Existe uma certa implicância quando se comenta Cores proibidas [Kinjiki, 1953, aqui no Brasil traduzido por Jefferson José Teixeira], de Yukio Mishima. Esse romance é sempre visto como obra menor, até discutível, dentro da sua extraordinária produção (Marguerite Yourcenar, por exemplo, considera-o “tosco”). O que não se leva em conta é o arrojo experimental de um escritor de 20 e tantos anos (Mishima nasceu em 1925, suicidando-se em 1970), que vinha de um texto nitidamente autobiográfico (e magnífico), Confissões de uma máscara, e que se aventurava numa trama complexa e variada, e ao mesmo tempo altamente estilizada e simbólica.
Nem tudo deu certo, mas Cores proibidas deu fôlego a Mishima, e é como se fosse uma versão mais crua do muito posterior A queda do anjo (título brasileiro do quarto e último volume de O mar da fertilidade, que qualquer lista sensata colocaria entre os cem maiores romances do século XX).
Outro aspecto complicado da equívoca reputação de Cores proibidas é a insistência em afirmar que seu tema é o homossexualismo. A temática homoerótica entra na trama simplesmente porque fazia parte da vida do próprio Mishima, o qual focaliza amplamente a vida gay da Tóquio pós-Segunda Guerra (e que não parece ser muito diferente da vida gay de qualquer outro lugar, embora haja o elemento da ocupação estrangeira, que acrescenta um toque de masoquismo nacionalista à atmosfera já saturada do romance).
Mishima tenta reunir, numa narrativa não-realista, um pacto do gênero Mefistófeles/Fausto com a situação de Pigmalião, através da junção dos destinos de Shunsuke Hinoki, um velho escritor famoso pela sua feiúra e pelo esteticismo árido das suas obras, e que deseja se vingar de algumas mulheres da sua vida, e de Yuichi, um jovem e belíssimo homossexual, pelo qual Yasuko, uma das mulheres que atormentam a vida de Shunsuke, está apaixonada.
O pacto ocorre porque Shunsuke oferece uma grande soma de dinheiro a Yuichi desde que ele se case com Yasuko e a traia constantemente com homens e com algumas mulheres (escolhidas pelo contratante). Yuichi é, de certa forma, a Galatéia de Shunsuke porque vai se tornando a encarnação viva dos ideais estéticos do escritor. Como ele mesmo diz para o seu pactário: “Você não é influenciado pela realidade, mas está continuamente exercendo efeito sobre ela”.
Mas não é bem assim. Acompanhamos o lento aprendizado da realidade pelo jovem Adônis/Narciso (aliás, Mishima força vários paralelos: com Endimião, com Hipólito, com Dorian Gray). Acompanhamos, também, uma trama movimentada, onde quase todos os personagens se apaixonam por Yuichi, enquanto –na surdina—vai se preparando a virada trágica de Cores proibidas: como Pigmalião, Shunsuke se apaixona pela sua obra, o que desequilibra o pacto e faz com que sua estratégia de vingança e satisfação estética se volte contra ele mesmo, só restando uma saída lógica: o suicídio.
Em nenhum momento, porém, Yuichi chega a fugi da verdade expressa pelo verso de Hölderlin, “o que amamos não passa de aparência”. O interessante, todavia, num livro que é famoso pela sua descrição do gueto homossexual japonês (que Mishima hipertrofiou, repetindo o exagero de Proust quando apresentou o “novo aspecto” de Saint-Loup em A fugitiva, o sexto volume de Em busca do tempo perdido: a partir de certo momento,todos os personagens masculinos revelam-se homoeroticamente motivados, o que é um absurdo), é que as melhores personagens são as femininas, desde a esposa suicida de Shunsuke, a qual aparece pouco, porém marca o livro, passando por Yasuko, até as fascinantes sra. Kaburagi (esposa de um dos amantes de Yuichi e uma das mulheres de quem Shunsuke pretende se vingar) e a própria mãe do herói, a sra. Minami.
Se Cores proibidas é um livro que deixa a desejar é porque tem coisa em excesso e muitas pontas ficam soltas. Um escritor que criou coisas perfeitas (O templo do pavilhão dourado, O marinheiro que perdeu as graças do mar, Neve de primavera, os já referidos Confissões de uma máscara e A queda do anjo) podia se dar a esse luxo.
Resenha publicada originalmente em “A Tribuna” de Santos, em 25 de junho de 2002.
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