MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

07/05/2010

MILAN KUNDERA- LÚDICO E LÚCIDO


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APROVEITANDO UMA NOVA EDIÇÃO (mas vejam a diferença de capa) DE A IDENTIDADE,  em 2009:

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Além do texto em si, A Identidade causa interesse por confirmar dois movimentos que parecem irreversíveis na obra mais recente de Milan Kundera: em primeiro lugar, ele está se acomodando naquela seleta categoria dos que se servem de uma outra língua para escrever ficção de primeira linha (embora Joseph Conrad fosse polonês e tenha escrito seus livros em inglês, os casos mais parecidos com o de Kundera são os de Beckett e Nabokov, que escreveram textos em sua língua natal e depois adotaram outra língua), sendo A Identidade sua segunda novela em francês; além disso, ele cada vez mais inclina-se a títulos curtos, que tomam como base algum conceito geral (seus trabalhos anteriores intitulavam-se A Imortalidade e A Lentidão). Não se pode esquecer, também, que ele está lançando livros mais curtos. Significaria que está às voltas com outro idioma e isso travaria seu fôlego? Ou então está adotando uma perspectiva mais essencialista, já a partir do título?

Talvez se possa ter uma visão mais clara a respeito dessa questão num próximo livro. Por enquanto, A Identidade fascina e faz sonhar ao lançar inquietação não exatamente quanto à identidade pessoal, mas as “identidades” por aliança que constituímos ao longo das nossas vidas: os amores, as amizades. O protagonista do livro, Jean-Marc, visita no hospital um antigo amigo e fica incomodado porque ele pede a toda hora que se lembre de eventos antigos. Daí pensa: “eis aí a verdadeira e única razão de ser da amizade: fornecer ao outro um espelho em que ele possa contemplar sua imagem de antigamente”.

Jean-Marc trata interiormente a amizade com tanto descaso, quase desdém, porque criou uma espécie de “reino em separado”, de aliança contra o mundo, com sua mulher, Chantal. A ironia de A Identidade é que, a partir da pequena viagem de Jean-Marc em visita ao tal amigo, a sua identidade e a de Chantal enquanto casal começará a se deteriorar. Essa deterioração vai operar-se através de procedimentos tipicamente kunderianos: a princípio, Jean-Marc e Chantal tomam consciência dos seus desacertos consigo mesmos e um com o outro por meio de pequenas fórmulas filosóficas, aquelas mesmas que irritam tantos críticos e leitores de Kundera, até mesmo os que gostam muito de sua obra (como é o meu caso); depois, a trama encaminha-se para um qüiproquó vaudevillesco (não fosse ele autor do genial A valsa dos adeuses e dos contos notáveis de Risíveis amores), quando Jean-Marc resolve mostrar à esposa que ela continua atraente (apesar dos temores dela de não o ser mais), escrevendo-lhe cartas anônimas, como se fossem de um outro.

O problema é que Chantal começa a ver possibilidades romanescas em tipos masculinos das redondezas (até num mendigo). Jean-Marc sente ciúme das suas primeiras cartas e aí o enredo corre o perigo de esborrachar-se na frivolidade ou numa atmosfera sub-Alberto Moravia. Felizmente, a imersão do casal num pesadelo que o desloca até da sua referência espacial (vão para Londres), perdendo-se completamente um do outro, no sentido mais amplo da palavra, projeta o livro numa outra dimensão, que transfigura o clima vaudevillesco anterior numa necessária preparação. Pois Jean-Marc e Chantal começam a viver numa espécie de baile de máscaras, mudando rapidamente de papéis. A questão é: eles já não viviam determinadas (e limitadas) máscaras antes? E por que seriam confortáveis então e não se sentem mais assim nos papéis que surgem, nas novas máscaras, dentro da “pérfida fantasia” que os arrastou,como quer o narrador?  Se, como Jean-Marc pensou diante do amigo, a relação de amizade é apenas um espelho de um momento já perdido, qualquer relação afetiva duradoura, que tenha “existência” e “identidade”, não poderia ter o mesmo objetivo, ancorado no ilusório?

E, em Londres, solapados os momentos que “identificam” o casal Jean-Marc/Chantal, ela perde a memória do marido, já que ele não pode ser espelho presente de momentos passados: “Nesse momento de angústia extrema, aparece diante de seus olhos a imagem de um homem que luta contra a multidão para chegar até ela. Alguém lhe torce o braço atrás das costas. Ela não vê seu rosto, apenas seu corpo curvado. Meu Deus, gostaria de se lembrar um pouco mais exatamente dele, recordar seus traços, mas não consegue, sabe apenas que é o homem que a ama e isso é a única coisa que importa agora.”

    Portanto, apesar da nova língua, o grande autor tcheco prossegue com esses personagens que sempre alimentam um mal estar diante do mundo, quer seja o mundo totalitário de uma ditadura, quer seja o mundo da democracia, dominado pelo kitsch (quem não se lembra do trio Tomas-Teresa-Sabina, de A insustentável leveza do ser, os quais se sentiam desconfortáveis na ocupada Praga e na livre Zurique?). Ainda bem que o sucesso (pois ele teve sua época de “best seller”) não o privou da sua “identidade” como escritor, isto é, das suas obsessões. Seu texto continua fluindo leve enquanto trata das insustentáveis coisas que sustentam nossa vida diária com o peso da sua irrealidade.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de dezembro de 1998, quando da primeira edição de A Identidade, o primeiro dos livros de Kundera a ser publicado pela Companhia das Letras, e agora, em 2009, reeditado na série “Companhia de Bolso”; anteriormente, seus livros foram editados pela Nova Fronteira)

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A LENTIDÃO

a lentidão

É prudente deixar correr algum tempo sobre o lançamento de um livro de Milan Kundera. Como se exaltou o seu A Insustentável Leveza do Ser no momento da publicação no Brasil! Como Kundera foi alçado às alturas! O livro fez sucesso (merecido). E o vento virou. Começou a haver uma atitude de desprezo com relação ao autor tcheco. E depois um quase silêncio…

O leitor que atravessar essas brumas de avalon da má vontade e dos modismos descobrirá em A Lentidão, seu mais recente texto, uma deliciosa diatribe contra o mundo contemporâneo, a partir da reflexão sobre o valor da velocidade para nós, a partir da ida do casal Kundera a um castelo-hotel: “A velocidade é a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem”.

O pernoite no castelo contrasta nossos valores e nosso uso do tempo com os do século XVIII. Há um congresso de entomologistas, no qual interferem o exibicionismo político, o culto ao sucesso e o sentimentalismo que servem de pasto, todos eles, para a mídia: “Nossa estada no castelo coincidiu com a época em que, durante semanas, todos os dias, mostravam crianças de um país africano com um nome já esquecido (…como guardar todos esses nomes!), devastado pela guerra civil e pela fome”.

Fã do aspecto lúdico da literatura, aproximando-se muito, por causa disso, de Salman Rushdie, Kundera cria uma cadeia de qüiproquós sexuais envolvendo entomologistas, políticos, intelectuais e jornalistas, dentro do espírito daquela forma convencionalmente chamada de vaudeville (na verdade, quase sempre uma “comédia de erros”), bastante praticada no século XVIII, a qual já fora exercitada por ele num de seus dois melhores romances, A valsa dos adeuses (o outro, em minha opinião, é A brincadeira, contudo vale a pena ler seus outros trabalhos, são todos muito bons).

Novidade em A Lentidão é a estrutura, mais despojada do que a dos anteriores, em sua maioria escritos em sete partes e cheios de “leitmotivs” filosóficos. A aparentemente desconjuntada maneira de propor vários fios no começo do livro mostra-se intencional porque todos eles amarram-se no fim, quando um sedutor do século XX encontra um sedutor do século XVIII, encontro que condensa todos os temas.

Nesse exercício de leveza e maestria desagrada um pouco a inclusão do autor e de sua mulher como personagens, talvez justificada se pensarmos que Kundera não quer se isentar da sua diatribe. Ele quer mostrar o ridículo e o risível com compassividade e envolvimento, porém as passagens em que o casal aparece são as mais apagadas do romance.

Não importa. A Lentidão tem tantas coisas a mais que, assim como os livros anteriores, os defeitos pertencem a um conjunto poderoso e (por que não?) harmonioso como um texto de Voltaire: “Nada mais? Coisa alguma? Nada?  Numa súbita iluminação todo o seu passado aparece-lhe, não como uma aventura sublime, rica em acontecimentos dramáticos e sublimes, mas como a parte minúscula de uma barafunda de acontecimentos confusos que atravessaram o planeta em tamanha velocidade que é impossível distinguir seus traços, a tal ponto que talvez Berck tenha razão de tomá-lo por um húngaro ou um polonês, porque quem sabe se ele não é mesmo húngaro ou polonês, talvez turco, russo ou até mesmo uma criança agonizante na Somália?”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de dezembro de 1995)

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a ignorância 

                                                          A IGNORÂNCIA

Apesar das qualidades de A Lentidão e A Identidade, é com sua terceira novela escrita diretamente em francês, A Ignorância, que Milan Kundera reencontra plenamente o melhor da sua forma, agora que se encontra duplamente exilado, como cidadão e como escritor.

O exílio e as ambigüidades da nostalgia da pátria natal são temas de A Ignorância, um dos pontos altos da sua obra (e certamente sua maior realização desde A Insustentável leveza do ser, em 1983), onde ele executa com maestria a mágica de sobrepor ao enredo considerações filosóficas e existenciais, sem que o estilo perca o despojamento e a precisão que aperfeiçoou ao longo dos últimos anos, talvez em função da nova língua.

Mais uma vez, temos um mundo cheio de estranhos, isto é, os personagens experimentam desencontros e equívocos em situações que, para o sentimentalismo comum,  seriam claras e inequívocas: Irena e Josef, exilados tchecos que construíram suas vidas na França e na Dinamarca, são pressionados a “voltar à Pátria” após o fim do regime comunista, e percebem que nada mais têm a ver com as pessoas que reencontram, que suas vidas “verdadeiras” estão em outras partes.  Portanto, é um olhar estrangeiro que lançam sobre o país, assolado pela reconstrução (ou expropriação) capitalista, pela globalização e pela uniformização  crescente de tudo e de todos. Esse desconforto existencial é peculiar ao universo kunderiano e nos remete à emblemática Sabina de A insustentável leveza do ser, a qual entenderia perfeitamente o sentimento que se apossa de Josef ao deixar Irena no quarto de hotel, onde fizeram amor: “…ele nada sabia dela, mas uma coisa parecia clara: ela estava apaixonada por ele, pronta para ficar com ele, para deixar tudo, para recomeçar tudo… Ele tinha uma oportunidade, certamente a última, de ser útil, de ajudar alguém e, no meio daquela multidão de estrangeiros que povoa o planeta, encontrar uma irmã.”

Mais uma vez, entramos no planeta da inexperiência, onde tudo é fortuito e irrevogável e a soma dos anos acaba despida de consistência e identidade, traída pela memória ou pela nostalgia, ou por ambas. Carrega-se um “peso sem peso” no cômputo das coisas, por assim dizer. É esse o sentido de um belo diálogo de Irena com uma antiga amiga, Milada (ex-namoradinha de Josef; até tentou o suicídio por sua causa).Irena diz que casou para fugir da opressão representada pela mãe: “E, desde então, tudo estava decidido de uma vez por todas. Foi nesse momento que cometi um erro, um erro difícil de definir, imperceptível, mas que foi o ponto de partida de toda a minha vida e que nunca consegui reparar”. Milada acrescenta, explicando em parte o título do livro: “Um erro irreparável cometido na idade da ignorância. É a idade em que casamos, em que temos nosso primeiro filho, em que escolhemos nossa profissão. Um dia saberemos e compreenderemos muitas coisas, mas será tarde demais, pois toda a vida será a vida decidida numa época em que não sabíamos nada.”

Enfim, exilado na língua francesa, após alguns tateios e vacilos, com A Ignorância, Kundera reencontra seu tom, seu universo, seu laço secreto com a beleza, como Irena reencontra a “sua” Praga, que não é a Praga-clichê dos turistas e dos leitores e curiosos de Kafka: “É a essa Praga  que ela é afeiçoada, não aquela suntuosa, do centro… Sonhadora, ela caminha;  durante alguns segundos entrevê Paris,  que, pela primeira vez, lhe parece hostil: geometria fria das avenidas… e em nenhum lugar um único toque dessa intimidade amável, um só sopro desse idílio que ela respira aqui; aliás, durante todo seu exílio foi esta imagem que ela guardou como emblema do país perdido… ela se sentia feliz em Paris, mais do que aqui, um laço secreto de beleza a ligava só a Praga”.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em  21 de maio de 2002)

 

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4 Comentários »

  1. Pocha, amei isso que vc fez, que trabalho lindo… bem escrito… coisa boa de se ler e dificil de se achar, até mesmo pq vc demonstrar ter uma carga de leitura impar!!!

    Não sei se te dou parabéns, não acho adquado uma vez que não chego perto de vc no quesito leitura e maturidade no dominio do tema… mas enfim, é um prazer encontrar um trabalho assim na net!!!

    Comentário por Pandora — 28/09/2010 @ 23:31 | Responder

    • Valeu, Pandora, muito obrigado. Um grande abraço.

      Comentário por alfredomonte — 29/09/2010 @ 11:03 | Responder

  2. Olá! Bom dia!
    Vc leu A Brincadeira?

    Comentário por Luciana — 23/11/2015 @ 7:49 | Responder

    • Acho que ainda é o seu melhor romance, Luciana.

      Comentário por alfredomonte — 23/11/2015 @ 15:33 | Responder


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