(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de julho de 2008)
“Desce à cratera do Youcul de Sneffels que a sombra do Scartaris vem beijar antes das calendas de julho, ó viajante audaz, e tu chegarás ao centro da Terra. Eu o fiz. Arne Saknussemm”. O leitor deste blog pode não acreditar, contudo há mais de trinta anos estas palavras estão gravadas na minha mente. E mais do que qualquer outra coisa na ficção, o Scartaris, as calendas de julho e Arne Saknussemm permanecem impávidos, mudem os gostos ou as vontades.
São essas as palavras que, decifradas de um criptograma, levam o adoravelmente irascível professor Liddenbrock e seu sobrinho Axel (o narrador) à Islândia em Viagem ao Centro da Terra (1864), uma das maiores devoções literárias de quem aqui escreve e talvez o livro que melhor define o fascínio que Júlio Verne exerce ao transformar a geografia em aventura.
Pena que há pouca esperança de que algum dia se faça uma adaptação fiel ao livro (até mesmo a versão com James Mason, ótima, modifica totalmente a história). O curioso é que ele consegue isso com três personagens (além do prof. Liddenbrock e de Axel, o guia Hans). Como esquecer a primeira indicação de que o manuscrito de Saknussemm é verdadeiro, quando a pequena expedição encontra seu nome na geleira do Sneffels (em caracteres rúnicos, e essa é uma das palavras que ficaram indelevelmente marcadas na mente do autor deste artigo, antes mesmo de saber o que eram exatamente, como hulha, Hamlet, etc), as dúvidas e questionamentos de Axel (contrapostos ao entusiasmo renitente do tio), o momento em que ele se perde dos demais, a descoberta do mar “interior”, a construção da jangada que permite a sua travessia, os monstros pré-históricos (como se pode ver, não falta nada em Viagem ao Centro da Terra e ele alimentou inúmeras imitações), a tempestade magnética, o naufrágio, a descoberta de um crânio humano, as iniciais A.S. indicando a passagem de Saknussemm, e o plano de subir à superfície utilizando pólvora numa explosão. Que os lança, via Stromboli, na Sicília. E onde fica exatamente o centro da Terra? Só lendo o livro.
Há algo até ingênuo nesse tipo de ficção especulativa, que utiliza a ciência, não deixando que ela ofusque a imaginação. Como sintetiza bem Geraldo Galvão Ferraz, “Verne nunca deixou de usar uma fórmula que funciona até hoje: seus romances misturavam sólida informação factual com descrições pormenorizadas de máquinas e lugares; muita ação (seus heróis estão sempre tendo de vencer obstáculos de toda a natureza); um leve toque de romance (há Graüben, como interesse romântico, é só ler o capítulo “Um passeio pelo Elba”, pois o relato começa em Hamburgo); e uso constante do humor, que tempera e alivia o tom didático do texto”.
Tom didático? Talvez não. Mais do que educar, Verne deseduca: ele tira o leitor dos eixos, obriga-o a pensar no mundo como vastidão e mistério, nessa nossa cultura que tudo quer explicar, medir, pesar. Talvez ele tenha acreditado na “sua” ciência. Os leitores agradecidos acreditam bem mais em sua fabulação e por isso, passada a infância, a adolescência, a inocência e o desconhecimento factual, ainda querem descer à cratera no ponto revelado pela sombra do Scartaris nas calendas de julho, nas pegadas de Arne Saknussem.
Este libro es genial, lo estoy releyendo despues de 40 años…
Comentário por Guillermo — 25/09/2014 @ 12:11 |
De fato, genial. Abração.
Comentário por alfredomonte — 25/09/2014 @ 12:26 |
Essa publicação foi muito boa. Estava lendo o livro quando resolvi pesquisar e pude ver um bom resumo. Só acho que o filme distorce muito o livro.
Comentário por Mateus — 03/12/2014 @ 17:18 |
Valeu, Mateus. Abração.
Comentário por alfredomonte — 03/12/2014 @ 18:28 |
Também estou imerso nesta obra, em minha jornada de revisitar, aos quase 40, a ficção científica que iluminou minha adolescência. Meu filho está para nascer, e eu estou preparando seu “alimento intelectual”: quero que ele cresça com o mesmo senso de maravilhamento pelos mistérios do mundo que Homero, Swift, Verne, Wells, Asimov, Clarke, e outros me deram, que me fazem sempre olhar para o céu da noite e ver muito mais que espaço vazio e estrelas.
Comentário por Douglas Donin — 11/02/2015 @ 9:04 |
Faz muito bem, abração!
Comentário por alfredomonte — 11/02/2015 @ 15:39 |