MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

11/05/2012

A CAIXA SALINGER, inclusive com as joias da coroa

I-

SERÁ QUE LESLIE FIEDLER TINHA RAZÃO?

resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de agosto de 2003

Em 1953 (portanto, há 50 anos) era publicada a coletânea Nove estorias. Isso deve ter motivado a Editora do Autor a lançar os três livros de J.D. Salinger que detém em seu catálogo juntos numa caixa (cujo preço salgado é bastante desproporcional aos três volumes): o próprio Nove estórias; o clássico O apanhador no campo de centeio (1951), já várias vezes reeditado; e Franny e Zooey (1961), que só havia sido publicado uma vez no Brasil e é, portanto, de certa forma o destaque. Por esse motivo, inicia uma pequena série de artigos.

O livro divide-se em dois textos, numa estrutura que lembra a de Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour, uma apresentação. Há um mais anedótico, por assim dizer, Franny (publicado originalmente em 1955) e um outro mais diretamente comprometido com a mística muito particular da família Glass, Zooey (que apareceu em 1957; entre ambos, Salinger publicou Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira, no qual, segundo alguns, “deu adeus à vida real”); isso significa que é narrado por Buddy, irmão de Franny e Zooey, e que em algum momento se pode esperar ensinamentos espirituais derivados do irmão mais velho deles, Seymour, o qual se suicidou com um tiro.

Seymour é muito chato, Buddy e Zooey ficam muito chatos quando trazem à baila seus ensinamentos. No entanto, Seymour é a pedra angular dos textos que envolvem a família Glass. Será possível não o suportar e ainda assim apreciá-los?

É possível. Salinger é um escritor fenomenal. Fica difícil engolir a preleção mística, mesmo assim é impossível não se emocionar com os vínculos afetivos e existenciais que envolvem a família Glass, que só encontrará páreo, na ficção norte-americana, na família Berry criada por John Irving no inesquecível Hotel New Hampshire (1981), no qual há também uma Franny.

A Franny de Salinger tem uma espécie de colapso nervoso em meio a um fim de semana que foi passar com o namorado, Lane (ambos estão cursando universidades de elite). Ela está passando por um surto de paroxismo místico e não consegue levar a sério as preocupações intelectuais e acadêmicas dele.

O que torna o texto brilhante é a maneira como a tensão sexual, mais do que as diferenças ontológicas, entre eles, é explorada em detalhes certeiros. Pot exemplo, ao vê-la na estação com um casaco de lontra (que destoa dos modelitos femininos em voga), Lane sente o orgulho da posse de uma garota tão bonita e rara (sabemos que Franny é bonita e rara porque Salinger não poupa elogios aos membros da família, com um exagero que chega a ser constrangedor): “pensava, com uma excitação reprimida, que era a única pessoa naquela plataforma que realmente conhecia o casaco de Franny. Lembrava-se de que, certa vez, num carro emprestado, depois de beijar Franny por meia-hora mais ou menos, beijara também a gola daquele casaco, como se fosse um prolongamento orgânico e perfeitamente desejável da própria pessoa que o vestia”.

Quando horas mais tarde, eles já estão praticamente em guerra, Franny vai ao banheiro e e olha o casaco: “Examinou-o agora com uma antipatia pouco menos do que irrestrita. As rugas do forro de seda pareciam, por alguma razão, irritá-lo profundamente”.

No segundo texto, Franny volta para casa, após o desastroso fim-de-semana, e seu irmão Zooey, tão desamparado quanto ela diante da vida que tem de enfrentar com os padrões espirituais que adquiriu do irmão mais vellho, tenta ajudá-la, até mesmo se passando por Buddy, numa conversa telefônica. Ambos são muito jovens (são os caçulas) e têm nítida percepção do custo de manter seus padrões (o suicídio de Seymour, o isolamento obsessivo de Buddy, a alienação deliberada de Boo Boo, a outra única moça entre os sete irmãos).

É um texto que fascina e irrita, da mesma forma que Seymour, uma apresentação. Há um diálogo enorme e genial entre Zooey e a mãe, Bessie Glass, um dos melhores momentos da ficção do século XX; há a sensacional descrição da sala onde Franny está prostrada (numa formulação salingeriana do dilema da Bela Adormecida, ela está se preparando para acordar para a vida), que mostra que Salinger é um grande cronista de uma determinada faixa social de Manhattan; contudo, quando envereda pelas intermináveis exortações de Zooey a Franny sobre uma conduta espiritual mais autênticqa e correta, pisamos na lama e sentimos a derrapagem.

O final, então, parece saído de um manual de auto-ajuda. E aí faz sentido o (maldosíssimo) reparo de Leslie Fiedler quanto aos personagens de Salinger: “A angústia deles é improvavelmente inspirada em perguntas do tipo: Será que o garoto de Harvard com quem vou sair no fim-de-semana realmente compreende o que é poesia”.

II

GEORGE STEINER NÃO TINHA RAZÃO

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 19 de agosto de 2003)

“Decidi que ia sumir do Pencey, dar o fora naquela noite mesmo e tudo. Nada de esperar até quarta-feira. Não quero mais ficar zanzando por lá. O troço todo estava me deixando triste e solitário pra burro. Por isso resolvi ir para um hotel em Nova York, um hotelzinho barato e tudo, e ficar flanando até quarta-feira. Aí, na quarta-feira, ia para casa descansado e me sentindo cem por cento… Além disso, eu estava precisando de umas feriazinhas. Meus nervos estavam abalados. No duro.”

Como inúmeras outras pessoas, ao longo dos últimos 50 anos, eu sou doido por O apanhador no campo de centeio. Mas por que será que a história de um pirralho riquinho de 16 anos, expulso de um colégio de elite, resolvido a “flanar” por alguns dias, antes de contar a situação para os pais, acabando por se envolver em episódios mais ou menos sórdidos, numa trajetória que o levará direto a um sanátório, enfeitiçou tantos leitores no mundo inteiro, transformando-se num cult.

O grande crítico George Steiner avaliou isso de forma negativa: “Ele nada exige dos seus leitores em termos de cultura ou interesse político, lisonjeia-lhes a ignorância e a superficialidade moral. Sugere-lhes que a ignorância, apatia política e um vago sentimento de tristeza são virtudes. É aí que entra o uso engenhoso e meio deturpado que ele faz do zen. O zen está na moda. Gente que nem sequer tem os rudimentos de conhecimento necessários à leitura de Dante, nem a fibra que Schopenhauer exige, compra logo o último livro sobre zen”.

Tirando o fato de que ninguém é obrigado a ler Dante ou Schopenhauer, pode-se argumentar que um dos pontos centrais de O apanhador no campo de centeioé que o desamparo de Holden Caulfield evidencia-se porque percebe que todo o aparato da cultura formal está fundado numa grande mentira, que os adultos supostamente mais sábios e preparados, que deveriam orientá-lo e esclarecê-lo, forjam vidas aparentemente respeitáveis e, no entanto, totalmente em desacordo com os seus sentimentos.

O livro, portanto, convoca em nós aquele sentimento de insurreição contra a “realidade”, contra o estabelecido,que anda cada vez mais amortecido. Se isso é um resquício de adolescência (pois, desculpem a afirmação óbvia, não se pode eternamente ter 16 anos tal qual Holden), que felicidade é poder reencontrá-la em nós! E como Holden vive num mundo tão próspero, numa esfera social tão privilegiada, isso torna o efeito mais poderoso, pois a indignação moral é muito mais óbvia numa história, digamos, de alguém colocado diante do Holocausto na Segunda Guerra, onde o horror da situação oblitera que é preciso reformular a vida e não apenas corrigir injustiças e atrocidades.

Essa sensação não se desvencilha da questão do estilo: como já se afirmou outras vezes aqui nesta coluna, O apanhador no campo de centeio é um daqueles livros raros e únicos, onde a linguagem parece recém-inventada, tudo parece novo e intacto. O aspecto mais delicioso é a oralidade descontraída e desabusada que reproduz de maneira íntegra a voz adolescente de Holden (a narração é feita por ele mesmo), principalmente na reiteração de certas expressões fáticas (a tradução extraordinária, diga-se passagem, precisava ser revisada no quesito gíria para o texto não perder esse efeito de frescor) e no uso da hipérbole, do exagero. O vestíbulo de uma espelunca cheira “a cinqüenta milhões de cigarros apagados”. Uma peça de teatro “meio morrinha” era “a história de uns quinhentos mil anos na vida de um casal velho”. A opinião sobre um filme: “Quem não quiser vomitar até morrer não deve nem entrar no cinema quando estiver passando essa fita”. Pensando na morte: “Fiquei imaginando milhões de chatos indo ao meu enterro e tudo”. Uma cama tem “dez quilômetros de comprimento”. A irmã tem ‘uns cinco mil cadernos”. Saindo de fininho de casa, “por pouco não quebrei o pescoço nuns dez milhões de latas”. A esaposa do professor que lhe dá conselhos “era mais velha que o professor Antolini uns sessenta anos”.

Além disso, há as reações impagáveis às pessoas. Ele conhece, numa boate, três mocréias: “Tentei começar um papo inteligente, mas era praticamente impossível. Só torcendo o braço delas”; um oficial da marinha “era um desses sujeitos que acham que vão parecer viados se não quebrarem uns quarenta dedos da mão da gente na hora de serem apresentados”.

A tentação é seguir citando. Só para encerrar, porém, lembrando da tal apatia alienada recriminada por George Steiner, não custa citar um trecho de extrema coragem numa época pós-guerra e num país do tipo dos EUA. Holden recorda de seu irmão, D.B., falando sobre sua experiência da guerra: “Disse que o exército estava praticamente tão cheio de filhos-da-puta quanto os nazistas”.

III

AS JOIAS DA COROA

resenha publicada originalmente em 02 de setembro de 2003

Após comentar Franny & Zooey e O apanhador no campo de centeio, só faltava um artigo para dar conta da caixa lançada pela Editora do Autor, abordando Nove Estórias, as jóias da coroa da obra de J.D. Salinger. Entre elas, qual a mais preciosa?

Talvez as três narrativas em primeira pessoa: O Gargalhada (The laughing man); Para Esmé, com amor e sordidez (For Esmé with love and squalor); A Fase Azul de De Daumier Smith (De Daumier Smith´s Blue Period). O Gargalhada é um daqueles textos evocativos de uma inocência perdida que fazem a peculiaridade da grande literatura norte-americana. Um time infantil de beisebol que fica siderado pelas histórias que o treinador narra sobre um herói, o Gargalhada, cujas aventuras deliciosamente se passam na fronteira entre Paris e a China. A ascensão, glória e queda do romance do treinador com uma garota determinam o abrupto final do ídolo e também da infância; Para Esmé é a história do soldado americano na Inglaterra que conhece uma garotinha, a qual, ao saber que ele é escritor, lhe pede uma história “extremamente sórdida e comovente”. A maneira como ele cumpra a promessa é fenomenal; já a história da ‘Fase Azul” de De Daumier-Smith (na verdade, pseudônimo do narrador para ingressar numa “escola de arte” no Canadá) é a prova que nem sempre inclinações místicas atrapalham os textos de J.D. Salinger. A paixão do jovem e desmesurado professor de desenho pela freira que lhe manda esboços é uma obra-prima.

Ou os maiores quilates pertencem aos contos nos quais aparece a família Glass? Em Um dia ideal para os peixe-bananas (A perfect day for bananafish) se conta o suicídio de Seymour Glass, após uma conversa com uma garotinha de 10 anos, que o chama de Viu Mais Vidro (See More Glass), embora os melhores momentos sejam reservados para uma conversa da sua esposa, Muriel, com a mãe, a respeito do estranho marido que lhe coube; em Tio Wiggily em Connecticut, o fantasma de Wade Glass, morto na guerra, assombra a fútil e ao mesmo tempo desesperada vida da protagonista, Eloise, tanto quanto sua filhinha inventa sucessivos amigos invisíveis (houve uma adaptação cinematográfica, My foolish heart, com a grande e melodramática Susan Hayward); em Lá embaixo, no bote, Boo Boo Tannenbaum, irmã de Seymour e Wade, a qual deliberadamente aderira a uma vida burguesa alienada (tal como Eloise), para escapar do estranho destino dos seus familiares, tem que enfrentar a hiper-sensibilidade do filho, que se refugia num bote, desamparado diante de um mundo cheio de estranhos.

Pouco antes da guerra com os esquimós é um daqueles textos onde se chega ao máximo de sofisticação em termos de sociedade norte-americana. É um máximo de civilização e um igualmente maciço teor de vazio, aridez e desespero latente. E a perícia com que a história de Ginnie (que conhece o apartamento, o irmão e o amigo da parceira de tênis, de quem cobrou uma dívida, Selena) é narrada só encontra páreo na ficção dos EUA em gente do naipe de Dorothy Parker, Truman Capote ou John Cheever. Em nossa literatura, o leitor pode encontrar algo similar em certos contos e romances (Ciranda de Pedra, uma parte de As meninas) de Lygia Fagundes Telles.

Lindos lábios e verdes meus olhos (Pretty mouth and green my eyes) é uma história de adultério estruturada em torno de uma conversa telefônica, procedimento em que o autor de Nove estórias é um mestre consumado (como o conto sobre o suicídio de Seymour demonstra logo nas primeiras e paradigmáticas páginas, pois abre a coletânea), principalmente porque poucos podem se comparar a ele na arte do diálogo.

Sobra o incômodo Teddy: um texto-pregação no qual Salinger quis expressar sua “filosofia de vida”. Escolheu, para isso, um pirralho de 10 anos, que é a um só tempo um gênio e um iluminado. Mas gênio e iluminado mesmo só pode ser um escritor que consegue com um chatinho desses e com as distorções que a sua obra adquiriu (devido à tal “filosofia de vida”) permanecer grande. Cinqüenta anos depois de sua publicação original é o que nos prova cada jóia rara e única reunida em Nove estórias.

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