MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

05/06/2013

Qual a moral?- A fábula perigosa de Fernando Trías de Bes


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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de junho de 2013)

Karl Marx passou muitos anos de sua vida na sala de leitura do Museu Britânico, enquanto sua família se equilibrava a um passo da miséria, para delinear os fundamentos de O Capital. O romance Tinta (Espanha, 2011) é uma fábula extravagante e perigosa sobre a miragem da página impressa. Em última instância, o livro trata das tentações da utopia, quando misturadas aos aspectos mal resolvidos e tortuosos das nossas existências pessoais.

No enxutíssimo relato de Fernando Trías de Bes (cujo currículo inclui a carreira de economista, especializado em “Criatividade, Inovação e Marketing”, o que para mim já faz dele um personagem de O livro dos mandarins, de Ricardo Lísias), a mulher de um livreiro (na cidade alemã de Mongúcia, ao longo do período 1900-1910) é obcecada por um amante, cuja pele guarda resquícios de tinta de impressão. O livreiro se desespera na busca de um meio para quebrar tal feitiço, unindo-se a um matemático que perdera o filho e também tenta encontrar o Motivo, isto é, a origem das fatalidades e circunstâncias; este resolve montar um livro, o Livro, com frases que retira de milhares de outros (mas só dos que pertencem à livraria do marido traído), aí propõe a um impressor (cujo passado também tem um evento traumático ligado ao Motivo) a impressão dessa definitiva obra (que faria inveja no Pierre Menard, de Borges) com uma tinta que se apague no momento mesmo da leitura.

O matemático compõe pessoalmente as chapas tipográficas para a impressão; o dono da gráfica contrata um revisor, escritor desiludido, que desistira da literatura, dedicando-se a capturar nuvens dentro de cápsulas de vidro, e o qual se tranca com as chapas e remistura todas as palavras (pois, se elas pertencem a um livro, elas poderiam ser colocadas em ordem diferente mas ainda seriam as palavras daquela obra e de nenhuma outra); o livro é impresso com tinta diluída em água, de forma que não aparece nada, só que alguns de seus parcos leitores creem que viram palavras, tramas, ideias. E o revisor propõe a publicação a um editor que nunca leu o que publica porque a mãe (numa relação abusiva e incestuosa) só lhe permitia a Bíblia (isso após banhos de imersão em gelo e neve, para mantê-lo “puro”). Seu único contato direto com livros é um exemplar que recebe toda manhã, com tinta ainda fresca,e com a qual ele esfrega o corpo todo…

 

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A crítica a essa perseguição de um livro definitivo, que resolvesse todos os dilemas, improbabilidades e desacertos da vida, esse enfeitiçamento pela tinta, que já está na pedra-de-toque do enredo (com a mulher do livreiro enleada com um amante por quem nem sente atração) parece bastante saudável e lúcida, quando nos damos conta dos horrores que a civilização letrada foi capaz de engendrar (e nesse ponto, não é fortuito que Tinta transcorra na Alemanha da Belle Époque, pouco antes que a economia alemã fosse pulverizada pelo fracasso na Primeira Guerra, com as conseqüências nefastas que conhecemos). Independentemente de qualquer outra consideração, já torna o romance um feito digno de nota, que não faz feio ao lado das experiências de um Gonçalo M. Tavares (na série O Reino, cujo volume mais famoso é Jerusalém, e na qual põe em cena as dicotomias e polaridades da cultura que se cristalizou na Europa); por outro lado, e é aí que me sinto desconfiado e cético quanto ao livro, acredito que na base do projeto de Trías de Bes está uma daquelas liquidações modernosas e neoliberais das Grandes Narrativas.

Por isso, não concordo em nada com a apresentação da Autêntica para esse seu lançamento: lemos que se trata de uma “história que se lê com o coração”, de uma homenagem ao “poder que a literatura e a imaginação têm de transformar vidas”. Ao fim e ao cabo, a moral que se tira é que empreendimentos tais como o de Marx são absurdos, prova da cegueira do homem, que não pode viver com incertezas, que quer capturar nuvens.

Resta o pragmatismo dessacralizante misturador de tintas para impressão. O irmão do seu patrão fizera (um fiasco) uma palestra para colegas cientistas, anunciando a descoberta da verdadeira origem da vida (o Motivo). E era na gráfica da família que os jornais da região eram impressos, e neles haveria matérias ridicularizando o jovem visionário:

“__ Será sua perdição.

__ Não podemos fazer nada. Devemos lealdade à nossa profissão. Nós não escrevemos, apenas imprimimos.

__É meu irmão—insiste Patrik Gensfleisch.

__ Se negarmos , seremos denunciados pelo jornal. Um impressor não pode se negar a editar um diário por conter uma notícia que o prejudica.

__ É meu irmão!

__ É tinta, somente tinta!”

Em todo caso, sempre pode acontecer com Tinta o “efeito Orwell”. Como se sabe, o grande escritor inglês idealizou 1984  como uma crítica contundente ao stalinismo. Hoje, desbotados os laços históricos mais contingentes da sua fábula, ele parece ser muito mais uma crítica ao estágio mais voraz do capitalismo, que inverte todos os sinais e transforma a linguagem numa grande mentira. Ou seja, as famosas ironias da história. E aí, então, qual a moral da fábula?

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5 Comentários »

  1. A frase “historia que se lê com o coração”já me disse tudo!rsrsQuero ler com mais que isso!
    Obrigada!

    Comentário por Helena Martins Rodrigues Helentry — 05/06/2013 @ 16:11 | Responder

    • É isso aí, Helena, você matou a charada. Bjs.

      Comentário por alfredomonte — 06/06/2013 @ 14:24 | Responder

  2. Tem um trechinho duplicado, nada que atrapalhe profundamente. Para alguem bem simples como eu, ate reforca os pontos. rs

    Comentário por vangreyheart — 06/06/2013 @ 5:23 | Responder

    • Obrigado por me chamar a atenção para o trecho duplicado. Problema de juntar versões hehehehe. Um grande abraço.

      Comentário por alfredomonte — 06/06/2013 @ 14:24 | Responder

      • Disponha, sempre que eu puder ajudar… ^^

        Comentário por vangreyheart — 09/06/2013 @ 18:02


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