MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

14/06/2014

Destaque do Blog: ZAZIE NO METRÔ, de Raymond Queneau

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https://armonte.wordpress.com/2014/06/14/jovialidade-e-irreverencia-na-literatura-francesa-zazie-aos-50/

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de julho de 2009)

Ainda hoje, em nossos tempos impregnados pela cultura teen, dá para sentir um gostinho do impacto causado em 1959 por Zazie dans le métro [Zazie no metrô, em inspirada tradução de Paulo Werneck], que trazia não só uma adolescente como heroína (despida de quaisquer atributos convencionais da ficção até então) como também incorporava a linguagem das ruas, as gírias e desbocamentos do coloquialismo, sabotando com isso a tão cultuada “literatura francesa”, com sua elegância marmórea, suas frases polidas (em todos os sentidos da palavra), seu classicismo aparentemente inato (como se não tivesse existido Rabelais).

Zazie chega a Paris e quer andar de metrô. Não andará, e essa será uma das muitas expectativas, dela, de outros personagens e do leitor, contrariadas pelo irreverente e molecão autor de 56 anos: Raymond Queneau (1903-1976), um dos mais criativos membros do OuLiPo (Oficina de Literatura Potencial), grupo vanguardista, celebrizado devido às diversas experiências com a linguagem, e ao qual pertenceu também Italo Calvino, talvez o único a escrever obras-primas tão joviais quanto Zazie (é o caso, por exemplo, de Se um viajante numa noite de inverno).

Zazie chega a Paris e fica sob a guarda do “tio” Gabriel. Logo some, aventurando-se pelas ruas, envolvendo-se com um suposto pedófilo, a quem rouba uma calça jeans (ortograficamente deformada para “djins”, já que uma das subversões do texto é a transliteração fonética do que dizem e pensam os personagens). E assim acaba descobrindo que Gabriel, que dizia ser vigia noturno, na verdade se apresenta numa boate gay como Gabrielle. O pedófilo, que podia ser um ator característico e também um policial (e nessa função assedia a mulher de Gabriel, Marceline), reaparece na narrativa como guarda de trânsito (há uma confusão em Paris devido à greve do metrô), depois como chefe das forças da lei que tentam impor ordem (daquela forma que conhecemos bem) ao caos instaurado por uma noitada que arrasta turistas incautos, uma senhora de bem, Gabriel, seus vizinhos (incluindo o papagaio Laverdure que repete ao longo de todo o romance: “Falar, falar, você só sabe fazer isso”) e, claro, Zazie.

Zazie cai na noite, para espanto do politicamente correto. Temos essa duvidosa capacidade protéica dos agentes da lei de se transformarem em seu contrário, e temos uma cena em que uma passante (a senhora de bem) admoesta a menina por maltratar um adulto. Temos esse tio que faz show numa boate de “tias” (é o termo utilizado no livro, não me culpem) e essa tia (que nunca é mencionada dessa forma) Marceline, a qual, no final, aparece transformada em Marcel, para “salvar” Zazie do mafuá armado durante a noitada e entregá-la para a mais que duvidosa segurança dos braços da legítima mãe, que ouve da filha como súmula da sua experiência em Paris: “Envelheci”.

    Zazie no metrô flerta o tempo todo com o desenho animado, com o cinema pastelão, com o nonsense e a anarquia inerentes a esses gêneros, e esbanja alegria e vitalidade, ao desautomatizar os papéis tradicionais (adolescente, adulto, homem, mulher, polícia, bandido, mãe, filha) e a lógica rotineira que guia nossos dias. Paris, aqui, realmente, é uma festa.

 

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Jovialidade e irreverência na literatura francesa: ZAZIE aos 50

 

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https://armonte.wordpress.com/2014/06/14/destaque-do-blog-zazie-no-metro-de-raymond-queneau-2/

Li uma tradução (saiu pela Rocco) de Zazie no metrô, de Raymond Queneau (1903-1976) em meados dos anos 1980. Gostei, gostei bastante, mas meu gosto então era mais pelo “sério” e logo etiquetei o livro como mais “ameno” e meio que o esqueci.

Agora sai uma edição pela CosacNaify e o livro, publicado em 1959, chega ao cinquentenário. E se me dissessem que é um livro recém-publicado, escrito neste ano de 2009, eu acreditaria piamente. É um impacto, meu caro leitor,  a vitalidade, a irreverência, o tom absolutamente moderno dessa obra-prima de Queneau. É o livro em que a adolescência realmente ganha foros de cidadania na literatura. Pois até então não existia o adolescente, tal como o entendemos: tínhamos aqueles personagens “sensíveis” e inadaptados, quase projeções do adulto angustiado (não que isso diminua o mérito de um texto como O apanhador no campo de centeio).

Na literatura francesa, então, dominada ainda pelo estilo elegante e clássico, tínhamos a revolta e a sordidez da adolescência e juventude do narrador de Morte a crédito, de Céline, tínhamos os adolescentes “malditos”, enfant terribles, e ainda a pós-adolescência imediata e anemicamente existencialista e lânguida (Bom dia, tristeza). Não, o texto de Queneau é de uma imperiosa novidade, é o que a vanguarda pode ter de mais alegre e debochado. E só para arremetar este intróito (nem falei do livro ainda), é preciso lembrar que quando o publicou Queneau já estava com 55 ou 56 anos!

Zazie é uma pirralha (como é chamada, na narrativa) que, enquanto a mãe passa duas noites com um amante em Paris, vai ficar aos cuidados do tio, Gabriel. Ela já chega contrariada: não vai poder conhecer o metrô parisiense, que está em greve. Portanto, o título já é uma brincadeira do autor com o leitor: nunca veremos Zazie no metrô. E tantas outras certezas serão dinamitadas ao longo das aventuras parisienses de Zazie: o tio Gabriel faz show numa boate gay como “Gabrielle”, mas é um baita homão, bate em todo mundo, é casado com Marceline… será que ele é gay? Será que é uma tia (o epíteto que os personagens dão aos gays  no livro?) e, sendo como é, o tio  (tia?) de Zazie, não teremos aí outra brincadeira? Mesmo porque quem entrega a pirralha à nada maternal mãe não é o tio (tia?) Gabriel(le) e sim a que nunca foi chamada de tia na narrativa inteira, Marceline, no entanto transformada em Marcel, que está fugindo de casa porque um policial (que provavelmente não é um policial), mas que foi um guarda de trânsito e um tarado pedófilo ao longo da narrativa, a assedia sexualmente enquanto o marido está entretendo turistas que ficaram encantados com ele ao longo do dia com seu show na boate (no qual é incluída, improvavelmente para os padrões da censura e da proteção a menor, a pirralha). O falso (ou não?) policial assediou quem: Marceline ou Marcel? E  não foi só ele: a garçonete do restaurantezinho sobre o qual se localiza o apartamento de Gabriel(le)/Marcel(ine), Mado Ptits-Pieds (durante a semana falarei do que Queneu faz com a ortografia das palavras, utilizando a fonética de forma maravilhosa, que deveria ter ensinado muita coisa a Antônio Houaiss quando traduziu Ulisses, e que foi magicamente preservada pelo tradutor Paulo Werneck), que aceita casar-se com um amigo de Gabriel(le), Charles, ao subir ao apartamento para dar um recado e comunicar sua decisão, também aproveita para “dar uma cantada” na companheira do tio que nunca é chamada de tia. E nem de fato sabemos, apesar do uso da palavra “tio” que parentesco liga Gabriel à mãe de Zazie ou a ela.

E essa menina desbocada, interesseira (é capaz de acompanhar um pedófilo pelas ruas de Paris, para onde escapuliu da casa do tio, só porque há a possibilidade de ele comprar-lhe uma calça jeans, djins). E sua resposta contumaz: é o caralho? E a maneira como trata o tio, de uma forma que uma transeunte (que se tornará uma das personagens mais deliciosas do texto) a repreende, invertendo tudo o que esperamos de uma situação dessas, por “maltratar um adulto”?

Paris é uma festa nesse dia de greve de metrô. A festa da linguagem de Queneau.

Ele pertenceu ao famoso grupo experimental OuLiPo, na época em que as vanguardas ainda tinham peso (lembrem-se que foi também a época do “noveau roman” e da “nouvelle vague”). OuLiPo- oficina de literatura potencial  (não, não, não se trata de um desses grupelhos chatos, não que não os houvesse, claro, mas dessa turma participaram grandes autores como Italo Calvino, do qual certas obras têm algum parentesco com Zazie, como o delicioso Se um viajante numa noite de inverno, e também Georges Perec, do sensacional A vida: modo de usar).

Em 1960, Zazie foi filmado por Louis Malle, cuja carreira tem mais altos do que baixos (desses, eu só lembro de três filmes de que eu não gostei: Lua negra; A baía do ódio; Perdas & Danos, este  apreciado por muita gente): filmes ótimos como Ascensor para o cadafalso, Trinta anos esta noite, Lacombe Lucien, Pretty baby, o particularmente esplêndido Atlantic City, Au revoir les enfants, Milou en mai (tem dois que eu nem gosto nem desgosto, não me dizem nada: A vida privada & Viva Maria). Nessa carreira gloriosa nada foi tão inspirado quanto O sopro no coração, justamente sobre um menino que chega à adolescência e um dos melhores filmes da história do cinema na minha opinião, ou sua versão para as travessuras da pirralha criada por Queneau.

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   Zazie tem 19 capítulos. O primeiro capítulo já é divertidíssimo, pois começa com o tio Gabriel, ao ir de encontro a Jeanne Lalochère e sua filha Zazie, queixando-se do fedor da multidão parisiense:”Disseram no jornal que nem onze por certo dos apartamentos de Paris têm banheiro, grande novidade, mas mesmo assim dá pra tomar banho. Esse pessoal aqui em volta não deve se esforçar muito. E esses aí nem são os mais fedorentos de país.” Numa inversão típica da narrativa, é no entanto o cheiro dele que vai incomodar os outros e dar origem a uma confusão que caracteriza completamente o seu tipo físico (o narigão, a corpulência). É que Gabriel usa um perfume (que se fará presente o romance inteiro) chamado “Barbouze”, “um perfume da Fior”. E quase todos garantem que é uma fragrância horrível: “Devia ser proibido empestear o mundo desse jeito, continuou a dondoca, convencida de que tinha razão”.. A única que gosta do cheiro é Zazie, a quem ele não conhecia e que surge da multidão.

Eles combinam de se encontrar “depois de amanhã para o trem das seis e sessenta” para Gabriel devolver a menina: “Natürlich, disse Jeanne Lalochère, que tinha sido ocupada”. Esse é um exemplo do virtuosismo do estilo de Queneau. Note-se as implicações desse “tinha sido ocupada”, que remonta à guerra e a uma aura de promiscuidade sexual.

Ao saber que não vai poder andar de metrô, devido à greve, Zazie grita:

“—Mas que canalhas! Safados. Fazer isso comigo.

–Não foi só com você que eles fizeram isso, disse Gabriel, perfeitamente objetivo.

–Não to nem aí. Mesmo assim, é comigo que isso tá acontecendo, eu, que tava tão feliz, tão contente e tudo de ir vagãobundear no metrô. Com mil diabos, puta merda!”

Um pouco adiante, Gabriel diz:

“–E depois temos que chispar: o Charles tão…

–Oh!Essa dança aí eu conheço, exclama Zazie, furiosa…”

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     No táxi de Charles, amigo de Gabriel, começa outro dos jogos favoritos do texto: inexatizar os lugares célebres de Paris. Um diz que é o Panthéon, o outro nega, o outro replica, e assim por diante… E Zazie sempre espicaçando. Aliás, na relação entre ela e os adultos do texto, constatei um tipo de duelozinho, de espicaçamento contínuo, que conheço bem, por causa dos meus alunos dessa faixa de idade: por mais que gostem de você, estão sempre espicaçando-o e tentando deixá-lo na defensiva. E haja presença de espírito e jogos de linguagem para deter a ofensiva (e ao mesmo tempo isso é muito estimulante e energético).

No restaurante embaixo do apartamento de Gabriel e de propriedade do seu locador, Turandot, Zazie insiste em tomar uma “cacocalo” (mas não tem no estabelecimento), enquanto Charles vai de bojolé. E assistimos a uma cena de teatro do absurdo (como também há toques do futuro besteirol, de desenho animado, de cinema, enfim de tudo que há de aproveitável na cultura verbal):

“—E você?, ele pergunta a Zazie.

–Já falei: uma cacocalo.

–Ela disse que não tem.

–É uma cacocalo o que eu quero.

–Você pode até querer, você ta vendo que não tem.

–O que eu quero é uma cacocalo e não outra coisa.”

      Gabriel mostra sua moradia. É aqui, diz ele, que pergunta a ela o que acha: “Zazie fez um gesto que parecia indicar que ela preferia não declarar sua opinião”. Nesse momento, conhecemos boa parte da fauna que irá povoar o resto do livro: Turandot, o dono, Mado Ptits-Pieds, que vai aceitar o pedido de casamento de Charles e o maravilhoso papagaio Laverdure, que repetirá o mesmo refrão (com uma exceção) até o fim da história: “Falar, falar, você só sabe fazer isso”.

“Seu Charles, é o que Mado Ptits-Pieds diz, você é um melancólico.

–Melancólico o caralho, responde Charles.

–Isso lá é verdade, hoje o senhor não está nada educado.

–É engraçado, é assim que ela fala, a fedelha.

–Não entendi, disse Turandot, nem um pouco à vontade.

–É fácil, disse Charles, essa criança não consegue dizer uma palavra sem acrescentar  um o caralho logo depois.

–E ela acrescenta o gesto às palavras, perguntou Turandot.

–Ainda não, respondeu gravemente Charles, mas não vai demorar para isso acontecer…

–Pultaquilparil, gemeu Turandot, não quero na minha casa uma vadiazinha que diz essas porcarias. Já consigo até ver, ela vai perverter a vizinhança inteira. Daqui uns oito dias…

–Ela só vai ficar dois ou três dias, disse Charles.

–Já é demais, em dois ou três dias ela vai ter tempo de enfiar a mão na braguilha de todos os velhos gagás que me dão a honra de fazer parte da minha clientela.

–Falar, falar, disse Laverdure, você só sabe fazer isso.”

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E então aparece a suave, sutil e enigmática Marceline e um problema logo surge: Gabriel trabalha à noite (diz para Zazie que é vigia) e não quer que a menina barulhenta atrapalhe seu sono matinal.

“—A gente, disse Gabriel, podia dar um sonífero para ela dormir pelo menos até meio-dia, ou milhor, até as quatro. Parece que tem uns supositórios que permitem atingir exatamente esse resultado”.

Na manhã seguinte (estamos no terceiro capítulo), Zazie acorda e se entedia no apartamento do tio e sai para a rua: “É  uma rua tranqüila. Os carros passam tão raramente que daria para brincar de amarelinha. Tem algumas lojas de bairro e cara provinciana. Pessoas vão e vêm a um passo razoável. Quando atravessam, olham primeiro para a esquerda, depois à direita, unindo o civismo ao essesso de prudência. Zazie não está totalmente decepcionada, ela sabe que está em Paris mesmo, que Paris é uma grande aldeia e que Paris inteira não parece com aquela rua. Só para se dar conta e ter total certeza, é preciso ir mais longe. É o que ela começa a fazer, com ar despreocupado”. É Tom Sawyer reaparecendo na ficção após um século de gente adulta e séria, e adolescentes como pano de fundo e coadjuvantes.

Turandot tenta impedi-la, mas ela faz com que uma multidão se junte à volta deles, chamando-o de tarado.

“Diante desse público seleto, Zazie passa das considerações gerais às acusações particulares, precisas e circunstanciadas… A senhora insiste; ela se inclina para Zazie.

–Vamos, menina, não tenha medo, me diz o que esse homem ruim te falou?

–É sujo demais.

–Ele te pediu para fazer alguma coisa?

–Isso mesmo, dona.

    Zazie deixa escapar em voz baixa alguns detalhes na orelha da boa senhora… Um tipo indaga:

–Quê que ele pediu pra ela fazer?

     A boa senhora deixa escapar os detalhes zazílicos na orelha do tipo:

–Oh, nunca tinha pensado nisso.

     E reformula assim, mais para pensativo:

–Não, nunca.

     Ele se volta para outro cidadão:

–Pois então, ouve só isso aqui (detalhes). Inacreditável.

–Tem gente que é safado mesmo, disse o outro cidadão.

    Enquanto isso, os detalhes se espalham pela multidão.

    Uma mulher diz:

–Não entendi.

    Um homem esplica pra ela. Puxa do bolso um pedaço de papel e faz um desenho com caneta bique.

–Muito bem, diz a mulher, sonhadora.

    Ela acrescenta:

— E é prático?

    Está falando da caneta…”

     Turandot consegue escapulir dali e no seu estabelecimento:

“–Deusdossel, deusdossel, gaguejou ele.

— Falar, falar, diz Laverdure, você só sabe fazer isso.”

Marceline é obrigada então a acordar Gabriel e lhe dizer que a guria “deu no pé” e que não pode sair atrás dela porque está “com roupa fervendo no fogo”. Turandot  (que foi levar a notícia) recomenda uma lavanderia automática e Gabriel: “Por quê que você tem que se meter? Falar, falar, você só sabe fazer isso”.

Quando Gabriel sai para procurar a sobrinha, passa por uma sapataria e conhecemos então outro personagem importante, o sapateiro Gridoux.

ZAZie o filme

E então Zazie perambula por Paris. Lógico que vai até o metrô, que está fechado.  Um sujeito a aborda: “Ela não conseguia acreditar no que os olhos viam. Ele estava emperiquitado com uma bigodeira negra, chapéu-coco, guarda-chuva e uns sapatos enormes. Não é possível, Zazie dizia para si mesma com sua vozinha interna, não é possível, é um ator perdido, dos velhos tempos.”

     Dissimulada, ela permite que o tipo (que ela crê ser um pedófilo) a leve a um mercado de pulgas:

“—Ah, o mercado de pulgas, disse Zazie, com ar de quem não quer se deixar surpreender, é aqui que dá pra encontrar uns rambrãs baratinhos, depois é só vender prum ianquense e a viagem está ganha… Tem calça djins, nos uniformes americanos?

–Mas sem a menor dúvida. E bússolas que funcionam no escuro.

–Tô cagando pras bússolas…

–Podemos ir lá ver, disse o sujeito.

–E depois?, disse Zazie, não tenho nem um tostão pra poder comprar, só afanando mesmo.”

E no mercado de pulgas o sujeito compra o djins: “Djins. Assim. No primeiro passeio em Paris. Bacanérrimo.” Mais adiante: “Tá pensando o kê? Keke ele ker/ Com certeza é um timo imundo, não um nojento indefeso, mas um tipo imundo de verdade. Dizconfia, dizconfia, dizconfia. Mas e aí se, a calça djins…”

Não vou revelar tudo o que acontece no livro. Só quero dar uma idéia da sua graça. Por isso, pulo um pouco e mostro Zazie no apartamento do tio, acompanhada pelo sujeito que se apresenta como Pedro-Surplus, “um comerciante”, embora Zazie desconfie de que ele possa ser um tira. Pedro Sur-plus acusa Gabriel de prostituir garotinhas:

“– Essa menina estava rodando bolsinha no mercado das pulgas. Espero que pelo menos o senhor não vá vender ela para os árabes.

–Isso nunca, senhor.

–Nem aos poloneses?

–Também não.

–Somente aos franceses e turistas abonados?

–Somente coisa nenhuma.

–Então o senhor nega?

–E como.

–E me diga, meu rapaz, qual é o seu ofício ou sua profissão atrás do qual ou da qual o senhor esconde as suas atividades delituosas?

–Artista.

–O senhor? Um artista? A menina me disse que o senhor era vigia noturno.

–Ela não sabe de nada…

–Então, artista de que tipo?

–Dançarina de cabaré.”

E assim Zazie ouve uma palavra sobre a qual fará várias inquirições mao longo do texto: “hormossecsual”:

“—Pois não está vendo tudo o que está bem no seu nariz? Disse o sujeito, com um ar cada vez mais sacanamente mefistofélico: proxenetismo, rapinagem, hormossecsualidade, eonismo, hipospadia balânica, com tudo isso você vai puxar uns dez anos de trabalhos forçados.

     Depois ele se vira para Marceline:

–E a senhora? Gostaríamos de ter algumas informações sobre a senhora também.

–Quais?, perguntou Marceline suavemente.

–Você só deve falar na presença do seu advogado, disse Zazie…

–Dá pra calar a boca?, disse o sujeito para Zazie. Pois então, a senhora poderia dizer que profissão exerce?

–Dona-de-casa, responde Gabriel, com ferocidade.

–Em que consiste?, pergunta ironicamente o sujeito.

      Gabriel se vira para Zazie e pisca o olho, para a menina se preparar para saborear o que vem por aí.

–No que consiste?, diz ele, anaforicamente. Por exemplo, pôr o lixo para fora.

     Ele pega o sujeito pela gola do paletó, arrasta pelo assoalho e o projeta rumo a direções inferiores.

     Faz barulho: um barulho abafado.

     O chapéu segue o mesmo caminho. Faz menos barulho, embora seja coco.”

O sujeito (Pedro-Surplus, será?, comerciante?, polícia? ator? tarado?) puxa prosa com o sapateiro Gridoux (eu saltei vários episódios,esse diálogo está no capítulo 7):

“—O titio é uma titia.

–Não é verdade, berrou Gridoux… O Gabriel ele é um cidadão honesto, honesto e honrado. Além do mais, todo mundo gosta dele aqui no bairro.

–Uma sedutora.

–O senhor está me enchendo o saco, afinal de contas, com esses seus ares superiores. Estou repetindo que o Gabriel não é uma tia, está claro, sim ou não?… O Gabriel dança numa boate de bichas-loucas disfarçado de sevilhana, oquei. Mas quê que isso prova, hein?… Isso não prova nada, só diverte os trouxas. Um colosso vestido de toureiro faz sorrir, mas um colosso vestido de sevilhana é bem o tipo da coisa que as pessoas acham engraçado. Sem falar que além disso ele dança A Morte do Cisme que nem na Ópera. Com saiote e tudo… afinal de contas é um trabalho como qualquer outro, né não?

— E que trabalho, o sujeito contentou-se em dizer.

–Que trabalho, que trabalho, replicou Gridoux, macaqueando o outro. E do seu trabalho, o senhor tem orgulho?

     O sujeito não respondeu.”

No capítulo 8, novamente passeiam por Paris Gabriel e Zazie no táxi de Charles. Zazie pergunta ao taxista o que quer dizer hormossecsual:

“—Mas o quê que isso quer dizer? Que ele usa perfume?

–Isso aí. Você entendeu.

— Não é motivo pra ir pra cadeira.

–Claro que não.

–E o senhor? O senhor é? Hormossecsual?

— Por acaso eu tenho cara de quem queima a rosca?

–Não, porque o senhor é motorista.

— Então. Ta vendo.

–Tô vendo nada.

–Eu também não vou fazer um desenho pra você.”

(escrito especialmente para o blog, junho-julho de 2009)

 

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27/12/2009

Em relação ao século XX: 100, 75, 50, 25 anos de obras e autores

[Juan Carlos Onetti]

{Eugene Ionesco}

[Norberto Bobbio]

[Selma Lagerlöf]

100 anos- Em 2009, a escritora alemã Herta Müller ganhou o Nobel. Exatamente cem anos atrás, a sueca Selma Lagerlöf (1858-1940) tornava-se a primeira mulher a receber o prêmio. Não conheço muito bem sua obra,  só li algumas histórias de De saga em saga, uma coletânea que aparece numa coleção dos premiados com o Nobel, porém há um ensaio excelente de Marguerite Yourcenar sobre ela em Notas à margem do tempo, e que nos faz vislumbrar um universo fascinante.

    No mesmo ano em que a autora de A saga de Gösta Berlings (seu livro mais conhecido) se tornava a pioneira de uma lista ainda muito pequena, nascia na Romênia natal de Herta Müller um dramaturgo originalíssimo, que faria parte do chamado “teatro do absurdo”: Eugene Ionesco, de A cantora careca, Os rinocerontes; A lição; e, no Uruguai, um dos prosadores que mais mereceriam o Nobel no século XX: Juan Carlos Onetti, com obras do calibre de A vida breve, O estaleiro & Junta-Cadáveres, e que forma, com o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo a santíssima trindade da ficção hispano-americana.

      Também em 1909, nascia o grande pensador italiano Norberto Bobbio, autor dos ensaios maravilhosos reunidos em Nem com Marx, nem contra Marx. E na Letônia nascia o luminoso Isaiah Berlin (que faria carreira na Inglaterra), o autor de Pensadores russos, um pensador que gostava mais de escrever ensaios do que preparar “livros”.  E naquele ano, Lima Barreto lançava seu libelo anti-racista que também, e principalmente, é um poderoso romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha.

75 anos- De 1934, gostaria de destacar dois romances essenciais: o maior livro de Graciliano Ramos, São Bernardo (ser o melhor livro de um escritor como Graciliano é um fato por si só notável; para mim, aliás, os maiores romances brasileiros do século passado são Grande sertão: veredas; A maçã no escuro; São Bernardo  & Triste fim de Policarpo Quaresma); e o terrível e avassalador Morte a crédito, de Louis-Ferdinand Céline (que talvez seja até maior do que sua obra-prima anterior, Viagem ao fim da noite). Vidas secas e cheias de angústia no Nordeste e na França. A vida lembrada, cá e lá, como memórias do cárcere

[raymond chandler]

50 anos- É difícil escolher o acontecimento literário supremo de 1959, ano em que morria o grande Raymond Chandler, pois nesse ano iniciavam suas carreiras gloriosas nomes como Günter Grass, com O tambor de lata, certamente um dos maiores romances já escritos; os outros não começaram já nesse patamar: Philip Roth (Adeus, Columbus), Vargas Llosa (Os chefes) e Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares). O único título comparável em magnitude ao de Grass talvez seja O almoço nu, que revelou o universo muito peculiar de William Burroughs, mas cuja legibilidade maior foi possível graças à notável versão cinematográfica de David Cronemberg (a versão de O tambor nada tem de notável). Mesmo assim, um romance cinquentenário pelo qual tenho um carinho especial é Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr, merecidamente um clássico da ficção científica, mas que não se restringe a um “livro de gênero”. Na área de contos, é difícil pensar num título mais importante do que As armas secretas, de Cortázar, não só por causa da sua qualidade literária (o meu favorito é “Cartas da mamãe”, mas o mais considerado é “O perseguidor”, baseado na vida de Charlie Parker), como pela sua influência na literatura dos anos 60 e 70: basta lembrar que “As babas do diabo” foi a inspiração de Antonioni para seu Blow up (1968). Também não se pode esquecer a irreverência, a jovialidade e o trato de linguagem de Zazie no metrô, a obra-prima de Raymond Queneau.

     Em 1959, Jean-Paul Sartre dedicou-se a escrever um roteiro imenso (depois não utilizado, naquela época não existiam as produções para a tv a cabo, não existia a HBO; mesmo assim, Sartre resmungou que as pessoas tinham paciência para ver quatro horas da vida de Ben-Hur e não tinham para ver a vida do criador da psicanálise) sobre a vida de Freud para John Huston. O filme é ótimo, mas o texto de Sartre não fica atrás: Freud, além da alma; o marcante romancista português Vergílio Ferreira lançou sua obra mais famosa, o difícil porém importante Aparição; e há quem ache uma obra-prima (não é o meu caso) Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, ainda assim um livro que se deve levar em conta. Em todo caso, eu prefiro o folhetinesco Asfalto selvagem, as deliciosas desventuras em série de Engraçadinha, uma das grandes criações de Nélson Rodrigues

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion, e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras.

julio cortázar & truman capote]

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion (sempre cito uma de suas frases, “ninguém está isento do movimento geral”, e sua heroína, Inez Christian Victor, é como se fosse uma amiga pessoal), e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras, a qual justamente em 1959 havia escrito o mais belo dos roteiros em hiroshima, meu amor, dirigido por Alain Resnais.

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