentenciosa da existência[7]), para descambar num final tão esquisitamente “positivo”, que nos faz crer que Faulkner estava brincando com seus leitores, no deleite de contrariar suas expectativas. É difícil imaginar Gavin Stevens feliz e realizado, num universo de solidão em que a sua amizade com o delegado do condado é caracterizada da seguinte forma: “…sempre foram amigos. Quero dizer, amigos no sentido em que dois homens que jogam xadrez são amigos, embora às vezes seus objetivos sejam diametralmente opostos”.


[1] Quando não difíceis de acompanhar, talvez por falta de uma revisão efetiva. Veja-se o seguinte trecho: “…seu instinto era parar, evitar a evasão, qualquer coisa para não violar aquela interdição, aquela hora, aquele ritual da Tradução, à qual toda a família se referia com T maiúsculo—a transposição do Antigo Testamento ao grego clássico ao qual fora traduzido dos primórdios perdidos do hebreu…”

[2] Um trecho esclarecedor:

__ Estou interessado na verdade, disse o delegado.

__ Eu também, concordou tio Gavin. É tão raro. Mas estou mais interessado em justiça e seres humanos.

__ E verdade e justiça não são a mesma coisa?, perguntou o delegado.

__ Desde quando?, replicou tio Gavin. Em minha vida tenho visto, sob a luz do sol, verdades que eram tudo menos justas, e tenho visto a justiça usando ferramentas e instrumentos que eu não tocaria com um gradil de três metros”….

[3] “E havia algo mais: um apêndice, ou de todo modo, um prolongamento; uma lenda dentro ou além da lenda autêntica ou original ou inicial; o apócrifo do apócrifo. Ele não apenas podia lembrar se ouvira da mãe ou de sua avó,  como não lembrava se sua mãe ou sua avó teriam visto ou sabido de primeira mão, ou se elas teriam ouvido de alguém mais. Era alguma coisa sobre um envolvimento anterior, de antes do casamento: um noivado, um compromisso, com (assim rezava a lenda) o consentimento formal do pai, depois quebrado, rompido, falado [sic]—alguma coisa—antes que o homem com quem ela se casaria entrasse em cena—o noivado formal de acordo com a lenda, mas tão nebuloso que mesmo vinte anos depois, com vinte anos de fofocas nas varandas pelas, como seu tio chamava, tias solteironas do condado de Yoknapatawpha de ambos os sexos, lançando um manto romântico sobre os ombros de cada varão com menos de sessenta anos que jamais bebera ou comprara um fardo de algodão do pai dela…” Este trecho é uma prova cabal de como Faulkner sobrevive à tradução menos vívida e à falta de revisão.

[4] Esta primeira história do livro já havia sido publicada em outra coletânea, da década anterior: Doctor Martino and other stories (Doutor Martino e outras histórias), 1934, ainda inédito no Brasil.

[5] O uso do cavalo para a consumação de um crime tem a participação do Sr. McCallum, que, se minha memória não me engana, aparece também em Sartoris (1929), o primeiro livro da saga Yoknapatawpha, numa cena de bebedeira com o sempre desmedido e desesperado Bayard Sartoris, do qual era companheiro de caçada na meninice.

[6] Por parte de Chick, o sobrinho de Gavin  Stevens, aliás, um dos protagonistas de O intruso (Intruder in the dust), lançado no ano anterior. A Benvirá relançou a  bela tradução de Leonardo Fróes.

[7] “Nada por meio do qual toda paixão humana e esperança e loucura possa se refletir no espelho e depois ser provado jamais foi apenas um jogo…”

4 Comentários »

  1. Oi, Alfredo. É uma pena saber que a versão de Wladir Dupont deixe a desejar. Como toda pessoa que lê e compra livros compulsivamente há muitos anos, Faulkner é um autor que está na minha fila de espera para leitura. Tenho vários livros dele mas ainda não pude ler nenhum. Boa parte das traduções que tenho são antigas. E na época que comecei a comprar, obtive um estudo de Assis Brasil chamado “Joyce e Faulkner”, o romance de vanguarda” que, creio, você deve conhecer. O exemplar que tenho é de 1992. Em um capítulo ele analisa as traduções existentes de Faulkner no Brasil. Lembro que pouco antes de comprar o livro de Assis Brasil, tinha comprado muito feliz a tradução de “Absalão, Absalão” de Sônia Régis pela Nova Fronteira. É justamente a tradução dela que ele coloca na linha de frente dos erros que, segundo ele, os tradutores cometem com mais frequência ao traduzir Faulkner. Ele começa dizendo que “Faulkner é difícil de ler no original e difícil de ser traduzido”. Alguns dos motivos oferecidos para isso são os regionalismos e as expressões idiomáticas. Começamos, então, a ver breves referências as sete traduções existentes de Faulkner no Brasil. Diz que as traduções de “Santuário” de Lígia-Junqueira Smith (que possuo) e de “Luz de Agosto”, de Berenice Xavier são, de modo geral, “simples, legíveis” (não sei ao certo o que ele quis dizer com isso. Posso apenas supor).
    Em seguida, ele passa para a tradução de “Uma Fábula” de Olívia Krahenbuhl onde afirma ter a tradutora encontrado muitos obstáculos e, por isso, reduzido algumas frases e sintetizado alguns períodos concluindo que “a sua leitura não é de todo desprezível”. Depois, a tradução de Miroel Silveira de “The Reivers”, lançada em 1963 pela editora Civilização Brasileira com o título “Os Desgarrados”, recebe a classificação de ser a mais deficiente das traduções de Faulkner já feita no Brasil: “a tradução é primária, parecendo ter sido feita por um estudante de inglês…”. Antes e depois ele oferece alguns exemplos de equívocos dessa tradução. Rapidamente passamos pelas traduções de “Desça, Moisés” e “Os Invencidos” feitas respectivamente por Hélio Pólvora e Waltensir Dutra. Na avaliação dele, “a segunda tradução tem melhor competência e desempenho” (somente através dessa afirmação creio que fica difícil saber o porquê. Falo isso porque acredito ser interessante termos alguns exemplos como ele ofereceu na tradução de Miroel Silveira, Sônia Régis e como você sempre exibe aqui. Esclarecem muito a nós, leitores).
    Posteriormente, vem a tradução de Sônia Régis analisada mais detidamente de forma muito esclarecedora e útil, a meu ver. Não vou reproduzir aqui os dois longos trechos do romance na tradução e em inglês utilizados como ilustração para se referir aos erros mais comuns que os tradutores cometem vertendo Faulkner para nossa lingua. Apenas colocar quais os equívocos mais frequentes observados através dos exemplos da tradução de Sônia Régis. Segundo ele, a tradutora “tem o mesmo ‘pavor” dos outros tradutores brasileiros, ou seja, a mania de podar o estilo de Faulkner, reduzindo seus belos períodos, primeira e forte característica da prosa do escritor.” Em seguida, é exibido um trecho traduzido da parte inicial de “Absalom, Absalom!” “quando dois longos períodos são transformados em três e a cadência da prosa faulkneriana é prejudicada”. Depois, o próprio Assis Brasil traduz o mesmo trecho e dessa vez, segundo ele, “respeitando a pontuação de Faulkner e procurando encontrar palavras mais espontâneas”. Em um segundo exemplo, ele aponta falhas semelhantes nas quais a autora faz uma divisão inexistente de período e não busca palavras correspondentes ao vocabulário do autor.
    Digo isso porque depois de ler esse estudo de Assis Brasil procurei acompanhar com atenção toda nova tradução de Faulkner que surgia e obter informações sobre o tradutor. De poucos anos para cá é que começaram a surgir muitas traduções inéditas desse clássico escritor. Mas, como disse, fui comprando o que pude sem poder fazer qualquer comparação dentro do meu limitado inglês. Apenas confiando no renome das editoras e tradutores. Uma das primeiras traduções que obtive dessa, digamos, “nova fase” de Faulkner no Brasil foi justamente uma de Wladir Dupont que me pareceu ser um especialista no escritor pois ele traduziu uma famosa trilogia faulkneriana.
    Bem, é isso, meu caro Alfredo. Abraços para você e agradeço em relação a tudo que você puder me esclarecer sobre o que coloquei aqui. Especialmente em relação as traduções mais confiáveis de Faulkner no Brasil. Obrigado.

    Comentário por Fabrizio Lyra — 07/07/2012 @ 2:28 | Responder

    • Caro Fabrizio, as traduções do Dupont são legíveis, é claro, mas me decepcionam porque falta, nelas, a vontade de realmente reproduzir o virtuosismo do estilo de Faulkner, que não é um virtuosismo vão, gratuito, e sim uma poderosa retórica, de ressonância bíblica, que combina totalmente com o mundo que ele criou.
      Mas há no Brasil ótimas traduções do grande escritor norte-americano:
      – a de Leonardo Fróes, magnífica, para os ESQUETES DE NOVA ORLEANS e para O INTRUSO
      – as traduções publicadas pela CosacNaify, de “O som e a fúria”, “Luz em agosto” e “Sartoris”;
      – a tradução de Hélio Pólvora para “Enquanto agonizo” e “Desça, Moisés”
      – a tradução de Waltensir Dutra para “Os invencidos”
      – a tradução de Hamilton Trevisan para “O urso”.
      Não é satisfatório, com certeza, não é, mas é muito melhor do que há 30 anos, quando comecei a ler Faulkner.
      Obrigado pela sua contribuição, principalmente a menção ao ótimo “Joyce & Faulkner”, de Assis Brasil, que também me foi muito útil e esclarecedor.
      Um grande abraço

      Comentário por alfredomonte — 08/07/2012 @ 13:09 | Responder

  2. Obrigado, Alfredo. Vou guardar a sua lista e esperar pelos comentários que com certeza você fará de novas traduções de Faulkner que forem surgindo.
    Abraços

    Comentário por Fabrizio Lyra — 08/07/2012 @ 17:13 | Responder

    • Valeuy, Fabrizio. Aproveito a oportunidade para dizer que adoro seus comentários no blog da Denise Bottmann. É ótimo ter um leitor atento como você. Abração.

      Comentário por alfredomonte — 08/07/2012 @ 17:37 | Responder


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