MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

04/07/2012

O REI FATALISTA


resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de fevereiro de 1994)

A literatura norte-americana é magnífica, cheia de grandes autores, mas William Faulkner (1897-1962) é, entre eles, o rei. A imagem á cafona, eu sei, serve apenas para aquilatar a importância do lançamento de Três Novelas de William Faulkner (traduzidas por Ângela Perez de Sá para a Civilização Brasileira). O único reparo a se fazer é que há apenas um texto inédito no Brasil: Cavalos malhados, que faz parte de The Hamlet- A aldeia (1940), e talvez seja uma escolha discutível porque traz dificuldades para o leitor desabituado a Faulkner e que não conhece a importância estratégica, dentro da sua obra, de Flem Snopes, responsável pela vinda dos cavalos do titulo do Texas e pelo leilão que dá ensejo aos acontecimentos.

Ao longo de A aldeia (mas já aparecendo em Sartoris, 1929), Snopes é o elemento predatório contra o qual não conseguem se opor eficazmente nem o porta-voz da “honra” sulista, Ratliff, nem os fazendeiros brancos empobrecidos, como Henry Armstid, o ponto-chave do conflito patético que tumultua o leilão e acarreta a fuga dos cavalos (para quem se interessar, há uma tradução portuguesa, de Jorge Sampaio, do livro inteiro).1

O velho (o título se refere ao rio Mississipi) é uma das duas histórias entrelaçadas de Palmeiras Selvagens (1939), que foi publicado pela Nova Fronteira, em tradução de Newton Goldman. Na enchente de 1927, condenados são enviados em pequenos barcos para o recolhimento de sobreviventes e desabrigados. Um deles é arrastado pela correnteza e acaba com uma mulher prestes a dar à luz em sua embarcação.

Com muito humor negro e seu estilo insuperável (bem como a construção narrativa), o autor de O som e a fúria mostra a força da natureza (tanto no sentido da destruição, como a enchente, quanto da criação, quanto a maternidade, fora o que esta sugere de sexualidade consumada) repugnando e pressionando o condenado, que nunca lidou bem com a realidade bruta e para quem a prisão é uma vida monástica, onde está livre desses embates.

O urso é uma das sete narrativas de Desça, Moisés (1942), já publicado na íntegra em bela versão de Hélia Pólvora, pela saudosa Expressão e Cultura (há outra tradução de O urso, de Hamilton Trevisan, da editora Vertente, que circulou muito nos anos 1970). E oferece um desafio aos que amam Faulkner, mesmo para quem não ligue para o “politicamente correto” em se tratando de compreender a complexidade das coisas: embora o narrador associe a figura imemorial do urso Old Bem à natureza conspurcada pelo homem, isto é, à devastação da mata, mesmo assim acaba fazendo uma indigesta apologia daquele chauvinismo que transforma caça em poesia (o que se estende, aliás, a outros textos de Desça, Moisés; chega-se a afirmar, em Velho Povo: “Talvez só um homem criado no campo consegue entender o amor à vida que se sacrifica”!!!?? Ora, ora. É por isso que só consigo gostar—e muito, por sinal—entre os sete textos, de Pantalão Negro).

É muito difícil (pelo menos, para mim) simpatizar com os ritos iniciáticos de Ike McCaslin, que testemunhará a morte do velho urso e perderá suas terras. Com tudo isso, o incrível é que não se pode ignorar a beleza superior dessa narrativa, uma das mais famosas e celebradas de Faulkner.

Talvez o que mais atordoe na leitura do autor de O urso, e mais desafie a capacidade dialética do leitor, seja a sua visão fatalista e puritana da humanidade (da mulher nem se fala!). Como já disse, o homem é um rei, um gênio, e seus romances Luz em agosto (1932) & Absalão, Absalão! (1936) são, com A montanha mágica & Doutor Fausto, de Thomas Mann, possivelmente os maiores do século. Mas esse fatalismo e puritanismo às vezes repelem o leitor mais apaixonado, que acaba desejando afastar-se de tal universo asfixiante: “Exatamente como toda vida consiste em ter que se levantar mais cedo ou mais tarde e então ter que se deitar mais cedo ou mais tarde novamente, depois de certo tempo…”

1 [nota de 2012] Em 1997, ano do centenário de nascimento de Faulkner, apareceu uma tradução brasileira, editada pela Mandarim e realizada por Wladir Dupont, com o titulo O povoado.

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