MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

01/05/2013

“Madrid, Paris, Berlim, S.Petersburgo, o mundo”: Cesário Verde

Cesario-Verdeimage0-6

I

O dr. Viriato, personagem de algumas histórias de Autran Dourado, adorava recitar o alexandrino (verso de doze sílabas) “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! de O sentimento dum ocidental, obra-prima de Cesário Verde que abre e fecha com dois dos mais belos quartetos da língua portuguesa, dignos antecessores do melhor Fernando Pessoa:

Nas nossas ruas, ao anoitecer,

         Há tal soturnidade, há tal melancolia,

         Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

         Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

                                   (…)

         E, enorme, nesta massa irregular

         De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,

         A Dor humana busca os amplos horizontes,

         E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

O leitor brasileiro agora tem a oportunidade de conhecer toda a obra poética e um pouco da correspondência de um poeta português do século XIX  (morto aos 31 anos, em 1886) tão fascinante quanto Antero de Quental, graças a Ricardo Daunt, que organizou a Obra poética integral de Cesário Verde, publicada pela editora Landy, tirando-o do quase total desconhecimento que já o angustiava em vida: “Ah! Quanto eu ia indisposto contra tudo e contra todos! Uma poesia minha, recente…não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação! Ninguém escreveu, ninguém falou, nem num noticiário, nem numa conversa comigo; ninguém disse bem, ninguém disse mal!(… )literariamente parece que Cesário Verde não existe.”

Bem ao contrário, como Cesário Verde existe, com seu desejo absurdo de sofrer! Ele praticamente introduz a modernidade na poesia portuguesa, com seus finais jocosos, com sua incorporação do espaço urbano, da paisagem da cidade grande e elementos típicos (ele não faz uma poesia “ao gás” que fazia a iluminação pública naquele momento?). Em Proh pudor! comenta o furor cultivado há quase um mês, “modernamente”, pela amada:

 

         “Todas as noites ela, ah! sordidez!

         Descalçava-me as botas, os coturnos,

         E fazia-me cócegas aos pés…”

Esse lirismo insólito, que depois faria praça na poesia do século seguinte, se alimenta do anti-clericalismo (“Eu posso amar-te como o Dante amou/ Seguir-te sempre como a luz ao raio/ Mas ir, contigo, à Igreja, isso não vou / Lá nessa é que eu não caio!”) e do anti-militarismo (eu, que detesto a farda), atacando, bem dentro da tradição de Baudelaire, o leitor: “muito embora tu, burguês, não me entendas”.

Autor de versos perfeitos, de imagens líricas poderosas ainda hoje, ele que afirma, em suas cartas, primeiro do que tudo está a vida”, conclui um poema (Cinismos) no qual deseja falar lugubremente do seu amor enorme e massacrado, expor seu peito descarnado, abrir o seu íntimo sacrário, mostrar os pegos abismais da sua vida, até fazer a amada chorar, com este verso delicioso e moleque: “E eu hei-de, então, soltar uma risada…”

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em dois de dezembro de 2006)

o livro de Cesario Verde

cesario-verde-12

                                          II

“Eu antes que encaneçam os meus bigodes

Ao meu mister de amar-te hei de pôr meta,

         O coração mo diz —feroz profeta

         Que anões faz dos colossos lá de Rodes.”

Na seção passada já enalteci  a importância de  Obra poética integral de Cesário Verde devido à modernidade que esse grande poeta trouxe ao lirismo lusitano, de um modo similar a Puchkin (que causou celeuma e impacto pelo léxico inusitado que introduziu em sua poesia), na Rússia, e, guardadas as devidas proporções, a Baudelaire, na França. Nós, brasileiros, acossados até hoje pela herança de uma dicção poética bombástica e piegas, somos talvez os maiores devedores do autor dos versos acima (na verdade, a 2a. estrofe de  A forca, poema inaugural da coletânea organizada por Ricardo Daunt), o qual desbravou a vereda seguida décadas mais tarde, e já em outro século, por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade: uma espécie de regurgitação espasmódica e sardônica do pathos sentimental corriqueiro:

“Eu temo muito o mar, o mar enorme,

          Solene, enraivecido, turbulento,

         Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;

         O mar sublime, o mar que nunca dorme.

                            (…)

         E ouvindo muito ao perto o seu bramar,

         Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,

         Escarro, com desdém, no grande mar! (Heroísmos)

Devedor confesso de João de Deus (a quem é dirigido o poema Cadências tristes), mas um apaixonado por Paris e pela civilização francesa, Verde certamente fascinou-se com o vasto panorama lírico desencadeado pelas Flores do mal baudelairianas (e ao autor delas aparece explicitamente em Frígida), que instituíram definitivamente a poesia do espaço citadino moderno, o sumo poético a ser extraído do corriqueiro, da paisagem urbana do dia a dia e dos seus tipos humanos: “Sentado à mesa dum café devasso/ Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura/ Nesta Babel tão velha e corruptora/ Tive tenções de oferecer-te o braço.” É um trecho de A débil, cuja protagonista se vê envolvida pela massa: Mas se a atropela o povo turbulento/ Se fosse, por acaso, ali pisada / De repente, paraste embaraçada / Ao pé dum numeroso ajuntamento.”

Talvez em nenhum outro momento, a influência de Baudelaire (e o aproveitamento brilhante que dela faz Cesário Verde, inclusive pela perfeição do seu verso e seu ritmo) apareça de forma tão seminal quanto no extraordinário Num bairro moderno, onde a banalidade das situações casa-se, em mágicos quintetos, com uma visão audaciosa e transfiguradora, que remonta às figuras de Arcimboldo, ao montar um corpo humano com as  ofertas de uma vendedora, uma “regateira”: “Bóiam aromas, fumos de cozinha/ Com o cabaz às costas, e vergando/ Sobem padeiros, claros de farinha / E às portas, uma ou outra campainha/ Toca, frenética, de vez em quando. // E eu recompunha, por anatomia/ Um novo corpo orgânico, aos bocados/ Achava os tons e as formas. Descobria / Uma cabeça numa melancia / E nuns repolhos seios injetados // (…) Há colos, ombros, bocas, um semblante / Nas posições de certos frutos. E entre / As hortaliças, tímido, fragrante / Como dalguém que tudo aquilo jante / Surge um melão, que me lembrou um ventre // E, como um feto, enfim, que se dilate/ Vi nos legumes carnes tentadoras / Sangue na ginja vívida, escarlate/ Bons corações pulsando no tomate / E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.”

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em nove de dezembro de 2006)

O_livro_cesario_verde2

Blog no WordPress.com.