MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/05/2011

O grotesco e o arabesco do politicamente correto: o assassinato dos dez negrinhos

  

(resenha publicada de forma mais condensada em A TRIBUNA de Santos, em 31 de maio de 2011)

             SAVE THE QUEEN

“Havia qualquer coisa de mágico numa ilha—a simples palavra despertava a fantasia. Perdia-se o contato com o mundo… uma ilha era um mundo à parte. Um mundo do qual nunca se regressará, talvez”.

“Se aquela fosse uma casa antiga, com o madeirame a estalar, desvãos escuros e paredes revestidas de pesados lambris, talvez se pudesse dizer que um ambiente lúgubre pesava sobre ela. Mas a construção era a essência da modernidade. Não havia recantos sombrios, nem a possibilidade de passagens secretas; era inundada de luz elétrica… tudo novo, limpo e brilhante. Não havia nada escondido ali. A casa não possuía atmosfera própria.

   De certo modo, isso era o mais assustador de tudo”.

 (Agatha Christie, O caso dos dez negrinhos)

    Há cerca de 35 anos, eu devia ter uns 11, descobri Agatha Christie através de três livros em formato de bolso (raro naquela época).  Por ordem de leitura, O caso dos dez negrinhos, O assassinato de Roger Ackroyd e Cinco porquinhos. Gosto muito de vários outros livros da “rainha do crime”, a qual, a meu ver, também é uma grande escritora (afinal, ainda não havia sido apresentado a Miss Marple), entretanto essas três leituras permaneceram míticas para mim.

     Por isso, fiquei muito feliz quando vi numa livraria a caixa da Globo, lançada agora, contendo os três, em edições caprichadas. É uma oportunidade também de comentar o crime que cometeram contra Agatha Christie (já houve uma edição de bolso deles, em 2009, mas só reli e comentei Cinco porquinhos).

    Há algumas semanas comentei os horrores infligidos a O retrato de Dorian Gray pela mais recente tradução brasileira (lançada pela Landmark)[1].O caso dos dez negrinhos (Ten little niggers, 1939, traduzido por Renato Marques) foi desfigurado de forma bem mais deletéria.

    Parece que ainda se pode delirar em torno da realeza inglesa e seus casamentos, sem ligar para a incongruência da sua existência no mundo pós-industrial, porém nada mais é sagrado com relação à integridade de um texto criado quando o Império Britânico ainda carregava com prumo o “fardo do homem branco” (é verdade que o prumo era mais acentuado á época de Dorian Gray do que à de Dez negrinhos).

   Pois bem, na caixa da editora Globo, junto com O assassinato de Roger  Ackroyd (1926)  & Cinco porquinhos (1943), não encontramos O caso dos dez negrinhos, e sim E não sobrou nenhum, o seu horrendo título novo e politicamente correto. Internacionalmente o livro agora é And then there were none  (que não é tão grotesco e entregador do final, admito, mesmo assim é um crime de lesa majestade).

    Quem teve essa “brilhante” idéia? Se Agatha Christie decidisse mudar seu livro, um dos muitos em que ela se baseou em versos e rimas infantis, ela o teria feito mormente o peso do termo nigger nos EUA, que obrigou a que se lançasse o romance lá com outro título, já em plena vida da autora (que transitou por culturas bastante diferentes e viu o espetáculo de muitas raças fora do padrão britânico, esposa de arqueólogo que era). Se ela não o fez, é porque não queria, era porque tinha arraigado um modo de ver marcado pela consciência de superioridade, apesar de toda a sua lucidez e faro para a indignidade humana, e é um anacronismo (para não dizer um insulto à inteligência) fazer tal saneamento dos preconceitos e hábitos racistas das outras épocas: é preciso esclarecer o público, deixar claro o contexto, e não varrer a sujeira para debaixo do tapete, com medidas profiláticas hipócritas e invasivas.

   Eu tinha a esperança de que não tivessem mexido no texto em si. Ledo engano. A Ilha do Negro para onde são atraídos dez criminosos que escaparam da lei para ser julgados por um “vingador” tornou-se a Ilha do Soldado, e os dez negrinhos dos versos  (cada qual morrendo de uma maneira que é reproduzida durante a engenhosa e perfeita estrutura dramática do romance[2]) tornaram-se dez soldadinhos!!?? O leitor pode argumentar: que importância tem, negrinhos ou soldadinhos? Tem, sim, em primeiro lugar porque modifica indevidamente o texto de um escritor, sem a permissão dele; em segundo lugar, e sobretudo, porque o livro de Agatha Christie se transformou num ícone do romance de mistério, é uma obra paradigmática, mais ainda se pensarmos que nela  se preserva a mentalidade de uma época para a conhecermos e estudá-la melhor. Relendo-o agora, aos 46 anos, fiquei tão empolgado com a trama e sua forma narrativa quanto  há 35 anos.

    Curiosamente, o estúpido saneamento politicamente correto não se deu ao trabalho de uma inspeção completa no livro: os negros foram salvos do imaginário racista de dame Christie, mas não os judeus: várias vezes, um personagem é referido como “o judeuzinho” sujo ou tratante.  A tradução de Renato Marques até insiste mais no ponto do que a de Leonel Vallandro. Algum dia vão argumentar que isso não é possível pós-Holocausto.

   Não deveria haver uma intervenção na questão trabalhista e de gênero? Em plena crise na ilha, acarretada pelos assassinatos em série, o mordomo Rogers, cuja esposa é uma das primeiras vítimas, e que foi contratado sob falso pretexto, continua a exercer suas funções sem maiores protestos, como um serviçal que honra o sistema de classes britânico, até ele mesmo ser morto com uma machadada na cabeça (talvez no futuro, se possa reescrever o livro,  com Rogers fazendo greve e se recusando a servir esses convidados folgados, no meio dos quais se oculta um psicopata); eliminado o mordomo, são as mulheres (Vera Claythorne e Miss Brent) que vão para a cozinha! Essa Agatha Christie é mesmo incorrigível, é melhor queimar essa  porcaria! E Deus (“save the queen”) nos livre se algum desconstrucionista descobrir um sub-texto gay no texto![3]

   Não importa aos analfabetos do politicamente correto que ela coloque em cenas pessoas brancas (há inclusive um playboy que é deus nórdico e ariano, sem o menor senso de responsabilidade ética ou moral, que está entre os “julgados” na ilha) respeitáveis—um general, um médico famoso, um juiz e uma solteirona religiosa— e  acima de suspeita na berlinda (e tendo de se misturar com tipos sociais inferiores, como uma professorinha pretendendo ser secretária, ou mais duvidosos e mequetrefes, como um ex-policial corrupto e um zé ninguém como Philip Lombard) por seus crimes impunes e que o aplicador da justiça seja um psicopata assustador, com um senso de ética que se funda na crueldade e na repressão (aquele tipo de apego ao dever e de contenção dos impulsos que associamos à era vitoriana).

   Não, o que importa é o proselitismo fácil. E quando os defensores dos direitos animais começarem a protestar contra Cinco porquinhos?   Quanto a mim, recomendo ao leitor o que eu farei doravante: esquecer que existe esse infame E não sobrou nenhum e procurar em sebos a tradução de Leonel Vallandro para o bom e velho Caso dos dez negrinhos.

    E agora, será que o perturbador O negro, de Georges Simenon, terá o mesmo destino?

A NOVA TRADUÇÃO

   É o caso de indagar a respeito da qualidade da tradução de Renato Marques, embora inapelavelmente comprometida pelos motivos apresentados acima. No geral, ela é bem aceitável e tem até algumas soluções criativas, mas na comparação com a de Leonel Vallandro, há vários trechos insatisfatórios. Alguns exemplos:

1)  Há um erro de revisão na pág. 21 (“Armstrong devia ter dado com a língua nos dentes”; Armstrong é um dos “dez negrinhos”, quem deu com a língua nos dentes foi o “rapazinho execrável” Armitage);

2)  Na  pág. 35, “Vera deu uma resposta pouco original”, melhor seria “Vera deu uma resposta convencional”;

3)  Na pág. 51, nas rimas dos “dez soldadinhos”, duas soluções horrorosas:

“Cinco soldadinhos vão ao tribunal, ver julgar o fato” (a solução de Vallandro é bárbara: “Cinco negrinhos no foro, a tomar os ares” ainda mais porque ele caprichou na solução numérica da rima: “Um ali foi julgado, e então ficam dois pares”), e “Três soldadinhos passeando no zoo, vendo leões e bois”—bois no zôo? Isso é que é nonsense. Em Vallandro: “Três negrinhos passeando no zôo. E depois?”;

4)  Na pág. 128, o tempo começa a enfarruscar e Blore, o ex-policial exclama: “Rajadas de vento, hem?”, quando o melhor seria: “Borrasca, hem?” Se ele só exclamasse “Que vento, hem?”, ainda vá, mas “rajadas de vento”, quem fala assim?;

5)  Na página seguinte, o dr. Armstromg “pigarreou com importância”; não seria melhor “pigarreou com afetação”? (Vallandro apenas nos diz que ele “pigarreou”);

6)   Na pag. 144, “perdeu o peso da preocupação”, referindo à expressão de Miss Brent, o melhor não seria “desanuviou-se”?;

7)  Na pág. 162, “O vento soprava, refrescando a paisagem” me parece uma construção meio infeliz: a paisagem é refrescada pelo vento?:

8)  Na página seguinte, “Fazendo um beicinho, Philip Lombard disse”; nada mais inimaginável do que Philip Lombard fazer beicinho. Vallandro: “Com os lábios repuxados, mostrando os dentes”, o que é bem diferente, convenhamos;

9)  Na pág. 174, “Deve haver um espaço embaixo do telhado- para cisternas, reservatórios de água etc”. Cisternas debaixo do telhado?!!;

10)             Na pág. 211, quando se diz que o juiz Wargrave vai pronunciar o “Relatório dos Autos do Processo” não seria mais simples e objetivo “sumário”  ou mesmo “súmula”?;

11)             Na pág. 237, “seus lábios se retraíram dos dentes”, solução horrorosa e descuidada para “seus lábios arregaçaram-se” (Philip Lombard tem um sorriso de lobo);

12)             Na pág. 240, aparece uma “cafeteira com torneira”, alguém fala assim?;

13)             Na pág. 252, miss Brent tira o último ovo da “gordura” (não seria do óleo?);

14)             Na página seguinte, uma passagem estranha: “Algumas pessoas subestimavam tanto a morte e davam tão pouco valor à vida que chegavam a tirar a própria vida”; em Vallandro: “Algumas pessoas davam tão pouco valor à vida que chegavam a matar-se”;

15)             Na pág. 260, “O rosto do dr. Armstrong corou como fogo”, não seria melhor simplesmente “ficou vermelho”?;

16)             Na pág. 264, o rosto de miss Brent, “coberto de sangue”, não, não, não, “congestionado” no máximo (morreu de asfixia), “os olhos arregalados,com uma expressão apalermada” (não seria mais expressivo e proverbial “com os olhos saltando das órbitas”?);

17)             Outro trecho desajeitado, desta vez na pág. 273, “A perturbação emocional fez com que uma mancha branca se alastrasse pelas narinas de Philip Lombard”, quando seria mais simples dizer que as narinas dele ficaram brancas com a perturbação (o que já é meio retórico, convenhamos);

18)             Na pág. 354, Fred Narracott diz uma coisa “iluminadora”, quer dizer, “esclarecedora”.


[1] Cf. o post  O retrato desfigurado

[2] Como se sabe, ela foi muito bem-sucedida no teatro, e independentemente dessa circunstância, seus romances sempre se valeram do teatro como pedra-de-toque e para sua carpintaria e seus efeitos. É curioso que ainda assim haja alguns pequenos erros, como o que envolve o revólver de Philip Lombard. O juiz Wargrave  o afana, finge que foi morto com ele, e depois o devolve à gaveta do criado-mudo de Lombard (que é experiente nessas coisas), o qual não percebe que nem foi disparado?

   Afora a teatralidade perceptível, é notável o clima psicológico do livro, o uso da “consciência culpada” (especialmente nos casos do general MacArthur e de Vera Claythorne, o que torna o clímax do romance sensacional, dos pensamentos dos personagens, quando estão juntos uns dos outros e consigo próprios, que conferem ao texto uma modernidade permanente.

[3] E há preconceito contra os idosos também. Alguém pergunta por que o juiz Wargrave não está por perto (quando Vera, na casa às escuras, é roçada por uma alga pendurada no gancho que há no seu quarto, primeiro indício do seu destino, e faz um escândalo que atrai a todos)  e dizem que ele não chegou ainda, afinal é um velho e fica se arrastando pelos cantos.

Blog no WordPress.com.