MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

04/04/2014

O “ravissement” durasiano: um léxico próprio

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de março de 1996)

A morte de Marguerite Duras no dia 3 deixa uma sensação de melancolia e vácuo. Parece que os escritores maiores estão desaparecendo e que seus lugares não serão ocupados. O que é um escritor maior? É aquele com uma visão de mundo e estilo tão pessoais que criam até um léxico próprio, que contamina a análise da sua obra.

No caso de Duras, nascida em 1914 onde hoje é o Vietnã e então era a Conchichina, essa visão de mundo, estilo e léxico próprios explodiram em 1958 (embora ela tenha escrito muito antes, e até livros da qualidade de O marinheiro de Gibraltar e  Os pequenos cavalos de Tarquínia, publicados  aqui pela editora Guanabara), comModerato Cantabile(José Olympio). Ao longo do texto, Anne Desbaresdes, mulher que cumpre como autômato todas as obrigações domésticas, mantém com Chauvin uma relação que é vivida na corda bamba do verbal, no perigo das palavras, fazendo-os “viver”  a relação de outro casal, na qual explode a carga de violência que paira entre eles e ameaça o cotidiano alienante.

Nessa mesma época, é dela a mais original das história de amor, as mais belas e seminais palavras já escritas para um filme: Hiroshima, meu amor, de Alain Resnais, uma das quatro ou cinco maiores realizações cinematográficas, principalmente porque não se prende ao conflito amoroso, tão opaco, mas sim à continuidade desse amor, à sua memória, umas vezes perdida, outras recapturada, esquecimento que também assombra a memória coletiva da dor da guerra, umas vezes uma coisa tão premente, outras algo oco e inócuo em evitar os mesmos erros.

O autismo passional dessas duas mulheres, Anne e a do filme, prepara o terreno para a obra-prima de Duras, o extraordinário Le ravissement de Lol V. Stein (1964), algo como O arrebatamento de Lol V. Stein, tão mal traduzido por aqui como O deslumbramento (Nova Fronteira). Esse arrebatamento, esse rapto (ou mesmo repto) de Lol do centro da sua própria vida, esse seu êxtase, é um momento, vivido num salão de baile, que torna todo o resto sem sentido, e faz com que ela cumpra o destino de um autômato à espreita daquela sensação de plenitude que a sequestrou do ramerrão.

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Assim, após a “louquinha” (como ela a chama em A vida material, lançado aqui pela editora Globo), a obra de Duras foi se realizando em plenitude, difícil para o público, enveredando pelo teatro e pelo cinema, intrincada, e com livros como O vice-cônsul (Francisco Alves), de 1965, depois reelaborado num inusitado e desafiador filme pela própria autora (India Song, 1975) e nos quais reaparecia a mesma e fascinante Anne-Marie Stretter responsável pelo “ravissement” de Lol; ou A doença da morte (ed. Taurus), de 1983: Ela diz que ela espera nunca saber nada do modo como você sabe, nada no mundo. Ela diz: Eu não queria nunca saber nada do modo como você sabe, com essa certeza saída da morte, essa monotonia irremediável, igual a si mesma em cada dia da sua vida, em cada noite, com essa função mortal da falta de amar.”, e ela tornando-se um dos vértices do grande triângulo feminino da literatura francesa deste século, ao lado de Simone de Beauvoir e de Marguerite Yourcenar (curiosamente, as três se desprezavam).

Em 1984, veio o sucesso popular com O amante (Nova Fronteira). Esse livro é um daqueles raros milagres. Tanta simplicidade, ao mesmo tempo tanta coisa: a memória de um amor iniciático, um ajuste de contas com a família, uma constatação da velhice e da destruição causada pelo tempo, uma reescritura da própria obra e um reencontro com os fantasmas pessoais (não é à toa que aparece o carro negro recorrente em seus textos), a tentativa de fixar um momento de ravissement, momento fotográfico que engoliria todos os outros e apagaria o tempo

Duras perdeu-se um pouco após O amante (transformado, aliás, num filme muito mixuruca), escreveu demais, coisas esgarçadas e repetitivas. Amiúde com lampejos de genialidade (basta lembrar de algumas passagens de A vida material, por exemplo). A força da sua palavra, mesmo no auge do narcisismo, sempre teve uma autoridade que a pobre literatura francesa atual desconhece.

E é com o melhor dessa palavra, com um dos grandes momentos de Le ravissement de Lol V. Stein (na tradução de Ana Maria Falcão), que este artigo encerra sua despedida de um dos maiores escritores que já existiram: Gosto de acreditar que se Lol está silenciosa na vida é porque acreditou, no espaço de um relâmpago, que essa palavra podia existir. Na falta da sua existência, ela se cala. Teria sido uma palavra-ausência, uma palavra buraco… onde todas as outras palavras teriam sido enterradas. Não seria possível pronunciá-la, mas seria possível fazê-la ressoar. Imensa, sem fim, um gongo vazio, teria retido os que queriam partir, os teria convencido do impossível, os teria ensurdecido a qualquer outro vocábulo que não ele mesmo, de uma só vez os teria nomeado, o futuro e o instante. Faltando, essa palavra estraga todas as outras, contaminando-as…”

Marguerite-Duras

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