MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

13/01/2015

“As duas faces de janeiro” e as obsessões de Patricia Highsmith

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“__ Escute, Rydal, se é dinheiro o que está procurando, talvez possamos chegar a um acordo.

__ Ah-h—Rydal sorriu e sacudiu o fósforo para apagá-lo—Não me oponho a um pouco de dinheiro, mas duvido que você e eu possamos um dia chegar a um acordo.

      Chester riu com desprezo.

__ Não dou dinheiro a pessoas om quem não chego a um acordo.

__ Não? Pense de novo.

__ Pena que não deixou claro desde o início que era um chantagista. Poderia ter-me dito que era um chantagista. Poderia ter-me dito antes de irmos para Creta.

__ Não era claro para mim antes de Creta. Acho que foi o fato de ter-me associado a você que me tornou obcecado por dinheiro…”

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 13 de janeiro de 2015)

No ano em que completou meio século, As Duas Faces de Janeiro (cuja tradução — de Marcelo Pen — acaba de ser relançada pela Benvirá[1]) transformou-se no filme de estreia como diretor do roteirista iraniano Hossein Amini (de Branca de Neve e o caçador), ora em exibição em Santos.

Fugindo da investigação de seus negócios escusos nos EUA, o quarentão Chester MacFarland leva a esposa, Colette (25 anos), para uma viagem pela Europa. Em Atenas, chamam a atenção de outro americano, Rydal Keener: Chester se parece muito com seu pai, recém-falecido, com quem tinha uma relação problemática; Colette, com a garota que fora sua paixão adolescente, com resultados desastrosos, como uma acusação de estupro. Ao segui-los, testemunha o assassinato de um policial; ajudando Chester a ocultar o cadáver, envolve-se com o casal de uma forma tortuosa e escusa (e sobretudo gratuita[2]: “As palavras pareceram sair de dentro dele vindas de lugar nenhum. Estava se oferecendo para cometer perjúrio. E por que motivo? Por quem? Um homem cujo ar cavalheiresco era só aparente, Rydal podia perceber agora; um homem cujas roupas tinham bom corte, tendo sido feitas por encomenda, mas cujas abotoaduras eram vistosas; um homem cuja disposição parecia desonesta, pois ele era desonesto”) que os levará a Creta, onde se cristaliza a mescla de fascinação  e ódio entre os dois homens; e depois à França, quando ambos, foragidos da justiça, usando identidades falsas, já são inimigos declarados[3], Chester procurando despistar Rydal, sempre em seus calcanhares…

De todos os 21 romances de Patricia Highsmith (1921-1995) publicados em vida[4], As Duas Faces de Janeiro talvez tenha sido o mais trabalhado e revisto, com várias versões rejeitadas por sua editora (que não o achava “à altura de uma escritora como ela”): “Um clima muito pouco saudável cerca o texto [que] transmite forte sensação de repulsa; ou então: “o livro só faz sentido se houver um relacionamento homossexual entre Rydal e Chester…Não conseguimos gostar de nenhum personagem, e mais difícil ainda é acreditar em algum deles[5].

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De fato, vindo na sequência da sua maior obra fora da série Ripley, O Grito da Coruja (1962), esse livro, cujo título evoca a dualidade de Jano (tocando fundo nos movimentos interiores dos personagens: Chester a princípio sempre se reinventando para o futuro, vezo essencial para sua vigarice; Rydal, fixado no passado; depois, a inversão entre eles), desconcerta o leitor e, no seu terço final, resvala para o exasperante[6], com uma narrativa estática e atitudes que soam singularmente inverossímeis, em especial num homem maduro que sempre viveu de golpes e da esperteza (“Quebrado, jurou a si mesmo que ficaria rico, e depressa.Assim, passou a operar de modo cada vez mais escuso, podia perceber agora, embora ao começar não tivesse a intenção de ficar milionário tornando-se um vigarista. Fora uma coisa gradual. Uma coisa gradual e ruim, Chester sabia. Mas agora estava preso a isso, realmente afundado nisso, entregue a isso como um viciado à droga”).

Entretanto, sem deixar de reconhecer alguns desequilíbrios sérios do romance enquanto tal, essa mirada apenas ratifica os equívocos das avaliações acima citadas sobre o manuscrito, o principal deles centrado na questão crucial de acreditar nos personagens (e gostar deles), sem contar a latente homossexualidade da trama. Pois bem, qual a novidade? Boa parte do universo de Patricia Highsmith é a exploração da atração-desejo de tomar o lugar entre dois homens. Pode-se até chegar ao ponto de afirmar que todos os cenários, por mais interessantes e bem-descritos que sejam, na Grécia ou na França, e mesmo o labirinto de Creta (onde acontece um episódio crucial)  só servem, em As Duas Faces de Janeiro,  para que a autora coloque tal obsessão em movimento[7], num labirinto psíquico que faz de tudo o mais mero acessório (inclusive Colette, o suposto pomo da discórdia). Portanto, não tem muito sentido cobrar verossimilhança nas atitudes e eventos (e assim dá para entender melhor a falta de jogo de cintura por parte de Chester, na reta final da narrativa), embora, a meu ver, os aficcionados e experimentados nos dédalos highsmithianos sentirão menor desconforto (nesse sentido, pelo menos) com esse livro tão peculiar e estranho. O aventureiro de primeira viagem talvez não aprecie muito a iniciação, pois os mapas da grande escritora texana geralmente levam a territórios proibidos ao conforto turístico[8].

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TRECHO SELECIONADO

“Chester pôs a mão no radiador, que ainda não dava sinais de estar perdendo a frieza. Teve um pressentimento de que à noite continuaria frio e que Colette ficaria acordada até o dia raiar dançando em algum lugar com Rydal, em vez de tentar dormir. A energia de Colette era supreendente—patinar no gelo a tarde inteira em Radio City ou andar a cavalo no Central Park, e então dançar numa festa até de madrugada, por exemplo. A energia da juventude, claro. Simplesmente não conseguia estar à altura. Suas pernas não aguentavam. Bem, as coisas ainda não tinham chegado a esse ponto e, se o cômodo  não aquecesse em duas horas, mudaria de quarto ou de hotel…”

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NOTAS

[1] Anteriormente publicada pela Editora A Girafa (2004). O título original é The Two Faces of January.

[2] Como sói acontecer no universo da autora de que me ocupo. Mas como a minha linha de argumentação mostrará, estamos longe do gratuito, que é apenas a superfície, a proverbial ponta do iceberg.

[3] Rydal: “Eu o detesto. Creio que isso me fascina. Não desejo matá-lo, nunca desejei matar ninguém. Mas devo confessar que gostaria de vê-lo desabar.” A questão, como sempre, é quem se revela o mais fraco. Em O Talentoso Ripley, o protagonista precisa matar o “amigo” a quem ama, Dickie, porque se descobre o mais fraco dos dois, e não há outro jeito.

[4] Small G foi publicado postumamente, em 2004. O último publicado em viva foi Ripley debaixo d´água (1992), quinto da série Ripley.

[5] Utilizo informações colhidas na biografia A talentosa Highsmith, de Joan Schenkar, na sua versão brasileira (feita por Ricardo Lísias, Globo, 2012).

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[6] O mesmo problema acontecia com  This sweet sickness (1960), mesmo assim um romance superior (há duas edições brasileiras, uma com o título Essa doce obsessão; outra, como Esse doce mal), a meu ver.

[7] Além do seu fascínio pela vigarice, pelas identidades falsas, e pelo dinheiro, no sentido mais literal possível: a obra de Highsmith em geral, e As duas faces de janeiro é muito ilustrativo, é pródiga em quantias, em notas que aparecem em cena, em detalhes financeiros exaustivos. Por exemplo, há a cena em que Andreou (aliado de Rydal, mas contratado por um iludido Chester para eliminar o antagonista) exibe o dinheiro que recebeu do americano: “…ele o havia trazido consigo também para exibi-lo, Rydal pensou. Ele fitou as notas novas de quinhentos dólares na mesa de madeira ao lado dos pratos sujos de guisado. Por alguns segundos todos miraram o dinheiro…”; anteriormente: “Notou a falta de jeito de Chester, sua falta de coragem em mencionar o dinheiro, possivelmente sua sovinice e, a despeito de todas as suas roupas gastas, Rydal achou-se bastante superior a Chester MacFarland”.

Num dos momentos da narrativa, em que se faz uma caracterização do “caráter” de Chester, lemos: “Rydal tentou explicar que Chester era o tipo de homem que se sentia mais à vontade depois de constranger as pessoas, ou procurar constrangê-las, a aceitar dinheiro”.

[8]Era uma  cidade desinteressante, Canéia, mas ele apreciava cidades desinteressantes, porque elas obrigavam as pessoas a examinar coisas—por falta do que fazer—que de outra forma passariam despercebidas…”

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