MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

19/04/2013

A TAPEÇARIA E SUAS DIMENSÕES

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“O problema do heroísmo é o problema central da vida humana, que penetra mais a fundo na nossa natureza do que qualquer outra coisa, por basear-se no narcisismo orgânico e na necessidade de autoestima (…) A sociedade propriamente dita é um sistema de heroísmo codificado, o que confirma ser a sociedade em toda parte um mito vivo do significado da vida humana, uma criação desafiadora de sentido.” (Ernest Becker, A negação da morte)

“Houvera homens assim, já houvera, sim, homens cuja alma passara a existir em atos…” (Clarice Lispector, A maçã no escuro)

“Não sei, mas os mitos… Devia morrer cedo, os mitos. Antes da queda dos cabelos, dos dentes, das carnes…”(Lygia Fagundes Telles, As horas nuas)

INTRODUÇÃO

Como a memória é intuída, pensada e interiorizada no discurso narrativo de AS HORAS NUAS(1989)? Neste quarto romance de Lygia Fagundes Telles  (após Ciranda de Pedra, 1954; Verão no aquário, 1963; As meninas, 1973) a invocação da memória se dá em dois níveis da narrativa (os quais, no entanto, não abarcam todo o discurso): o de Rosa Ambrósio, atriz autorretratada com “decadente” (“Só se fala na decadência dos usos, decadência dos costumes, está na moda a decadência. Sou uma artista decadente, logo, estou na moda”); e o de Rahul, seu gato (“um gato que  sonha com o homem assim como o homem sonha com Deus”). Ambos vivem enclausurados num luxuoso apartamento em São Paulo.

No último capítulo de Mimesis, Erich Auerbach analisa a importância da apreensão temporal para o narrador do século XX. Tal apreensão toma a forma sugerida pelas considerações de Kant, em Crítica da Razão Pura: “O Tempo nada mais é senão a forma do sentido interno, isto é, do intuir nós mesmos e nosso sentido interno. Com efeito, o Tempo não pode ser uma determinação de fenômenos externos; não pertence a nenhuma figura ou posição, etc, determinando, ao contrário, a relação das representações em nosso estado interno”.

Ou, como coloca poeticamente uma narradora do século XX contemporânea de Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector (em A maçã no escuro, 1961): “Quantos minutos tinham se passado? Tinha-se passado a espécie de minutos em que o pensamento é o tempo”.

1-A MEDUSA (Rosa e a memória);

Entro no quarto escuro, não acendo a luz, quero o escuro… eu queria ficar assim quietinha com a minha garrafa, ô! delícia, beber sem testemunhas, algodoada no chão feito o astronauta no espaço, a nave desligada, tudo desligado. O que já é uma proeza num planeta habitado por gente visível demais, gente tão solicitante, olha meu cabelo! olha meu o meu sapato! Olha aqui o meu rabo!”

O início de AS HORAS NUAS leva a muitas direções.

A primeira é a que se refere ao desejo de escuridão e de quietude que remete ao aspecto iniciático das trevas (por isso grifei o trecho).

A memória e a iniciação solitária ocupam importante função em diversas tradições místico-poéticas, como a dos bardos celtas. Segundo Jean-Pierre Vernant (em Mito e pensamento entre os gregos), um dos exercícios do noviço consistia em ficar numa cela baixa, sem janelas, em total obscuridade, compondo e memorizando, no silêncio e na quietude. O iniciado era versado na prática de metros e artifícios poéticos, mas também em práticas de magia e adivinhação, em história, genealogia e topografia. Os aedos da Antiguidade, por sua vez, entrelaçavam memória e vidência. Poetar era ver, graças à inspiração das Musas e ao dom concedido pela mãe delas, Mnemosyne, que podia neutralizar a ação do irmão, Cronos.

Inspiração (quase possessão) e ordenação, eis a  dinâmica iniciática: “As diversas tradições lendárias sã codificadas, a matéria das narrativas míticas é organizada, é classificada (…0 a este ordenamento do mundo religioso está intimamente associado o esforço do poeta para determinar as ´origens´”.

Para Mircea Eliade, o mito também é relacionado às origens. Lemos em Mito e realidade: “…Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje: um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver e trabalhando de acordo com determinados códigos. Se o mundo existe, se o homem existe, é porque os Entes sobrenaturais desenvolveram uma atitude criadora ´no princípio´, mas, após a Cosmogonia e a criação do homem ocorreram outros eventos e o homem, ´tal qual é hoje´, é resultado direto daqueles eventos míticos”.

Origem coletiva, origem da espécie, ou como quer a interpretação de Lévi-Strauss para o mito de Édipo, tensão entre negação/afirmação de que o homem é oriundo da terra, o que descortina a função psicológica do mito. A tragédia do clã edipiano concentrar-se-ia basicamente nessa tensão e, derivada dela, a negação/afirmação dos laços de parentesco, a primeira estrutura social que o indivíduo normalmente conhece, o primeiro tempo “primordial” de cada um.

Origem coletiva origem do grupo origem individual, origem do “eu”. Os leitores dos três romances anteriores de Lygia Fagundes Telles sabem como os laços de parentesco e os acontecimentos de um tempo “primordial” na infância/adolescência são avassaladores para as protagonistas.

1,a- Idade de Ferro

“…Invisível. O que já é uma proeza num planeta habitado por gente visível demais, gente tão solicitante, olha meu cabelo! olha o meu sapato! olha aqui o meu rabo!”

   É lícito concluir que a função social do poeta, dentro da tradição mítica, é reportar-se às origens, o único tempo que conta de fato, e talvez nem seja muito correto falar em tempo onde inexiste a ação de Cronos,  ou seja, uma Idade de Ouro. O tempo primordial é também o paraíso.

Já o mundo contemporâneo, enredado em Cronos, representa efemeridade, decadência, envelhecimento, corrupção e mesmo destruição (em Os trabalhos e os dias, Hesíodo o denomina Idade de Ferro).

O trecho citado do início de AS HORAS NUAS nos lança nessa derivação do pensamento mítico: os tempos atuais vistos como degradação (“é tarde no planeta” é um dos motes do romance) e, dentro do discurso da chamada pós-modernidade, a própria abordagem mítica degradada, por tomar aspecto parodístico e irônico, uma vez que Rosa procura a quietude e a solidão das trevas como os iniciados, mas para alcançar a “leveza” do astronauta no espaço, efeito da bebedeira (contudo,  uma das forma de evocar o deus Dionísio não é a embriaguez, o sair de si?).

É um lugar-comum afirmar que a degradação em nossa época, além do fato de estarmos enredados como nunca no tempo cronológico, se deve à contradição entre um culto da democracia e dos valores do liberalismo, e o sentimento de encapsulamento e empobrecimento por parte do invidúo. À degradação da civilização corresponde um estreitamento da imaginação:

“…sou uma bêbada podre num mundo podre, você sabe, o mundo apodreceu completamente. Até o mar, lembra? também talhou. As pessoas chafurdam no lixo e parecem contentes, não sabem o lixo aqui fora, o lixo no particular, pisam nele e não se importam. Os homens da limpeza não dão mais conta, ou entraram em greve, a greve é geral.

   A rua suja, o teatro sujo. A televisão. Começaram a usar crianças nos anúncios de máquinas, sorvetes, refrigerantes. As menininhas fazendo gestos e esgares sensuais de putas. Não tenho nada contra as putas mas não é um exagero tanta lição de putaria?”

O que permite entrecruzar os dois pontos abordados, desde que Rosa entrou no quarto (não saímos disso ainda), núcleo gerador da narrativa. Como os neófitos celtas ela precisa da quietude e da escuridão para atingir “algo” (mesmo através da degradante bebedeira) que a estridência e excessiva iluminação contemporâneas não permitem, principalmente a uma atriz, o ser por excelência sob outros olhares, totalmente em exposição. E, é claro, isso é importante para ela, pois é justamente o que gera o discurso e revela-se um ponto doloroso bem mais tarde, quando resolve sair de casa e passear pela Praça da República:

“…acendo um cigarro, até agora nenhum assaltante, me esqueceram em todos os sentidos. E daí? Estou livre do flagelo de sair de moda, de ficar um dia como esses pobrezinhos que já saíram faz tempo e continuam em exposição, não virá aqui nenhum moço empunhando o microfone, seu nome? Idade?”

Os únicos que a abordarão na praça são os fantasmas do passado, que não deixam sua memória repousar, todos ligados àquele primeiro tempo “primordial”, no sentido de Lévi-Strauss. A memória, então, não é uma benção das Musas, mercê de exercícios constantes, e sim uma maldição, uma cruz (voltarei a isso). Pior ainda, é fragmentária, incapaz de formar um todo, de gerar uma visão totalizante e catalogante, enformar uma experiência, engendrar um aprendizado.

A incapacidade de o discurso de Rosa, imerso na Idade de Ferro, totalizar uma experiência talvez decorra do que Christopher Lasch caracteriza como minimal self (eu mínimo): o ego do homem contemporâneo, comprimido por incessantes analogias e profecias escatológicas,  e envolvido por uma sucessão ininterrupta de imagens e produtos que transformam o mundo das coisas num mundo de projeções e fantasias, já não pressupõe uma interioridade “segura” ou grandes ideais, resignando-se a vencer cada dia: “A trivialização da Crise, ao mesmo tempo que testemunha um difuso sentimento de perigo —uma percepção de que nada, sequer um simples detalhe doméstico, pode ser visto como garantido— também serve como estratégia de sobrevivência em si. Quando a impiedosa retórica da sobrevivência invade a vida cotidiana, ela intensifica e libera, simultaneamente, o terror do desastre”.

No seu estado de “minimalização”, Rosa é incapaz de uma cadeia de reminiscências que não seja um tecido narcisístico, espelhante e autoprotetor (como o tapete que colocaram no prédio inteiro porque ela tem mania de andar descalça pelos corredores), formado por lembranças e decepções amorosas (os três homens centrais em sua vida: Miguel, amor de adolescência; Gregório, o marido, intelectual acético, torturado pela ditadura; Diogo, o secretário-amante) e, sobretudo, a constatação do envelhecimento (lembrando que o mote “é tarde no planeta” projeta essa ideia de envelhecimento “degradado” para um plano geral).

Rosa sente a velhice como uma Medusa. Como se sabe, a figura mítica era sacerdotisa de Afrodite e admirada por sua beleza. Negligenciou, porém, seus deveres por amor a Poseidon e, como castigo, Afrodite transformou-a no ser monstruoso que se conhece da lenda e que morre pelas mãos do belo Perseu.

Após uma juventude de beleza, talento e sedução, Rosa amarga a velhice sem sabedoria ou serenidade (aqueles clichês do que é ser velho), renegando o corpo (“mania de banho, por que tanto banho se não tenho nenhum homem, não tenho ninguém”), renunciando aos pequenos rituais de rejuvenescimento testemunhados apenas pelo gato (“não sei por que fez isso na minha frente, isso que fez, tingir os pelos. Fui obrigado a ver tudo, eu. Valho menos do que a torneira. Ou do que o espelho sem memória.[1] O despudor das pessoas diante dos bichos…”).

Rosa amarga principalmente a perda de seu último elo com Eros (e sem ter condições de se voltar para o Ágape), com seu Perseu (Diogo), cuja partida foi como o primeiro convite a se deixar levar por Tânatos (“… sumiu tudo. Fiquei sozinha para me executar, sou meu carrasco. Pior do que um estranho porque já me amei, pum! disparo no coração. Caio redondamente morta”; o tom “engraçadinho” e autoparodístico não eclipsa a pulsão).

Como tudo o mais, o próprio Perseu do romance parece degradado, com sua posição meio de gigolô, com seu jazz e seu cinismo, incapaz de sentimentos verdadeiros e de ferimentos verdadeiros (o que parece ser uma característica central do pós-moderno: os sentimentos parecem todos de “referência a”, as analogias são imediatas, demasiado imediatas e, por vezes, até antecipam os sentimentos e substituem/simulam a experiência):

[Diogo] “…disse que teve de lavar latrinas e abominou esse tempo em que lavou as latrinas de um batalhão inteiro, tinha dezenas delas. Não contestei na hora porque minhas reações são lentas mas fiquei pensando onde ele tinha lavado essas latrinas se nasceu depois da guerra. E só na guerra circulava o sargento complexado que se vingava dos recrutas bonitões mandando que eles fizessem os serviços mais sujos. Fantasioso o meu menino, meu menino Diogo, não tem importância, eu também sou fantasiosa.

    Não é difícil perceber, nessa citação, as analogias do eu mínimo, a transposição  para tempos diversos e permutáveis que a ironia/pastiche do pós-moderno radicaliza. Como um bovarismo plural, as pessoas se evadem de uma realidade pobre e árida, fundando, elas mesmas, mesmo que numa gritante autoconsciência, seus “mitemas” (na terminologia de Lévi-Strauss), os quais nunca se sustentam por muito tempo. Outro exemplo é a descrição que Rosa faz da atitude do marido para com ela: “…ou se calava simplesmente porque estava se lixando? Um Rhett Butler já cheio de tudo e respondendo à Scarlet O´Hara, Estou cagando para o que você vai fazer”.

O outro lado da moeda, que complementa esse quadro: a admiração pela pureza, pela retidão, cristalizada na reverência de Diogo, Rahul e Dionísia (a empregada—aliás, a empregada de Verão no aquário também tinha esse nome e apresenta características similares, bem como a heroína, Raíza, com relação a Rosa) por Gregório, que se transforma numa espécie de inveja/ressentimente por parte da esposa, conforme constatamos em vários trechos:

“Tão estranho isso, o Gregório não acreditava em Deus, mas parecia completamente impregnado Dele, eu o encarava às vezes e de repente sentia que Deus estava ali presente”;

“Ele esboçou o sorriso para dentro, odeio esse sorriso interior de sábio da montanha tendo que tratar com a formiguinha”;

“Se Gregório reapareceu assim luminoso, é porque era um ser luminoso”;

“Vejo Rahul se lambendo debaixo da mesa. Também ele achava o Gregório deslumbrante. E até a analista aí em cima. Encontravam-se poucas vezes mas ele tinha a virtude dos deuses, era silencioso. Dois silenciosos se encontrando e se despedindo —mas por que o silêncio dá esse prestígio?”[2]

Encontramos a mesma atitude disseminada em outras personagens de Lygia, bem nítida por exemplo em Verão no aquário, na relação entre Raíza, a narradora, e a mãe: “Ah! como me irritava aquelas expressões veladas de Sábio do Sião conversando com a formiguinha! A dama esquiva. Se um pintor fizesse nesse instante seu retrato, tinha de batizá-lo assim: A Dama Esquiva”.

Escondido ainda na memória, Miguel, o amor de juventude, cujas características parecem dividir-se entre Gregório e Diogo, e que seria o ser, talvez, mais autêntico do livro, incapaz de continuar a viver em Cronos, morrendo jovem, como sempre acontece com os escolhidos dos deuses, Miguel também aponta, precursoramente, a insuficiência da experiência “real” (embebida em Cronos e na Idade de Ferro) ao consumir cocaína ao ponto de morrer (supõe-se) de overdose, já nos anos 1940.

1.b. O banimento

As mortes de Miguel (overdose) e Gregório (suicídio) —é interessante destacar a recorrência do suicídio e das mortes “inesperadas” de jovens na obra da autora— nos levam novamente ao mito, mas dentro de uma clave secundária na economia do livro.

Na concepção da tragédia grega proposta por Vernant & Naquet (em Mythe et tragédie en Grèce ancienne), o que estavam em jogo era a moral da cidade (coro= cidadãos, arauto dos tempos de instituições sociais e jurídicas) questionando o protagonista, representante de clãs ligados aos tempos míticos e funcionando como elemento desestabilizador ou mesmo desagregador por conta de seu descomedimento (hybris), que o projeta, durante a ação, do plano humano para o plano mítico. O resultado é a destruição inevitável do herói devido ás necessidades da nova ordem social: “Dans le cadre nouveau du jeu tragique, le héros a donc cesse d´être un modele; Il est devenu, pour lui-même et pour les autres, um problème (…)… la matière véritable de la tragédie, c´est la pensée sociale propre à la cite (…) La tragédie, observe justament Walter Nestle, prend naissance quand on commence à regarder le mythe avec l´oeil du citoyen”.[3]

Em AS HORAS NUAS o descomedimento troca de sinal e desloca-se para o estado das coisas, o mundo em geral, na (des)ordem social da qual são banidas a ética humanista, a pureza, a quietude, a autenticidade, a vidência, o ascetismo. Tanto de forma explícita quanto de forma camuflada. Estamos na cultura do eu mínimo: “O sobrevivencialismo leva a uma desvalorização do heroísmo (…) Um sentimento crescente de que os heróis não sobrevivem inspira o desencanto com os códigos convencionais de masculinidade (…) Não é apenas a masculinidade que perdeu o seu valor de sobrevivência, no entanto, mas todo o conjunto de ideais supostamente antiquados de honra, desafio heroico das circunstâncias e autosuperação” (Christopher Lasch).

A narrativa de Rosa deixa claro o banimento na anedota do rio-assassino:”… me lembro agora de um caso tão estranho que me contou, o caso do rio-assassino que rejeitava uma certa espécie de peixes, não queria esse peixe em suas águas. E o pobre peixe se abraçando desesperadamente à água que o expulsava, que o cuspia para a terra”.

Já no início do romance tal banimento bifurca-se com o controle mais ou menos camuflado do comportamento “destoante”, quando Rosa age “inconvenientemente” (principalmente por não estar mais “na moda”):

“…imagine se aquele avião pousou, está claro que comecei a gritar, Estamos caindo! Por favor, minha senhora, fique calma, pediu a comissária de bordo me agarrando com seus dedinhos de ferro e fazendo aquela cara suave. Tenho ódio de comissária de bordo, todas fingidas, me larga! Já estava em prantos quando ela me entregou suavíssima nas mãos da amiguinha fotógrada, clique!clique! Pouso péssimo, pose pior ainda, clique! A atriz Rosa Ambrósio é carregada para fora do avião completamente embriagada. Primeira página. Ou segunda, enfim não interessa”.

2. O EUNUCO: Rahul e o Esquecimento

Se o labirinto de memória de Rosa Ambrósio é individual (embora ela tente desesperadamente adquirir o “sentimento do mundo”, seu inferno continua sendo narcísico, e sua memória um jogo de espelhos, um eterno retorno do Mesmo: “Lembrar. Esquecer e de repente voltam os esquecidos com tanta força”; “Estou repetindo?”; “Já disse tudo isso e estou repetindo”), Rahul, seu gato, escancara para o leitor a memória mítica, não aprisionada por Cronos, a memória que corresponde à Visão (ou vidência). Ele será, no romance, o mais próximo de Mnemosyne. Tão próximo, mas ao mesmo tempo tão fatalmente distante.

Mircea Eliade vem lembrar que há uma diferença qualitativa entre Memória e recordação:”A recordação é para aqueles que esqueceram, escreveu Plotine. A doutrina é platônica. ´Para aqueles que esqueceram, a rememoração é uma virtude; mas os perfeitos não perdem jamais a visão da verdade e não têm necessidade de remeorar´(Platão). Uma memória perfeita é superior, portanto, à faculdade de rememorar. De uma maneira ou de outra, a recordação implica em ´esquecimento´ e este, como vimos, equivale, na Índia, à ignorância, à escravidão e à morte. Encontramos uma situação similar na Grécia”.

A jornada de Rahul pelos labirintos da memória suprapessoal passa pela degradação da própria ideia de memória que complementa a sua condição: um cotidiano empobrecido até da liberação dos instintos (“Afundo o focinho nas raízes…ah, se pudesse avivar meu instinto amortecido, eu inteiro amortecido”). O enclausuramento da imaginação e da libido são o correspondente atualizado e “degradado” (no sentido de Northrop Frye e sua Anatomia da Crítica) do avesso de Mnemosyne no panteão grego: o Letes, o rio do esquecimento. Inicialmente, argumenta Eliade, o esquecimento era associado à morte (“A fonte de Letes, o ´esquecimento´, faz parte integrante do reino da morte. Os defuntos são aqueles que perderam a memória”). Essa associação evoluiu para a doutrina da transmigração (onde quem lembra tem o controle de sua “evolução”), que vai contaminar, por assim dizer, o objetivo da vidência que Mnemosyne proporciona:

“O importante é conhecer não mais o passado primordial, mas a série de existências pessoais anteriores. A função do Letes é invertida: suas águas não mais acolhem a alma que acaba de deixar o corpo, com o fim de fazê-la esquecer a existência terrestre; ao contrário, o Letes apaga a lembrança do mundo celeste na alma que volta à terra para reencarnar-se. O ´esquecimento´não simboliza mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve a imprudência de beber da fonte de Letes reencarna-se e é novamente projetada no ciclo do vir-a-ser”.

Na alma e no discurso de Rahul confrontam-se as forças de Mnemosyne e Letes, da memória e do esquecimento, as forças da intuição totalizadora (vidência) e da fragmentação e encapsulamento (eu mínimo). Autoconsciente, suscetível, ele será testemunha de Rosa Ambrósio e da sua própria encarnação como gato domesticado, sendo ao mesmo tempo espectador de suas vidas anteriores. É um espectador degradado (voyeur), pois o ato de ver ofertado por Mnemosyne não o liberta das cadeias temporais. E se Rosa Ambrósio está crucificada na sua memória narcísica, Raul também não atinge o que Eliade denomina “memória primordial”, permanecendo na “memória histórica”, quer dizer biográfica (ainda que coletiva):

“Para os primeiros [os da “memória primordial”] o importante é o que se passou ab origine. São os eventos primordiais, nos quais não estiveram envolvidos pessoalmente. Mas esses eventos —a Cosmogonia, a Genealogia— de certa maneira os constituíram (…) Ao contrário, aqueles que conseguem recordar-se de suas existências anteriores preocupam-se em primeira lugar em descobrir sua própria ´história´ dispersa através de suas inúmeras encarnações. Eles se esforçam por unificar esses fragmentos isolados, por integrá-los numa única trama, a fim de descobrir o sentido do seu destino”.

Vejamos o que o próprio Rahul tem a dizer:

“Tão pequena a minha cabeça. Não entendo como pode caber mais tanta coisa. Poeira de lembranças que caberiam até na casca de uma noz. Se eu conseguisse arrumar essa poeira quem sabe encontraria os cubos que faltam para formar os quadros do jogo…”;

“Teria de descobrir a morte enquanto vivo, antes de entrar no labirinto de onde só poderei sair morrendo de novo. Para retornar —quem sabe?— na poeira de outras vidas. Mais sofrimento….”

É superstição comum afirmar que gatos têm muitas vidas (assim como serem misteriosos e sorrateiros); também faz parte da doutrina transmigratória tanto pitagórica quanto budista a passagem de um tipo de vida para outro (homem para árvore, árvore para pássaro etc). Por isso não se pode estranhar que um gato rememore vidas anteriores como ser humano (particularmente três) e se sinta aprisionado em sua forma atual:

A literatura indiana utiliza indiferentemente as imagens de amarração, acorrentamento, cativeiro ou de esquecimento, ignorância, sono, para significar a condição humana; e, ao contrário, as imagens de libertação das amarras e de dilaceração do véu… ou de memória, rememoração, despertar, vigília etc, são usadas para exprimir a abolição (ou a transcendência) da condição humana… É assim que se passam as coisas, explica Çankara, com o homem levado por ladrões para longe do Ser e que se vê preso na armadilha do seu corpo… Os ladrões são as falsas ideias de mérito, demérito e outras. Seus olhos estão vendados com a venda da ilusão e o homem se vê tolhido pelo desejo que experimenta por uma mulher, seu filho, seu amigo, seus rebanhos etc. ´Sou o filho de fulano, sou feliz ou infeliz, sou inteligente ou estúpido, sou piedoso etc. Como devo viver? Onde existe uma via de evasão? Onde está minha salvação?´ É assim que ele raciocina, enleado numa rede monstruosa.” (Mircea Eliade)

O esquecimento, aqui, equivale (como na segunda concepção do Letes) à encarnação. E o pequeno corpo de Rahul, num supremo encapsulamento, reflete essa escravidão, essa ausência de liberdade no movimento do ser, a suspensão, inclusive, da possibilidade de espaço, preso que está no apartamento de Rosa Ambrósio (além da suprema armadilha que é o corpo, daí porque grifei o trecho correspondente no texto de Eliade). A única saída é uma espécie de transfiguração do tempo cronológico e a reminiscência das vidas anteriores (acrescida das “visitas” que ele detecta com seu olhar vidente, no apartamento, e das quais se falará adiante).

2.a.- Encarnações

Na primeira das pretensas encarnações de Rahul o que se evidencia é o problema da libido. Já se disse aqui que as pessoas, no mundo atual, têm sua imaginação estreitada, o que favorece o eu mínimo e a sensação de possibilidades esgotadas. Nesse ponto, a castração de Rahul, evocada várias vezes, é simbólica (assim como seu nome, Rahul=luhar=luar; a lua é um símbolo místico por excelência e rege os signos de água que são os mais intuitivos, domésticos e sexuais: peixes, câncer e escorpião; o nome também o ligado à Gregório que estudava mecânica celeste a amava particularmente a lua).

A liberação dar-se-á pela via do sexo (também porque, neste, é convocada a presença do Outro, o que é um acionar da imaginação). Rahul vê (e sente, até um ponto em que a sensação lhe é roubada, por assim dizer) uma relação homossexual de uma antiga encarnação em tempos romanos:

“…as batidas do meu coração ficam mais fortes. Para aplacá-las, procuro disciplinar a respiração recitando em voz alta, sou poeta… Quando as batidas no meu coração se aceleram quase insuportáveis, pressinto seus passos vindo por detrás.

   Cravo o olhar no baixo-relevo da parede onde há um jovem seminu montado num touro, agarrando-o pelos chifres. Mais próximo o ruído das suas sandálias no mármore polido. Não me volto nem quando sua mão afasta o pano que me cobre o ombro. Beija esse ombro, me toma pela cintura e colado no meu corpo ele vai me levando adiante feito um escudo. Tombo de joelhos no leito, os cotovelos fincados no coxim. Agora ele me agarra pelos cabelos e puxa minha cabeça. Vou cedendo, o pescoço distendido em arco. Ainda não posso vê-lo colado assim às minhas costas nem me esquivar quando sua boca voraz morde minha nuca, devo ter gemido porque em seguida a boca procurou suavemente a minha orelha, contornou a orelha com a língua…

   O grito. Pelo funil desse grito escapei do meu corpo que prosseguia livre em seu ritmo de gozo mas agora sem mim. Fiquei aturdido, sem entender, mas o que estava acontecendo: Quando decido me recuperar foi como se entre o meu corpo e entre mim mesmo se levantasse uma parede invisível, bati nesse vidro com os punhos desesperados, o que significava tudo isso? Ainda me via mas não me tinha, fui excluído para virar um pasmado espectador do corpo perdido… Lentamente a imagem dos jovens começou a se dissolver e evaporar… As cores escorrem confundidas como numa folha de papel mergulhado na água, escorreram os mármores. Escorreram os jovens num caldo cor de tijolo”.

Também Ananta, a analista de Rosa Ambrósio, dedicada à causa feminista, e que desaparece misteriosamente, numa segunda bifurcação do romance, embora descrita como um ser neutro, possivelmente virgem (e aqui entra novamente a ambivalência admiração-inveja pela conduta ascética, seja em que nível for), sente uma violência íntima insuspeitada ao imaginar as experiências do vizinho na andar de cima:

“Ananta fechou a janela. E com a naturalidade com que recebia seus pacientes, sentou-se na cadeira, entrelaçou as mãos no regaço, esperando pelos primeiros ruídos que foram emergindo em meio dos sons do cravo, ele estava entrando. Ouviu os passos circulares na ronda da fatalidade, ainda o espanto, ainda a contenção toda feita de cálculo, ele se preparava, o corpo crescendo intenso com a música (aumentou o volume) até estourar em focinho, cascos, crinas. Ela tirou os sapatos, deitou-se no divã e cobriu-se com a manta. O úmido resfolegar soparando furioso por entre os dentes, as veias saltadas, os olhos, o latejamento crescendona acomodação das carnes, peles…”

    A cena fala por si mesma.

A segunda encarnação entrevista por Rahul é  a de um atleta num tempo impreciso, que corre com uma tocha (“Inventei a corrida com a tocha e o parceiro que me substitui, claro símbolo da vida em outras terras ?”)

Numa terceira encarnação, a mais persistente e nítida, é que se esboça um dos aspectos em que AS HORAS NUAS aproxima-se dos mitos de origem (segundo Lévi-Strauss): Rahul se vê como um menininho (portanto, no seu tempo “primordial”), vivendo com mulheres numa casa de venezianas verdes, as mulheres com seus ritos domésticos, sobrevivendo numa moradia sem homens. Curiosamente, nos outros percursos “encarnativos” de Rahul havia a procura pelo masclino (o parceiro sexual, o companheiro atleta). E Rahul, como gato, também vive num mundo sem homens:

“…sempre com as mulheres ao redor —não é estranho? Estou sempre rodeado de mulheres que me pegam, me defendem, me ameaçam. Acariciam e castram. Os homens não se demoram muito mas as mulheres, essas resistem”;

[Rosa]”…não gosta de mulheres. Nem eu. E as mulheres sempre em redor. As mulheres da casa das venezianas verdes. As invisíveis mulheres da minha casa romana, mesmo sem vê-las sentia a presença delas nos alojamentos, discretas. Respeitadas. A rápida visão da jovem que estava na minha alcova, os olhos verdes, o colar. As mulheres atuais, Rosona, Cordélia, Dionísia, às vezes, Ananta. Lili. Os homens e os fantasmas sempre se despedindo, só a menina antiga… resiste. As mulheres me confundem e me escapam, mais perigosas do que os homens na conspiração. Conspiram como as nuvens, segundo Rosa Ambrósio. Mais vulneráveis no vício. No amor. Acredita Ananta Medrado que elas serão as únicas capazes de salvar esta vida sem qualidade”.

É a instauração do tema dos tempos míticos perdidos, deixados para trás, com a perda dos heróis, com a partida dos homens, situação que se multiplica no livro já a partir do fato de que o pai de Rosa abandonou a família (como acontece sob várias formas nos textos da autora).

Por outro lado, o trecho grifado “Acariciam e castram” merece ser examinado com mais detalhe, uma vez que o mito de origem na concepção de Lévi-Strauss de alguma forma relaciona-se com o de outro estudioso dos laços de parentesco, Sigmund Freud, e um dos momentos cruciais nos mitos de origem freudianos é o do “complexo de castração”, um rito de passagem traumático do outro lado do qual encontraremos nosso ajuste (ou desajuste) de “caráter”, a estrutura convencional de personalidade que utilizaremos em sociedade. Segundo nos ensinou o grande Ernest Becker: “Conforme Ferenczi tão bem sintetizou: ‘Sob o ponto de vista do psicanalista, o caráter é um tipo de anormalidade, um tipo de mecanização de determinada maneira de reagir, bastante análoga a um sintoma obsessivo´. Por outras palavras, o projeto narcisista de autocriação… está destinado a malograr. E a criança descobre isso: assim é como entendemos a força e o significado do que é denominado ´complexo de castração´, segundo Freud desenvolveu em trabalhos ulteriores e como Rank e Brown pormenorizaram. Nessa concepção mais atual do complexo de castração, não é às ameaças do pai que a criança reage. Como Brown tão bem afirmou, o complexo de castração somente se manifesta em confronto com a mãe…”

    Falar em mãe, em nossa cultura, é ainda falar do feminino. O tempo do livro é um tempo de mulheres, o que é vivido negativamente tanto por Rosa quanto por Rahul, o castrado. Para Rosa, a mulher é inimiga (“mulher não gosta mesmo de mulher, essa história de solidariedade, hem?”), e quando ele estiver vagando pela Praça da República os fantasmas que lhe aparecerão serão todos femininos: um, inclusive, de uma prima, relembra um episódio amoroso como o marido de Rosa, sem contar a comissária de bordo do início do relato a qual permite que ela seja fotografada embriagada e histérica; ou sua mãe, sempre mantendo as aparências ao ponto de obrigá-la a comparecer a um casamento , mesmo acabando de encontrar morto o amado primo.

2.b.-Aparições

Rahul percebe que entre os visitantes fantasmagóricos do apartamento (experiências diferentes dos recuos no tempo observando vidas anteriores), a que mais persiste é uma “tola menina com seu bordado”, enquanto os outros se esvanecem, incluindo Gregório, o marido de Rosa, que reaparece algumas vezes após o suicídio (e Rahul é um dos poucos que sabem que ele se matou, testemunha inexorável que está condenado a ser). Com a perda do fantasma amado (aliás, uma relação tornada enigmática —embora tenha indicado a possível explicação na seção anterior —pela seguinte passagem: “Podia ser que na morte eu voltasse à casa romana, certamente corriam outras águas no rio onde nadei mas eu seria o mesmo. Aceitando com naturalidade os prodígios até chegar à minha casa no ocaso da vermelhidão e vinho. Reconhecendo o amado que veio por detrás e tocou no meu ombro, Gregório”), ele chega a pensar numa mesma saída (suicídio) libertadora:

“Subi ao parapeito da janela e fiquei olhando o jardim. A morte seria fácil, bastava cruzar o vão da vidraça e despencar lá embaixo na direção da alameda de pedregulhos, a vida já me aproximara de Gregório. E se eu tivesse que morrer para nessa segundo oportunidade me aproximar dele novamente… Recuei. Saltei para o tapete. Agora tenho medo da liberdade…”

A morte de Gregório, após uma vida intelectual ascética e entretanto combativa, é vista como libertação. Esta última observação e o trecho grifado (“Agora tenho medo da liberdade”) reportam às considerações descritivas de Eliade sobre os pensamentos míticos grego e hindu. Mas também aqui paira a ideia de que com Gregório (assim como com Miguel) estava um princípio de heroísmo, que se sobrepunha a estes tempos medíocres (Idade de Ferro, tempos de ditadura no Brasil), um princípio de pureza/integridade, que foram perdidos, deixando um clima de irremediável nostalgia, uma prisão doméstica e a vida sufocada e sufocante de mulheres com suas miudezas e suas preocupações embebidas em Cronos. A morte de Gregório e a partida de Diogo correspondem à perda da existência do poeta nos tempos romanos (que, entretanto, eram vistos como decadência com relação ao mundo grego), com seu erotismo livre, e da liberdade do atleta correndo com sua tocha:

“Em nossa cultura… o heroico parece demasiado grande para nós ou nós excessivamente pequenos para ele. Diga-se a um rapaz que ele merece ser herói e ele ficará ruborizado. Disfarçamos nossa luta existencial acumulando em uma caderneta de banco para refletir em particular nosso sentimento de valia heroica. Ou tendo uma casa um pouco melhor, um carro um pouco maior e filhos mais inteligentes que os dos vizinhos. Por baixo disso, porém, pulsa a dor de ser melhor cosmicamente, não importa quanto a disfarcemos por meio de preocupações de aparência mais modesta (…) a sociedade ´civilizada´ é uma crença e um protesto cheio de esperanças de que a ciência, o dinheiro e as mercadorias fazem o homem valer mais do que qualquer outro animal. Nesta acepção, tudo o que o homem faz é religioso e heroico e, contudo, arriscado a ser fictício e falível (…) tornar-se cônscio do que se está fazendo para alcançar seu senso de heroísmo é o principal problema autoanalítico da vida. Tudo de doloroso e sensato que o gênio psicanalítico e o gênio religioso descobriram  acerca do homem gira em torno do terror de admitir o que se está fazendo para conquistar a própria estima…” (Ernest Becker)

   Citação longa,  mas que parece perfeita para arrematar as questões levantadas a respeito do heroísmo na visão de Rahul e Rosa, ainda mais se a entrelaçarmos com as considerações sobre o eu mínimo de Christopher Lasch.  Ainda resta, no entano, entrelaçar as encarnações, as aparições e o “complexo de castração” que apareceram ao longo das páginas anteriores o que se pode fazer com a ajuda de C.G. Jung, num trecho de O homem à descoberta da sua alma:

“… os nossos complexos fazem-nos viver num mundo de projeções, as quais, escapando correntemente aos nossos sentidos, invalidam grandemente o valor objetivo dos testemunhos que aqueles nos dão. O tempo da influência dos complexos não se restringe, porém, a esta revelação já perturbante. A autonomia especial deles, a faculdade que têm de tirar energia à consciência e de a utilizarem, de tomar por um instante o lugar dela, de a influenciarem e de a governarem, tudo isto se encontra de modo espantoso num complexo normal, o ´complexo do eu´. Supõe-se em geral que os complexos não são normais, mas na verdade eles são necessidades vitais (…) os complexos… foram vistos no passado como duendes, gnomos, serem sem coração e alma gelada. De gato, os complexos, na origem, constituem a representação dos ´espíritos subterrâneos´ que propriamente falando são a personificação de fragmentos psicológicos…”

Se há essa tendência da psique para a personificação dos complexos, isso deve valer também para aparições e visões.

2.c.-O que tudo isto tem a ver com um gato?

Resta a encarnação obsedante do menininho no clã feminino e a prisão no corpo de gato castrado. A Mnemosyne de Rahul é uma prática (no sentido iniciático mesmo, ainda que degradado) de libertação, porquanto ele tenta não submergir no esquecimento, tentando remontar as peças do seu “eu”, tentando mobilizar suas faculdades de vidência (o gato como habitante do umbral entre mundos, um psicopompo) mesmo nos limites restritos do apartamento luxuoso. E se ele nos parece a personagem mais humana e emocionante do romance, a bifurcação de AS HORAS NUAS que o torna um dos narradores enriquece, pelo menos é a opinião de quem aqui escreve, consideravelmente a tessitura e estrutura da narrativa. E se ele é um gato que sonha com o homem assim como este sonha com Deus, e se esse sonhar é uma ilusão (“Ainda a invenção? Simples necessidade de compensar a forma atual através da fantasia—será isso?… Procuro unir as pontas meio rotas através do tempo real ou inventado enquanto fico me perguntando o que tudo isto tem a ver com um gato”), essa ilusão –assim como a própria mitologia humana—reveste-se de dignidade e beleza. É a luta de Mnemosyne contra Letes, do poder de visão contra o embrutecimento das imagens incessantes e vazias da Idade de Ferro, do heroísmo contra as mesquinhas preocupações  narcísicas do eu mínimo e do “complexo de castração”.

3.BURGUESIA E MISTÉRIO

A segunda bifurcação da narrativa, que traz Ananta Medrado para o centro da cena e, após seu desaparecimento, seu primo Renato, conduz o leitor a certa perplexidade pela forma como é conduzida, inicialmente entremeada e depois sobreposta às narrativas de Rosa e Rahul.

O primeiro corte ocorre no capítulo 5, quando um narrador em terceira pessoa acompanha as ações e a corrente de consciência de Ananta. Esta, além da vida austera que a torna a contrapartida feminina (meio diluída, ou assim parece) de Gtegório (“Ananta não me responde, faz aquela cara vaga e não fala, só ouve. Essa analista marca barbante. O outro também só ouvia, Gregório e ela são da mesma escola”; “Tem belos olhos, descobri com certa surpresa. Destacavam-se luminosos na face de uma moça que a gente olha e esquece… No olhar azul-cinzento, a paciência. E um certo distanciamento, que me perturba, Gregório tinha esse jeito de olhar”), também  mantém fichários e agendas, como que representando um princípio ordenador contraposto ao caos por onde se movimentam as outras personagens. Até a anotação de acontecimentos anteriores é organizada, em contraste com o vai e vem dos capítulos anteriores. Somente a preocupação com o vizinho do andar de cima “quebra” essa ordenação plácida, pouco “sanguínea”.

Toda a relação (unilateral, se é que ele é real; ela mesma duvida por vezes) com esse vizinho leva o romance (não bastasse a capacidade de vidência de Rahul) para o lado do fantástico-misterioso, uma das principais vertentes da obra de Lygia Fagundes Telles (mas que pela primeira vez aparece num romance). Um fantástico com forte lastro psicológico, já que acontece a partir das impressões de uma personagem: para Ananta seu vizinho metamorfoseia-se todas as noites num cavalo.

Ananta lembra, também, de forma mais amadurecida, uma das protagonistas de As meninas, Lorena, na qual —sob uma aparência um tanto insípida (Ana Clara, outra das “meninas” chama-a constantemente de “nhem-nhem”)— oculta-se uma fervilhante vida interior e violência de afeições.[4]

A vigília de Ananta com relação à metamorfose do vizinho é mais uma tentativa, dentro do romance, de imaginar o Outro, o alheio, de romper os limites de uma vida sem grandes possibilidades criativas (e, no plano mítico, de romper as cadeias temporais):

“…apoiou a face no braço estendido, ah, se pudesse alongá-lo e com ele chegar ao teto. Bater nesse teto… mensagem enérgica…

   A resposta veio inesperadamente. Contraiu-se inteira no susto e na alegria porque agora a resposta vinha tão nítida… Ananta ficou um instante imóvel, o pasmo somado ao pasmo de ser ainda capaz de se pasmar. E a excitação (quase insuportável) pela revelação do amor, abriu os braços. Fechou-os em seguida contra o peito e foi rolando suavemente até o toca-discos, rolando e repetindo Eu te amo eu te amo eu te amo. O choro contido soltou-se veemente, que ele ouvisse, sim, o pranto que era uma celebração”.

Mas a imagem que ela tem do vizinho tem um biombo de permeio, como parece ser obrigatório nestes nossos tempos de espelhos, referências cruzadas e visões indiretas, tempo de estilhaços e fragmentos, como Rosa e Rahul, de formas tão diferentes, já (com)provaram:

“Captava (em fragmentos, embora!) a sua imagem quando se concentrava, os olhos postos no teto: maxilares proeminentes, a boca bem desenhada, o queixo quadrado, nariz torto, olhar intenso, brilhando sob a aba do chapéu”.

O que leva a fantasia sexual a uma fantasia-fetiche codificada pela cultura, com a evocação do homem-galã, o “durão” do cinema noir. Ainda assim, em Ananta o problema que nos ocupa, a luta de Mnemosyne e Letes, toma o contorno de imaginação despertada via fantástico, mistério (atmosfera mais parecida com a dos contos da autora), como veremos.

3.a.-O viés do desaparecimento

Após os capítulos 5 e 6 dedicados a Ananta, há uma série de capítulos em que Rosa e Rahul revezam-se e nos quais uma das informações é o desaparecimento da analista.

No capítulo 14 aparece novamente o narrador em terceira pessoa acompanhando Renato Medrado. Com ele em cena, investigando o estranho sumiço,  a situação se inverte e é a desaparecida quem passa a exercer fascínio, muito embora AS HORAS NUAS —se é preciso fazer um juízo de valor— dê ao leitor a impressão de degringolar um pouco na reta final.

Para Renato a prima era figura apagada. E justamente a vida discreta que ela levava lhe confere agora poder de sedução. O primo aparece envolto em tédio e Ananta exerce o papel reservado ao romanesco.  O encapsulamento da vida de Renato e a nova relevância da prima são simbolizados pela reação dele à tapeçaria  da família que foi parar no apartamento da desaparecida. Na infância, ao mesmo tempo que considerava (ou desconsiderava —a velha exclusão do elemento estranho— e que ecoa, se forçarmos um pouco a barra, o impasse cidadãos da polis/herói mítico) Ananta uma prima esquisita, sem graça, Renato tinha medo da tapeçaria, a qual, para ele, parecia gigantesca e ameaçadora:

“… o que vi lá de mais importante foi uma velha tapeçaria da família que sempre esteve na casa dos meus avós nos Campos Elíseos, me lembro que essa tapeçaria me dava um medo danado com sua floresta que parecia esconder monstros. E depois de tanto tempo vou encontrar a antiguidade dependurada no escritório de Ananta e bem menor do que eu imaginava”.

Não esquecendo o que a expressão “casa dos meus avós” reporta em termos de tempo primordial e que a perda de reverência à tapeçaria é uma das consequências do afastamento desse tempo (ou pré-tempo), e da perda do sentido de mistério, é bom sublinhar que, se a tapeçaria reaparece diminuta e inofensiva para o adulto, retrospectivamente Ananta parece conter o mistério que ele perdeu nalgum ponto da vida, algo que ele esqueceu ou que não reparou (o que lembra a situação da novela de Henry James, A fera na selva), o que é sinalizado, no desfecho do livro, pelo canteiro de amores-perfeitos, o qual ele nem notara em visitas anteriores (“Mas não era mesmo incrível? Não ter visto o canteiro das pequenas mascaradas que sempre estiveram ali. O que mais teria deixado escapar?”):

“…coração flechado, apaixonado pela prima sem mistério e misteriosa. Rejeitada e recuperada. Perdida e achada.”

   A meu ver, essa é a forma que Mnemosyne assume para  o burguês Renato (a referência aos Campos Elíseos não é acidental): a luta contra o tempo perdido. Ele sente que, encontrando a prima, veria o passado sob nova perspectiva, e assim o recuperaria; caso contrário, ficaria tudo perdido, diminuído. Ele próprio:

“…os desaparecidos mais complicados são os de comportamento exemplar. Ananta medrado tinha um comportamento exemplar, organizada como a própria alcachofra com o coração esquivo  escondido no círculo fechado das sentinelas das folhas. A operação-busca exigia redobrada paciência.  E tempo. Paciência, eu tenho, reconheceu Renato Medrado, mas tempo? Tanta coisa lhe acontecera ultimamente, tanta”.

Ele enumera então as coisas com as quais está “enredado”: o pai doente, amante casada etc. E fantasia a prima liberta da  cadeia temporal que a tudo “diminui”, da gaiola burguesa, transformada voluntariamente em vegetal (note-se que ele não consegue imaginá-la no reino animal,  coisa bem masculina e estreita, quando se lembra das cenas em que ela espreita auditivamente o vizinho, por assim dizer, enleada pelo animalesco que ali pressente):

“E a priminha pirou como esse homem-árvore e virou vegetal. Em alguma praça do mundo estava Ananta Medrado esparramando as raízes, podia ser em Amsterdam”;

“Em que Ananta se transformaria? Numa cerejeira? Na primavera desabrocharia naquelas florinhas miúdas. E receberia um cartão, Estou florindo em Tóquio”.

3.b.-Uma digressão: E a narrativa?

Mas algo de frustrante acontece com a narrativa: abandona-se Rahul no meio do caminho, leva-se Rosa a um ponto a ser discutido adiante, após um capítulo (14) que é o diálogo de Renato com um delegado, onde este é informado de todos os dados relevantes sobre o universo de Ananta (e que envolvem, por derivação, Rosa e Rahul e todos os elementos já abordados, os quais aparecem tão diminutos quanto a tapeçaria —seria esse o objetivo da autora?).

Quando Renato reaparece nos dois capítulos finais  (17 e 18)[5], sempre com o narrador em terceira pessoa, espera-se  que a perspectiva da história mude, com algum detalhe despercebido, algum dado novo, reproduzindo o próprio processo interior de Renato que procurei sugerir.

O que acontece, todavia, é que esses dois capítulos limitam-se a repassar, sem novidades ou sutilezas insuspeitas, informações que o leitor já está cansado de conhecer ao longo do livro, e que já haviam sido suficientemente esgotadas no diálogo com o delegado. O capítulo da visita ao apartamento é particularmente redundante, nesse sentido, já que ele a relatara fielmente ao seu interlocutor.

A impressão final do leitor é que, com o capítulo registrando a conversa entre Dionísia, a empregada, e o visitante, há um olhar de fora por sobre todo o inferno particular de Rosa e Rahul, e que o estado (o prédio quase vazio, com a partida de Diogo, o sumiço de Ananta, a viagem de Cordélia—a filha—e o tratamento de Rosa Ambrósio) que esse olhar encontra aponta no sentido do velho chavão “a vida continua”, o qual ecoa ironicamente a aproximação feita por Rosa, dela própria e de Gregório como Scarlet O´Hara e Rhett Buttler, já que o final de E o vento levou apresentava moral semelhante: “amanhã é outro dia” (o que não deixa de ser uma curiosa adesão à vida vegetativa que Renato imaginou para a prima).

Um olhar de fora perturbado apenas pela visão do gato a espiar do quarto andar. O leitor sabe que esse gato é vidente, um psicopompo, e ele continua a seguir com os olhos o visitante que está deixando o prédio e, enfim, reparando no canteiro de amores-perfeitos. O olhar de Rahul encerra o livro e o posta como um guardião do apartamento-labirinto.

Mas o que aconteceu com a narrativa, volto a perguntar? Teria a autora levado o jogo de espelhos da pós-modernidade ao ponto de os dados do  livro espelharem-se infindavelmente, imutavelmente? Seria um objetivo consciente terminar AS HORAS NUAS nessa fantasmagoria narrativa, com todos os seus dados congelados por um olhar pior do que o da Medusa, pois não acrescenta nada e parece diminuir a tapeçaria inteira a um tamanho banal, um quadro imobilizado?

[Rahul] “Devido à exalação dos motores e gases de aquecimento até o mármore de Roma está virando gesso. E o resíduo da mimha memória continua inalterado feito pedra”.

4.A CRUZ: o mito da salvação

Antes do final desconcertante de AS HORAS NUAS há uma reformulação doa postura e do discurso de Rosa Ambrósio. No capítulo 13, ela —pela primeira vez no presente da narrativa— deixa o apartamento, num primeiro passo para que admita necessitar de tratamento para o alcoolismo.

Após a consulta, passeia pela Praça da República, um dos lugares mais degradados de São Paulo:

“Mas esta é a antiga praça? … a praça ocupada, a cidade ocupada. Mas de onde veio toda essa gente? Onde essa miséria se escondia antes? Eram gramados tão bem cuidados como os gramados dos parques londrinos e desceu um dos cavaleiros do Apocalipse, o mais descarnado e encardido”.

Pode-se afirmar que, nesse capítulo, a experiência (ou luta) de Rosa com a memória chega a um ponto crítico, com a sensação de anonimato e desalento (a “bruxa seduzindo o tempo”, na acepção depreciativa de Rahul, entrega os pontos), com um desfilo de fantasmas femininos importunando-a, o que conduz a narrativa a uma bela metáfora, que traz de volta o mito em meio à ironia do mundo degradado (Idade de Ferro):

“As testemunhas picadas em pedaços tão miúdos —adiantou? Aos poucos elas vão se refazendo e me seguindo passo a passo na procissão lamurienta, eu sangrando em frente com a cruz da memória”.

Rosa percebe os fantasmas como pássaros:

“Adeus, Zelinda, eu digo. Ela se afasta da minha lembrança num voo de pássaro que quer apenas se juntar aos outros na grande copa da árvore da praça”.

E após a “procissão lamurienta”:

“Na mais velha das árvores —aquela ali? deponho a minha cruz, posso? Essa cruz ainda vai voltar um dia, essa cruz da procissão da memória eu sei, mas por ora estou livre dela”.

A cruz é feita de madeira, Isto é, oriunda das árvores (e na mitologia celta há seres nas árvores, o próprio Merlim acaba aprisionado numa, em algumas versões da lenda), e os pássaros procuram as árvores para os seus ninhos, portanto não é estranho que os “pássaros da memória” procurem uma cruz para pousar. A metáfora se completa e se amplia com o fato de que Rosa mora num bairro “onda todas as ruas têm nome de passarinho”. E a sequência  toda transmite ao leitor um sentido de redenção (precária que seja) e libertação. Isso porque, para os cristãos, as cenas da paixão de Cristo constituem um mito primordial. Segundo nosso velho amigo Eliade:

“…Embora representado na História esse drama possibilitou a salvação; consequentemente, existe apenas um meio de obter a salvação: repetir ritualmente esse drama exemplar e imitar o modelo supremo, revelado pela vida e pelo ensinamento de Jesus. Ora, esse comportamento religioso faz parte do pensamento mítico autêntico… como já vimos, a imitação de um modelo transumano, a repetição de um enredo exemplar e a ruptura do tempo profano mediante uma abertura que desemboca no Grande Tempo, constituem as notas essenciais do comportamento mítico”.

Foi com esse olhar, conjugando as notas do “comportamento mítico” (embora não se possa deixar de observar o componente pós-moderno no ver tudo por imagens, referências, analogias), que Rosa descobriu o primo morto nos braços da tia:

“…ali estava Tia Lucinda sentada na cama com o Miguel nos braços… Fazia um ligeiro movimento de balanço como se embalasse o filho… ele tão grande transbordando do colo da mãe. Que desmaio era aquele?… Mãe e filho quietos na casa quieta…Recuei com o sentimento de que estava apenas diante de um quadro muito antigo, antiquíssimo com a Virgem e o Cristo Morto. Ele fora despregado e a Virgem o recebera sem gestos e sem lágrimas, o recebera nos braços singelamente”.

Tal cena leva ao cerne da reformulação vital no comportamento de Rosa: com o desaparecimento de Ananta e o primeiro passo dado para o exterior (ao ir à consulta e depois o ponto crítico da “procissão lamurienta”), ela rompe com a Medusa petrificante e passa a gravar as suas memórias, o que, já em princípio, é uma tentativa de ordenação para quem vivia no caos  (“o repertório da atriz se misturando ao das peças num caos que se assemelhava ao fundo da sua sacola lanvin onde ia enfiando  tudo —dinheiro, pente, batom, caderno de endereços, aspirinas, chaveiros, colírios. Tanta dificuldade em pescar um simples isqueiro naquele fundo”). E ainda que dramatize, seja “over”, se perca,  sua memória aponta para uma direção nítida: os tempos remotos da adolescência (e o mundo decadente da burguesia paulista), os quais estão justamente dentro de outra vertente central  da obra de Lygia Fagundes Telles, tanto nos seus contos quanto nos seus romances.

As memórias de Rosa estacionam aí, nos tempos da Segunda Guerra, com as esperanças da menina pobre com parentes ricos, o primo príncipe encantado, a religiosidade, a hipocrisia, a tirania da moda, da “glamour girl”. E se a deserção de Ananta projetou o romance no misterioso, o passado de Rosa na alta burguesia paulista emergindo de uma ordenação de suas memórias se entrelaça com esse misterioso, oferecendo uma síntese do universo ficcional da autora.

A evocação de Rosa termina justamente quando entra em cena meio obliquamente o futuro marido, no momento exato em que desaparece o príncipe encantado. Gregório fica, portanto, como a grande intersecção, como um guardião do umbral, para o outro lado da vida que Rosa conhecerá, embora sempre mantendo a mitologia mistificatória de menina-moça, meio leitora-meio heroína de romances de M. Delly.

E ela acaba por nos lembrar Mary (afinal de contas, trata-se de uma atriz), protagonista de Longa jornada noite adentro, a grande peça de Eugene O´Neill  onde, após uma noite de tormentos e recriminações, a mãe morfinômana inicia um monólogo final contando sua mocidade radiosa e como coroamento, final feliz, seu casamento —que foi, ao mesmo tempo, e de um modo terrificante para quem acompanhou a ação, o ponto de partida para a longa noite.

Em AS HIORAS NUAS (pelo menos no que se refere à personagem Rosa Ambrósio), o princípio é localizado no fim. E a memória percorre todo o círculo:

“Essa nostalgia do caráter. Da beleza. Eram belos os gestos secretos. As palavras secretas., toda a simbologia que Deus exige, Ele exige! Mas os padres ficaram íntimos, os mitos íntimos. Massificar heróis e desmistificar os mitos. É o fim deles? pergunto.”

Viçosa (MG), janeiro de 1990

nota especial– Escrevi o texto acima quando tinha 24 anos, por isso peço a caridade dos leitores quanto aos aspectos juvenis e imaturos que ele apresenta. Na verdade, seu maior defeito é tentar imitar um ensaio acadêmico, tanto que seu título original era O COTIDIANO MOVEDIÇO-ASPECTOS MÍTICOS NA REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE EM ´AS HORAS NUAS´.  O que me fez relê-lo com prazer foi encontrar nele uma espécie de síntese de leituras que fiz no período. Espero que, além desse motivo absolutamente pessoal e egoístico, ele também seja útil a outrem.


[1] Muito significativo esse espelho sem memória (grifo meu) porque justamente o mais crucial nos espelhos é que eles só mostram o que se é (e na exterioridade), não importando o que se foi. Narciso requer um espelho eterno, mas isso se torna petrificante quando a face mostrada é a da Medusa.

[2] Ironicamente,Rosa procurará depois a quietude e o silêncio que a irritavam no marido.

[3] “No novo quadro do jogo trágico, o herói deixa de ser um modelo; torna-se, para si mesmo e para os outros, um problema (…) … O material verdadeiro da tragédia é o pensamento social próprio da cidade (…) A tragédia, observa com justeza Walter Nestle, nasce quando se começa a olhar o mito com o olhar do cidadão”.

[4] Outra que lembra As meninas, como também lembrava—como já apontado—a heroína de Verão no aquário, é Rosa, com cacoetes de linguagem que evocam Lorena, e uma caminhada para a autodestruição (que, entretanto, susta a tempo, ao contrário da predecessora), entremeada com um discurso prometendo a si mesma um futuro radioso, que em certa medida traz à mente a Ana Clara do romance anterior:

“…nem tem importância, paro quando quiser, desintoxicação. Ginástica. Nem preciso de outra plástica, de novo o palco, aplausos”. (As horas nuas)

“Com dinheiro e casada, não precisaria mais de nenhuma ajuda, ora, análise. Nenhum problema mais à vista. Livre. Destrancaria a matrícula, faria um curso brilhante. Os livros que teria que ler. As descobertas sobre si mesma. Sobre os outros”. (As meninas)

[5] No primeiro deles, aguardando Rosa numa clínica de repouso e, no outro, fazendo a inspeção do apartamento de Ananta, que, por sinal, já tinha sido referida no diálogo com o delegado.

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