(uma versão do texto abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de junho de 2014)
(uma versão do texto abaixo foi publicada no “Letras in.verso e re.verso”,
VER http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/06/copa-do-mundo-de-literatura.html)
Infelizmente, não é possível estabelecer uma relação de igualdade entre as produções literárias dos países participantes da Copa por uma razão muito simples: a lacuna nas traduções. Nenhum escritor de Camarões (Grupo A), da Costa do Marfim (C), sequer da Costa Rica (D), ou do Equador e Honduras (o que desfalca muito o grupo E), e olhe que são países do nosso continente, falantes de uma língua-irmã. E por que será que nunca pude ler nenhum autor contemporâneo do Irã [1] (F), em versão brasileira, fato inexplicável: países em ebulição social e política invariavelmente apresentam vigor literário (caso, também, da Bósnia). No G, estou em falta com Gana; no H, com a Coréia do Sul (no entanto, é bom lembrar que um dos favoritos ao Nobel nos últimos anos é o poeta Ko Un). Ao todo, nove países que entram em campo em total desvantagem. Chamando a atenção para esse grave e lastimável fato, abaixo vai uma dica literária (com o perdão dos comentários forçosamente genéricos) dos demais países:
GRUPO A
Brasil– Um dos nossos grandes veteranos da ficção, Salim Miguel, comemora 90 anos em 2014. Ele voltou a produzir romances em 1984, as manifestações pelas “Diretas Já” parecem ter desentravado A voz submersa (Record), narrativa febril, que cresce como uma enchente, aproveitando um dos crimes da época da ditadura como gancho, e que acabou tornando-se o primeiro título de sua prolífica fase madura (a escolha de alguém nascido no Líbano também tem a ver com a vocação do nosso país de receber imigrantes, tão malbaratada às vezes);
México– Este é o ano do centenário do múltiplo Octavio Paz. O leitor brasileiro pode apreciar a nova edição (CosacNaify) de uma das obras principais do Nobel 1990: O labirinto da solidão (1950), reflexão fundamental que está para o seu país como Casa grande e senzala para o nosso;
Croácia- Na complicada geopolítica da ex-Iugoslávia, o croata Ivo Andrić, Nobel 1961 (também escreveu em sérvio), se destaca. Uma boa amostra da sua arte de contar histórias (e que o coloca na linhagem de um Tolstói), oferecendo uma paisagem humana labiríntica, com o conflito étnico sempre aflorando, é a coletânea Café Titanic (Globo).
GRUPO B:
Holanda– Um romance de grande transparência, nem por isso deixando de ser crítico e inteligente (é como se juntasse Deus da carnificina com Precisamos falar sobre Kevin), e que vem fazendo um inesperado sucesso, é O jantar (Intrínseca), de Herman Koch, cuja narrativa acompanha justamente as etapas de um encontro social entre irmãos (o aperitivo, a entrada, o prato principal, a sobremesa) num restaurante de reservas disputadíssimas para mostrar a melindrosa questão da responsabilidade ética sobre a próxima geração;
Chile– Um dos melhores livros do século até agora, Formas de voltar para casa(CosacNaify) mostra que Alejandro Zambra atingiu a maturidade na sua arte: se nos livros anteriores, ele descambava, apesar da qualidade do texto, para uma às vezes cansativa metalinguagem, aqui ele apresenta contrastes entre a geração dos seus pais e a sua de uma forma magistral, fazendo a discussão política penetrar nos meandros mais inesperados, até nos terremotos que comumente abalam a nação chilena;
Austrália– O país continental tem seu Nobel (Patrick White, em 1973, contudo esse genial romancista mal foi traduzido por aqui[2]). Em compensação, Colleen McCullough ficou famosa como best seller, boa parte da crítica torce o nariz para ela. Nem por isso é menos verdade que Pássaros feridos (1977) é poderoso (até nos aspectos folhetinescos) ou que sua série Senhores de Roma seja notável. O romance que a inicia (em 1990), Primeiro Homem de Roma (Bertrand), é um dos melhores romances históricos já escritos;
Espanha– Um dos escritores marcantes da atualidade é Javier Cercas, cujos livros são mesclas fascinantes de reconstituições histórico-jornalísticas e de reflexão sobre sua elaboração narrativa. São livros “fronteiriços”, e uma boa síntese desse movimento pendular é As leis da fronteira (Biblioteca Azul), que mistura a passagem da adolescência para o mundo adulto (adentrando o submundo e a a delinquência) com o período de transição do franquismo para a democracia;
GRUPO C
Colômbia– país que perdeu em curto intervalo de tempo seus dois maiores escritores. Um já é sobejamente reconhecido (García Márquez); o outro, merecia mais notoriedade: Alvaro Mutis. Que tal começar com o maravilhoso A neve do almirante(Record), de 1986, no qual, como já se disse, o protagonista (um marinheiro) “viaja pela paisagem humana”?;
Japão- Uma autora atual talentosa, num país de riquíssima literatura, é Hiromi Kawakami. Um exemplo é Quinquilharias Nakano (Estação Liberdade), de 2005, onde vemos claramente que as relações de trabalho muitas vezes impõe a trajetória dos nossos afetos, criando ligações, lealdades e pequenas intrigas, pois formam o horizonte da maior parte das vidas humanas;
Grécia- O leitor brasileiro agora tem a sorte de ter as obras do fantástico Nikos Kazantzakis traduzidas diretamente do idioma original (pela editora Grua): assim, além da nova versão do livro que o tornou mundialmente conhecido (mais em função da sua fantástica versão cinematográfica), Vida e proezas de Alexis Zorba, posso recomendar enfaticamente o monumental Capitão Miháelis, com sua Creta sob a opressão turca.
GRUPO D
Itália- Candidato eterno ao Nobel, Claudio Magris é outro caso de escritor plural e quase inclassificável. Um de seus títulos mais lindos é Alfabetos (traduzido pela editora da UFPR), de 2008, em que ele mistura crítica literária, ensaística e memorialismo, ressaltando sua formação de leitor. E que leitor! Vale por todos os cursos de letras que se possa pensar;
Inglaterra- A pátria em que melhor floresceu a ficção policial tem uma genial representante neste século XXI: Kate Atkinson, com sua série em que Jackson Brodie, relutante detetive particular enfrenta tramas intrincadas que brincam com o destino e a tragédia. A Fundamento lançou recentemente o perturbador Saí cedo, levei meu cachorro (2010), quarta aventura de Brodie[3];
Uruguai- Além de ser um gênio da literatura (é o Samuel Beckett latino-americano), Juan Carlos Onetti tem uma de suas obras-primas chegando ao meio-século este ano: Junta-Cadáveres (Planeta)—ótima, embora desassossegante introdução ao anti-universo recorrente de Santa María e seu principal personagem, Larsen (que aparece em vários outros textos);
GRUPO E
Suíça- Que escritor pode melhor representar a estranha nação que junta a ideia de civilização com uma espécie de cinismo institucionalizado do que Friedrich Dürrenmatt, com suas peças (como A visita da velha senhora) e narrativas (como Justiça) cujo eixo sempre perfaz uma parábola jurídica implacável ? O juiz e seu carrasco (L&PM), de 1950, é um jogo de gato e rato entre policiais e um poderoso criminoso. No final saímos com a impressão de que todos são (todos somos) culpados;
França- Há 50 anos, Sartre ganhava (e recusava) o Nobel. Em 2014, a L&PM lança a derradeira, inacabada e avassaladora obra do último dos mestres franceses do pensamento, da literatura e da vida: O idiota da família (1972), estudo sobre Flaubert que, no fundo, é a tentativa monstruosa de compreender (e explicar) até o último limite do conhecimento a vida de um indivíduo, numa tentativa de síntese do existencialismo e da psicanálise, sob a égide totalizante do marxismo;
GRUPO F
Argentina– Dois dos maiores escritores argentinos (e universais, e aqui não há como não se render aos hermanos) têm seu centenário comemorado em 2014: Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares. No ano passado, um dos títulos cortazarianos centrais, O jogo da amarelinha ganhou nova edição (Civilização Brasileira), comemorativa do seu cinquentenário, e a CosacNaify vem lançando títulos do parceiro de Borges, como suas requintadas e ambíguas histórias de amor e amizade conspiratórios (com toques sutis de fantástico): Histórias fantásticas. Ambos são autores para se levar para a proverbial ilha deserta;
Nigéria- Precisávamos de mais títulos traduzidos do Nobel (1986) Wole Soyinka (há O leão e a joia, bela peça teatral). Mas pelo menos agora já temos traduções dos geniais romances de Chinua Achebe, como O mundo se despedaça[4] (Companhia das Letras), de 1958, com sua caracterização estupenda do conflito de gerações, mentalidades, etnias, que descortinam os trágicos processos históricos que assolaram muitos dos países do continente africano;
GRUPO G
Alemanha-Quando se lê Pontos de vista de um palhaço (Estação Liberdade), de 1963, a impressão é de que Heinrich Böll (Nobel 1972) é um escritor de agora, um jovem que poderia estar participando de manifestações, tal a garra, a verve, a raiva, a energia e a atualidade da narrativa. Poderia ser um texto do Ricardo Lísias, do Alexandre Dal Farra. O protagonista, palhaço de profissão, se desavém com todos à sua volta, mas não com o leitor. Uma obra-prima;
Estados Unidos– Este ano temos o centenário do grande escritor negro Ralph Ellison, e sua maior obra, um romance que mostra a condição da raça negra na sociedade norte-americana de forma definitiva, e ainda assim, é um livro fortemente experimental, livre de amarras, ganhou nova edição brasileira pela José Olympio: O homem invisível, de 1952.
Portugal- A atual safra de escritores portugueses talvez seja a mais pujante do cenário atual. Ainda assim, reservo este espaço para comemorar os 50 anos de um dos maiores livros da originalíssima Agustina Bessa-Luís, autora que não se parece com nenhum outro escritor, sempre criando mundos históricos muito particulares: Os quatro rios[5], primeiro volume da trilogia As relações humanas;
GRUPO H
Argélia- Será impertinência destacar um autor que nasceu no país, mas oriundo dos povos colonizadores? Como, contudo, em 2013 tivemos o centenário de Albert Camus, não custa insistir que o Nobel 1957 escreveu alguns dos livros essenciais do século passado. A Hedra acaba de publicar seus preciosíssimos Cadernos em três volumes: “Esperança do Mundo” (1935-37), “A desmedida na medida” (1937-39), “A guerra começou, onde está a guerra?” (1939-42), que antecedem sua vida de celebridade;
Bélgica- Como deixar de destacar um dos escritores que melhor aclimataram tramas mitológicas numa prosa moderna (e muito marcada pela psicanálise, mas sem ser subserviente a ela): Henry Bauchau, autor de Édipo na estrada (Lacerda)? É um on the road no inconsciente;
Rússia- Quando será que vão esquecer de Alejander Soljenítsin (Nobel 1970) como dissidente, o homem que denunciou os gulags soviéticos, e começar a valorizar sua obra literária[6], seu fôlego como romancista (Agosto 1914 é um grande momento do gênero) e o fato de ter escrito uma das novelas mais perfeitas de todos os tempos, Um dia na vida de Ivan Denissovitch (Siciliano)?
NOTAS
[1] Pensei em indicar Azar Nafisi e seu Lendo Lolita em Teerã, o que me fez chegar à seguinte (e desalentadora) conclusão: sem tirar os méritos inegáveis da autora, e o cerceamento de sua liberdade de professora, ela pelo menos tem as obras ocidentais e não-muçulmanas à sua disposição para ler e discutir; do nosso lado, não temos nem essa oportunidade.
[2] Leiam, por favor, Á arvore do homem e Voss.
[3] É bom ressaltar que, além de seus títulos no gênero, Atkinson tem outros romances, como por exemplo sua brilhante estreia com Por trás das imagens do museu, para mim a melhor história de gerações familiares (essa linha tão batida) junto com Cemitério de pianos, de José Luís Peixoto, dos últimos 25 anos.
[4] Things fall apart, no original.
[5] Este é o único título das minhas dicas não publicado por editora brasileira.
[6] Milan Kundera (a quem não deixo de admirar muitíssimo, apesar dessa blague) sintetizou bem o enterro simbólico de Soljenítsin no campo literário ao enunciar que ele “era mais um gigante entre os homens do que entre os escritores”.
A isso eu prefiro responder com uma citação de Camus, dos seus Cadernos justamente: “As obras de arte nunca bastarão. A arte não é tudo para mim. Que ao menos ela seja um meio”.