MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/10/2015

“Afogado no grande mar da informação”: a era da suspeita em NÚMERO ZERO, de Umberto Eco

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«__ Para você são suficientes todas essas coincidências?

__Mas não será essa sua tendência a ver conspiração por todo lado que faz você colocar tudo no mesmo saco?

__ Eu? Eu não, são autos judiciários que podem ser encontrados por quem souber procurar nos arquivos, mas deu-se um jeito para que eles escapulissem do público entre uma notícia e outra».

[uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de outubro de 2015]

«Quando se entra num estado de suspeita não se deixa de lado mais indício algum». Essa frase do inesquecível O Pêndulo de Foucault (1988) poderia estar presente no mais recente Umberto Eco, Número Zero, grande sucesso de vendagem deste ano, no qual ele revisita—de forma mais enxuta—a atmosfera paranoica do seu segundo romance[1].

Ao invés de tramoias seculares ou pseudomísticas, remontando aos templários, a narrativa—localizada na Milão de 1992—concentra-se na esfera do jornalismo e da sua linguagem. Colonna, o protagonista, aceita a proposta de participar da criação de um veículo de imprensa “de laboratório”, por assim dizer, composto apenas por números zeros. A exploração das notícias passadas, sobretudo as ilações tiradas a partir delas, serviriam como arma, como instrumento de pressão e chantagem, para o investidor, o Comendador Vimercate, agindo por meio do cínico Simei. A certa altura das reuniões de pauta, ele afirma que «os jornais ensinam como se deve pensar». Questionado por Maia, uma das redatoras («Mas os jornais seguem as tendências ou as criam? »), responde: «As duas coisas, senhorita Fresia. As pessoas no início não sabem que tendências têm, depois nós lhes dizemos e elas percebem que as tinham…».[2]

Um dos colaboradores da empreitada, Braggadocio, aproxima-se de Colonna, confidenciando a ele uma acalentada teoria da conspiração: Mussolini não teria sido de fato executado após a vitória dos Aliados, e vários eventos políticos aparentemente desconectados formariam um mosaico da tentativa subterrânea de colocar o fascismo de novo no poder. Como acontecia em Pêndulo de Foucault, a exposição dessa enciclopédia de suspeitas e indícios é tão hiperbólica que ganha contornos bizarros e burlescos. Para contrabalançar esse tétrico (ao mesmo tempo divertido) umbral a uma realidade-impostura, temos Maia Fresia, a redatora que questionou Simei. Envolvendo-se com ela, Colonna será devolvido ao mundo do senso comum, com uma pontinha de excentricidade, para garantir o charme.

Embora eu não tenha entendido muito bem que progressão Eco queria exatamente imprimir ao seu livro, pois considero Número Zero um texto truncado, concluído de forma frustrante, o charme de Maia certamente é um de seus achados (aliás, por causa disso gostei tanto do capítulo 13, onde ela imagina uma seção de anúncios pessoais peculiar, que permite ler as entrelinhas dos dados pessoais auto-publicitários).

Outro achado (e uma promessa e tanto, afinal não cumprida) é que Braggadacio, para além das pistas e sinais de uma vasta conspiração, a qual desvela toda a desmoralização e corrupção da chamada “vida pública” (tão parecidas na Itália e no Brasil!), tem um tal apego a certa porção do passado (única estável e real de uma existência fantasmática), mesmo com ingredientes escusos, que acaba por aproximar o autor de O Nome da Rosa—nesse sentido tão próximo de seu compatriota Leonardo Sciascia—do universo do Nobel 2014, Patrick Modiano, cujos personagens também tentam evocar algo de permanente, que remanesça (“flores da ruína”), em meio a uma memória fuliginosa e dissolvente: «meu pai me acostumou a não acreditar nas notícias. Vivemos na mentira e, se você sabe que estão lhe mentindo, precisa viver desconfiado.  Eu desconfio, desconfio sempre. A única coisa verdadeira da qual posso dar testemunho é essa Milão de tantas décadas atrás»[3].

Em 207 páginas, 192 nos acenam com a soma de todos os dons de Eco; para, depois, mostrarem-se, se puder me valer de um dos clichês que ele deliciosamente reitera ao longo do romance (parodiando o mau jornalismo), “tempestade em copo d’água”. O furacão prometido torna-se mera tempestade tropical.

TRECHO SELECIONADO

«A questão é que os jornais não são feitos para divulgar, mas para encobrir as notícias. Ocorre o fato X, você não pode deixar de falar dele, mas cria problemas para gente demais, então no mesmo número você põe umas manchetes de arrepiar o cabelo, mãe degola os quatro filhos, a nossa poupança talvez vire pó, descoberta uma carta de insultos de Garibaldi a Nino Bixio e assim por diante, a sua notícia se afoga no grande mar da informação».

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NOTAS

[1] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2012/12/30/tratado-sobre-a-tolice-humana-o-pendulo-de-foucault-de-umberto-eco/

[2] Mas o relato de Colonna mostra também a limitação do alcance dessa dialética manipuladora, basta reparar no erro de previsão de  Simei com relação aos celulares, no nono capítulo.

[3] Todas as citações são da tradução de Ivone Benedetti (editora Record).

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25/10/2015

Fruto proibido no paraíso dos livros: “O nome da rosa”

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 01 de julho de 2006)

«Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si. À luz dessa reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era então o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de forças não domáveis por uma mente humana… »

Comemorando 40 anos, a Nova Fronteira decidiu lançar edições especiais de 40 dos seus títulos mais marcantes, entre eles O Nome da Rosa[1]. Editora e romance foram muito importantes na minha história pessoal, e achei auspiciosa a ideia de relê-lo numa nova roupagem, com um formato quase de bolso (se for possível existir um livro de bolso de quase 600 páginas) e paginação atraente.

Só que o livro parece ter sido revisado pelo seu grande vilão cego, inspirado em Jorge Luis Borges, acometido por uma mortífera seriedade, inimigo do riso e que deve ter planejado destruir o prazer da leitura com a incrível quantidade de erros, palavras trocadas, esdrúxula separação silábica (ol-ho, por exemplo), troca de tempos verbais, frases afirmativas que se tornam negativas ou vice-versa, e até a supressão de várias linhas em duas páginas,  a 98 e a 367, deformando a obra-prima de Umberto Eco num palimpsesto tão bizarro quanto alguns volumes adormecidos na biblioteca da abadia onde a história transcorre durante sete dias, em novembro de 1327. E no final do volume surgem uma preparadora de originais e cinco revisores! O Venerável e perverso Jorge de Burgos devia ter dado cabo de todos! Dificilmente aparecerá uma edição mais imprestável, um desserviço mais flagrante a um livro desse quilate. A Nova Fronteira sequer teve o cuidado de revisar a tradução.

Casando erudição e fabulação, numa alquimia nunca antes ou depois alcançada com tal felicidade, Eco nos apresenta uma dupla inesquecível, o narrador beneditino (já velho, relembrando quando ainda era noviço e lolito),  Adso de Melk, e seu mestre franciscano, Guilherme de  Baskerville, o qual é encarregado pelo Abade de investigar as mortes que começam a ocorrer na semana da sua chegada, todas ligadas à biblioteca, que é inacessível, encerrada num labirinto. Baskerville, admiravelmente encarnado por Sean Connery na (a)versão cinematográfica (ele só não salvava o filme porque era muito discutível mesmo) e que só pode ser considerado mero decalque de Sherlock Holmes por leitores incautos, por ser um “inglês louco e arrogante”, segundo seu amigo, o exaltado místico Ubertino, define bem seu modo de pensar na seguinte passagem: «encontro o deleite mais jubiloso em desenredar uma bela e intrincada intriga. E será ainda porque no momento em que, como filósofo, duvido que o muno tenha uma ordem, consola-me descobrir, se não uma ordem, pelo menos uma série de conexões em pequenas porções dos negócios do mundo».

Além da “bela e intrincada intriga” ligada à biblioteca, que por si só faria de O Nome da Rosa um dos melhores romances policiais já escritos, há ainda o encontro entre emissários papais e os líderes da ordem franciscana ligados ao imperador Ludovico, em guerra com o papa João XXII, motivo da visita de Baskerville e Adso à Abadia, e cujo objetivo é discutir a pobreza de Cristo e seus apóstolos (na verdade, como observa o mestre de Adso a seu discípulo, a questão mesmo é decidir se a igreja deve ser pobre e, mais ainda, se deve abdicar de sua intervenção no mundo secular, no qual as cidades e o capitalismo moderno começam  a despontar—ideia perigosa de ser defendida num momento em que a Inquisição dá o tom). Assim como o labirinto (não o espacial) tecido em torno da biblioteca nos proporciona grandes personagens, como o cego Jorge, o impenetrável bibliotecário Malaquias, o curioso e ambicioso Bêncio e o herborista Severino, o enredo paralelo do debate teológico (com as idéias preconceituosas e intolerantes em relação ao movimentos populares –os quais, por sua vez, abusam da violência e do vandalismo—pque são sempre retomadas sem reflexão ou senso histórico, veja-se como a imprensa retrata o MST,  por exemplo) colabora com outro tanto: o sinistro inquisidor Bernardo Gui, Ubertino, o despenseiro que na juventude participou de um movimento herético e que é tomado como o assassino, o babélico (no modo de expressar) e quasímodesco (na aparência) Salvatore.

Borges dizia que o paraíso devia ser algo parecido com uma biblioteca. O Nome da Rosa nos mostra que em todos os paraísos existe o fruto proibido.

VER também no blog:

https://armonte.wordpress.com/2011/04/17/guglielmo-guilherme-william-os-trinta-anos-de-o-nome-da-rosa/

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NOTAS

[1] Il nome della Rosa (Itália-1980). Tradução de Aurora Fornoni Bernardini & Homero Freitas de Andrade.

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24/10/2015

FOLHETIM E CONSPIRAÇÃO: “O cemitério de Praga”, de Umberto Eco

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(resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 15 de novembro de 2011)

Em Seis passeios pelos bosques da ficção (1994), Umberto Eco fez uma brilhante demonstração de como os “Protocolos dos Sábios do Sião”, que denunciavam um suposto complô judeu para dominar o mundo (e que se tornaram peça-chave do antissemitismo, inclusive na ideologia hitlerista), se originavam das várias versões deturpadas de cenas de romances rocambolescos como Os mistérios de Paris, de Eugene Sue, e Joseph Balsamo, de Alexandre Dumas[1].

A paixão de Eco por folhetins, por imposturas e pela tolice humana (ou seja, o hábito de acreditar em qualquer coisa) fez com que ele desenvolvesse tal esquema num romance, O cemitério de Praga [“Il cimitero di Praga”, 2010, que comento na tradução de Joana Angélica D´Ávila Melo]. O título se refere a uma espécie de cena primordial, bebida nos romances, e urdida e reaproveitada pelo personagem principal, Simone Simonini: um encontro de rabinos representando as doze tribos de \Israel no referido cemitério, onde eles expõem a teia judaica para controlar as finanças mundiais, a ruína do cristianismo e dos valores ocidentais e a subsequente dominação global.

Criado por um avô fortemente conservador e antissemita, Simonini devora os livros de Sue e Dumas. Após a morte do velho, roubado por um tabelião, que o priva da sua herança, ele revela-se hábil na falsificação de documentos, em forjar papéis supostamente “autênticos” e, numa Itália ainda não unificada e assolada por conflitos armados, nos quais avulta a figura de Garibaldi,  inicia uma carreira como informante e agente duplo que o levará a se instalar na Paris de Napoleão III, da Comuna e da guerra (perdida) contra a Alemanha, períodos em que os serviços secretos precisam sempre de “provas” contras os oponentes.

Temos, então, toda a atmosfera do folhetim: disfarces, conspirações, fomentação da opinião pública contra um determinado inimigo (jesuítas, maçons, comunistas, mas em especial judeus). Ficamos sabendo da trajetória de Simonini por meio de um diário que ele escreve (em 1897), ao perceber estranhos lapsos de memória, desconfiando de que pode sofrer de dupla personalidade (a “outra” seria a identidade de um abade que ele assassinara e jogara nos esgotos embaixo da sua morada parisiense décadas antes). Portanto, ao longo da reconstituição, as duas personalidades dividem o diário, gerando informações e fontes tipográficas diferentes (há uma terceira, que mostra a interferência do Narrador, que “edita” esse material para torná-lo palatável ao gosto contemporâneo).

Aqui no Brasil, o romance de Eco foi duramente criticado pelo excesso de referências eruditas, pelo seu estilo bricabraque (colagem, paródia de estilos). Uma besteira, como sabe quem leu e curtiu O nome da rosa e O pêndulo de Foucault. Esse conhecimento está entranhado no grande escritor italiano, não é uma erudição borra-botas à la Dan Brown e congêneres.

O que incomoda em O cemitério de Praga, apesar de ser um bom romance (mas podia ser bem melhor) é a combinação de três fatores. Em primeiro lugar, a dupla personalidade desagradável e odiosa que protagoniza a narrativa. Isso não seria tão problemático (em O perfume, por exemplo, o herói também era horrível) se a estrutura do romance não contradissesse a sua tese principal: Eco nos diz que as teorias conspiratórias são uma prova da credulidade geral, porém toda a sua trama é calcada em conspirações e jogos de poder bastante reais e documentados, e mesmo que a paranoia e o racismo ditem certas concepções populares, ele nos oferece indícios suficientes de que há um controle subterrâneo do mundo e das informações.

Por último, e o defeito principal, a meu ver, é que—ao utilizar a moldura folhetinesca—ele contrariou as regras do jogo, e ao invés de injetar emoção e aventura, parece fazer um resumo acadêmico das situações e dos caracteres. Nunca sentimos uma convicção narrativa profunda (mesmo num nível paródico) de todas aquelas peripécias coloridas e extravagantes. É como um banho de água fria na fervura da intriga. Ao “editar” os excessos dos folhetins, Eco não conseguiu compensar em graça e verve aquilo de que nos privou. Parece que ele esticou—de forma inteligente e engenhosa—o tom da sua conferência de Seis passeios pelos bosques da ficção por 400 e tantas páginas. Uma pena.

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/11/16/agua-fria-na-fervura-de-uma-velha-trama-o-cemiterio-de-praga-de-umberto-eco/

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NOTA

[1] «Como os estudiosos observaram é fácil perceber que os Protocolos foram um produto da França oitocentista, pois estão repletos de referências a questões do fin-de-siècle francês (como o escândalo do Panamá e os rumores sobre a presença de acionistas judeus na Companhia do Metrô de Paris). Também é claro que foram baseados em vários romances famosos. Infelizmente, a história, mais uma vez, era tão convincente como narrativa que muita gente não teve dificuldade em levá-la a sério.  O resto é História: um monge itinerante chamado Sergei Nilus, que vivia entre a comunidade russa da França—uma figura bizarra, meio profeta e meio canalha, desde muito obcecado com a idéia do Anticristo—a fim de favorecer sua ambição de tornar-se conselheiro espiritual do czar, prefaciou e publicou o texto dos Protocolos. Depois, esse texto percorreu a Europa e foi cair nas mãos de Hitler. Vocês conhecem o resultado…» (Trad. Hildegard Feist)

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30/12/2012

TRATADO SOBRE A TOLICE HUMANA: “O pêndulo de Foucault”, de Umberto Eco

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O ANTI CÓDIGO DA VINCI

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de junho de 2006)

    Após o medíocre suspense de  Código da Vinci, com sua trama conspiratória que vinha de longe no Tempo, não houve outro jeito senão voltar a um romance que, em 1989 (época do seu lançamento por aqui), causou decepção a quem aguardava com sofreguidão um novo O Nome da Rosa.

     Mais tarde, numa resenha, condensei meu precipitado desagrado no seguinte veredicto: pernóstico e insuportavelmente chato. Ainda mais constrangedora, relida hoje (bom que “mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir”, nos ensina Guimarães Rosa), esta outra afirmação: a atualidade não é o forte de Umberto Eco como romancista! Ele, grande investigador da tolice humana, acharia muita graça, pois já colocara uma maliciosa armadilha para incautos no prólogo de O Nome da Rosa:

“… sinto-me livre para contar, por mero gosto fabulatório, a história de Adso de Melk… tão gloriosamente privada de relações com os nossos tempos, intemporalmente estranha às nossas esperanças e às nossas certezas. Porque esta é uma história de livros, não de misérias cotidianas…”

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    O Pêndulo de Foucault narra como Casaubon (o narrador), Belbo & Diotallevi, funcionários de uma editora, durante o planejamento de uma coleção destinada a divulgar livros esotéricos e ocultistas, diante da mixórdia do material que se lhes apresenta (fãs de Dan Brown encontrarão o casamento de Jesus com Maria Madalena e sua relação com o Santo Graal no capítulo 65) e diante da constatação de que “quando se entra num estado de suspeita não se deixa de lado mais indício algum”, resolvem elaborar um Plano Único  cuja origem remontaria aos Templários, claro. O seu sucesso dependeria de encontros em determinados lugares na virada para o dia 24 de junho, a cada 120 anos. Só que o Plano extraviou-se e agora inúmeras seitas e sociedades secretas andam à caça de pistas.

    O Plano, portanto, é uma impostura engendrada por três intelectuais desencantados frente a um universo de simulacros e analogias forçadas (“esta extraordinária capacidade de colocar tudo junto…”; “… quando se quer encontrar conexões, encontra-se sempre, por toda a parte e em tudo, o mundo explode numa rede…”). Todavia, são levados a sério e, enquanto Diotallevi se encontra no estágio terminal de um câncer, Belbo é  perseguido. O romance começa com Casaubon à sua procura, vasculhando seus arquivos de computador, depois indo a Paris. Isso aí, leitor, Paris, como em O Código da Vinci. Em vez do Louvre, o menos turístico Conservatoire des Arts et Métiers, onde está o pêndulo do título, cuja trajetória apontaria na data certa a localização do segredo resguardado pelo Plano.

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    Pernóstico? Insuportavelmente chato? A atualidade não é seu forte? Poucos livros têm momentos tão saborosos,  quando o trio passa em revista as teorias e proposições das doutrinas secretas. Como Umberto Eco não é raso como Dan Brown e conhece tudo, movimenta uma massa de informações que ameaça tornar-se indigesta num volume de 600 páginas e 120 capítulos. Mas estamos num mundo de delírios, de suspeita (e a atualidade se desenha de forma inequívoca e vigorosa, principalmente no contraste das gerações a que pertencem Belbo e Casaubon), por isso o excesso é pertinente. Mais ainda, coerente. A parte inapelavelmente mal resolvida e enfadonha é a dos files do computador de Belbo, mesmo se considerarmos o pioneirismo na introdução do cotidiano informatizado no espaço ficcional .

    Na maior parte do tempo, essa volta ao Pêndulo foi uma experiência deliciosa e uma revelação: como os filmes de Stanley Kubrick, esse livro já nasceu com a vocação de esgotar todo um gênero. Contribuem muito para o prazer inesperado algumas personagens scundárias: Lia, uma das amadas do narrador, com seu bom senso inabalável e sedutor (a outra, Amparo, recebe a Pomba Gira na parte brasileira do livro); Aglié, o pretenso Saint Germain atuando ainda em nossos tempos; e sobretudo o delicioso dono da editora, o sr. Garamond, useiro e vezeiro em roubar cenas. Prova de que, se for perdoável a pobre rima, enquanto seus heróis reciclavam impostura, Eco criava autêntica literatura.

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25/09/2012

Leitura em espelho: NÃO CONTEM COM O FIM DO LIVRO e A QUESTÃO DOS LIVROS

“Também aprendemos um monte de coisas lendo simples resenhas…” (Umberto Eco)

BIBLIOTECÁRIOS DE BABEL- primeira parte

A frase acima das fotos até poderia ser o mote do meu blog, já que nela aparecem os vocábulos monte e resenhas. É pena que ela se encontra no seguinte trecho, que eu achei incrivelmente frívolo e besta: “Quantos de nós já não se alimentaram do simples perfume de livros que víamos em prateleiras mas que não eram os nossos? Contemplar esses livros para deles extrair saber. Ora, uma razão para ser otimista é que cada vez mais pessoas têm acesso hoje à visão de uma grande quantidade de livros. Quando eu ainda era criança, uma livraria era um lugar muito escuro, pouco acolhedor. Você entrava, um homem vestido de preto perguntava-lhe o que você desejava. Era tão assustador que você não cogitava demorar-se. Ora, nunca houve na história das civilizações tantas livrarias quanto hoje, belas, iluminadas, onde você pode passear, folhear, fazer descobertas em três ou quatro andares, as Fnac na França, as livrarias Feltrinelli na Itália, por exemplo. E, quando vou a um desses lugares, descubro que estão cheios de jovens. Repito que não é necessário que eles compreme nem sequer que leiam. Basta folhear, dar uma olhsfs ns quarta capa. Também aprendemos um monte de coisas lendo simples resenhas. É possível objetar que em seis bilhões de seres humanos a porcentagem dos leitores continua muito baixa. Mas, quando eu era garoto, éramos apenas dois bilhões no planeta e as livrarias viviam desertas. A porcentagem parece mais favorável em nossos dias.”

Nos últimos meses, dois lançamentos vieram se somar à intensa discussão atual sobre o futuro do livro impresso, oferecendo a oportunidade de conhecer as posições de intelectuais e escritores da eminência de Robert Darnton,  Jean-Claude Carrière e do Umberto Eco da citação acima: pela Companhia das Letras, A questão dos livros; pela Record, Não contem com o fim do livro (cujo título original é bem mais saboroso: N´esperez pas vous débarrasser des livres). Tratarei primeiramente do segundo.

Jean-Philippe de Tonnac manteve longos colóquis (que viraram, evidentemente, um livro, como não podia deixar de ser!) com o semiólogo e romancista italiano, autor de O nome da rosa, e o roteirista francês que talvez seja o maior nome europeu na sua área[1]. E tanto Eco quanto Carrière não se mostram muito preocupados de que o e-book, as mídias eletrônicas vão substituir o livro tal como conhecemos hoje: “O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados,não podem ser aprimorados. Você não pode fazer uma colher melhor que uma colher… O livro venceu seus desafios e não vemos como, para o mesmo uso, poderíamos fazer algo melhor que o próprio livro. Talvez ele evolua em seus componentes, talvez as páginas não sejam mais de papel. Mas ele permanecerá o que é”.

Tendo liquidado a questão com otimismo e chalaça, logo de início, como são recheadas as duzentas e tantas páginas de Não contem com o fim do livro?

Não se encontrará nenhuma reflexão aprofundada, sagaz ou surpreendente sobre a mudança no paradigma de leitura, da percepção do leitor quanto ao ato de ler, e Eco & Carrière manifestam uma singular convicção de que haverá mais leitores no futuro (mas como vimos logo na abertura, para Eco, o fato de as pessoas freqüentarem livrarias como se freqüenta quaisquer lojas de departamento ou shoppings, o leitor tomado basicamente como consumidor, e esquecendo de que o pessoal das classes D e E, e tenho minhas dúvidas sobre a classe C, a não ser os seus egressos “alternativos”, não ousa ir a lugares assim, que geralmente têm uma aura mais esnobe e intimidadora; e  aproveito para lembrar algumas palavras de Jean-Paul Sartre em Questões de Método“…numa sociedade onde tudo se compra, as possibilidades de cultura são praticamente eliminadas para os trabalhadores, quando a alimentação absorve 50% ou mais de seu orçamento. A liberdade dos burgueses, ao contrário,  reside na possibilidade de consagrar uma parte sempre crescente de sua renda aos mais variados campos de despesas”, , palavras publicadas há 50 anos e que ainda valem hoje), embora vejamos inquietantes indícios de que uma onda de analfabetismo real ou funcional varrerá todos os nossos alicerces culturais numa escala de tempo muito próxima.

Mas não, o que ocupa os dois entrevistados é sua condição de bibliófilos (aliás, José Mindlin é citado diversas vezes), de colecionadores (ambos possuem bibliotecas imensas e muitos livros raros e caros). Chega um ponto em que a vida entre livros fica equiparada à dos colecionadores de vinhos e selos. E então a trivialidade e auto-complacência destiladas em Não contem com o fim do livro começa a incomodar.

Conforme fui prosseguindo a leitura, fui me esquecendo progressivamente dos filmes admiráveis que Carrière ajudou a criar (A bela da tarde, O discreto charme da burguesia, A Via Láctea, Danton, Mahabharata) e do meu especial apreço por Eco tanto como teórico quanto como romancista (e da minha convição de que ele deveria ganhar o Nobel): sentia que estava acompanhando a conversa de dois velhos tarados ou dois empedernidos pedófilos, gabando-se de suas perversões e sacanagens, ou de dois nobres do ancien regime francês, pré-Revolução, ostentando sua gula, luxúria e vaidade, enquanto o povo passava fome e privações.

Claro, ambos têm todo o direito de viver bem e desfrutar dos seus prazeres. Só que tudo fica tão blasé, e parece que eles estão tão acostumados ao espetáculo do mundo (Eco diz que, pois estão próximos de se tornarem octogenários, “vivemos cada vez mais e temos a possibilidade de terminar nossos dias numa boa forma insolente”), no qual impera a burrice a estupidez (um tema comum à obra dos dois), que o melhor é dois veteranos trocarem anedotas eruditas, as quais no são ditas com um ar cansado e bolorento, como se eles as tivessem contado e recontado muitas e muitas vezes.

As inteligências afiadas, infelizmente, às vezes também ficam gagás. Esperemos que temporariamente.

(resenha publicada, de forma mais condensada, em “A Tribuna” de 10 de agosto de 2010)


[1] Colaborador tanto do genial Buñuel quanto do, a meu ver, superestimado Milos Forman. Uma colaboração recente entre os dois foi Sombras de Goya,  que não passa de um bom filme, muito convencional. Não conheço  a produção de Forman  na sua terra natal, a Tchecoslováquia, mas após sua ida a Hollywood, tirando o admirável (se minha lembrança  não falseia as coisas) Taking off, tudo o que veio depois e que eu assisti, não me causou maior impressão (e se causou foi mais negativa que positiva), a não ser  as coreografias de Hair e as notáveis  interpretações que ele extraiu em Valmont. Particularmente Um estranho no ninho & Amadeus tiveram uma recepção exagerada, hiperbólica mesmo.

Comentar essa colaboração com o tcheco Forman me faz lembrar que Carrière foi co-roteirista da adaptação de A insustentável leveza do ser (realizada por Philip Kaufman) do compatriota do diretor de O povo contra Larry Flint (outro filme bom e convencional), Milan Kundera. Há uma aura kunderiana nas seguintes palavras de Carrière: “O que mais me impressiona é a completa extinção do presente. Estamos obcecados como nunca pelas modas retrô. O passado nos alcança a toda velocidade, daqui a pouco teremos de nos curvar às modas do trimestre precedente. O futuro é como sempre incerto e o presente estreita-se progressivamente e se dilui.”

Bibliotecários de Babel (segunda e última parte)

“A leitura permanece um mistério. Como os leitores entendem os sinais na página impressa? Quais são os efeitos sociais dessa experiência? Como ela variou? Estudiosos da literatura côo Wayne Booth, Stanley Fish, Wolfgang Iser, Walter Ong e Jonathan Culler tornara a leitura uma preocupação central da crítica textual porque compreenderam a literatura como uma atividade, a construção de sentido dentro de um sistema de comunicação,e não como um cânone de textos”.

É irônico que eu tenha me interessado por A Questão dos Livros [The case for books]mais com o objetivo de enriquecer e complementar, em razão da  proximidade temática com  Não contem com o fim do livro e, no final das contas, como se pode verificar na primeira parte, as entrevistas de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, a respeito dos quais eu tinha tanta expectativa, se revelaram banais, uma decepção. E a coletânea de ensaios de Robert Darnton (um dos mais respeitados historiadores contemporâneos, especialista no século XVIII, com destaque para o Iluminismo francês, e cuja obra não conhecia ainda, já que não se tem tempo de ler tudo, apesar de já ter me interessado por O grande massacre de gatos, O Iluminismo como negócio e sobretudo Os Best-sellers proibidos na França pré-revolucionária) pode ser considerada um dos melhores lançamentos do ano. É um livro maravilhoso, que eu recomendo entusiasticamente..

Darnton também se mostra otimista com relação ao artefato de leitura em que se baseia nosso tipo de civilização. Mas esteve pessoalmente envolvido num ambicioso empreendimento de digitalização, o que dá um sabor todo especial à sua discussão (afora sua sedutora prosa): em 1997, ele foi o responsável pelo Gutenberg-e, premiação de monografias, e sua preparação e publicação no formato eletrônico (muitos autores de teses não estavam encontrando mercado para lançamento em formato impresso). Eu nunca pensei que ia mergulhar fundo e me interessar tanto pelas tramitações acadêmico-burocráticas de um projeto, mesmo que ele tivesse a função pioneira de “abrir caminho para um novo tipo de difusão do conhecimento, a monografia eletrônica de primeira categoria. Parece certo que determinados tipos de livro eletrônico irão prosperar no futuro próximo, mas isso só será feito corretamente se uma organização como a AHA [American Historical Association] tomar a frente de seu desenvolvimento determinando padrões e legitimando essa iniciativa aos olhos de uma classe profissional composta por céticos”.

Deixo para o leitor desse imperdível A Questão dos Livros saber se o empreendimento vingou. Ou, se vingou, foi nos moldes sonhados por Darnton (cito, entretanto, uma passagem reveladora: “No ano passado, o conselho da AHA votou por tirar das minhas mãos a supervisão cotidiana do Gutenberg-e e consigná-la ao Departamento de Pesquisa…Não creio que ninguém estivesse insatisfeito com meu gerenciamento, mas havia uma sensação de que o Gutenberg-e deveria fazer parte das operações normais da Associação, em vez de ser o projeto de estimação de Robert Darnton”.

Os ensaios (divididos em três seções, “Futuro”, “Presente” “Passado”) são quase todos irretocáveis e envolventes, e discutem a mais ampla gama de assuntos que se pode imaginar, desde o que o Google pode fazer com o futuro da publicação eletrônica, passando pelo massacre físico de milhões de volumes das bibliotecas públicas norte-americanas para que a digitalização dos mesmos se efetivasse, até apanhados históricos sensacionais sobre a importância da bibliografia, sobre o paradigma de leitura totalmente diferenciado do nosso, no início da Era Moderna, sem falar no meu favorito, uma panorâmica da publicação e divulgação das obras de Voltaire.

No primeiro caso, o da bibliografia (A importância de ser bibliográfico), ainda mais numa época como a nossa em que “graças à internet, os textos se tornaram ao mesmo tempo mais disponíveis e menos confiáveis”, ele mostra como a comparação de exemplares das primeiras edições (todos apresentando discrepâncias) ajudou a montar um cânone shakespeariano ainda não-definitivo, porém o mais confiável a que se pôde chegar, e discute o futuro dessa área (cuja zona fronteiriça conflita com a dos historiadores do livro: “Ao contrário dos bibliógrafos,  os historiadores do livro estudavam todos os aspectos da produção e difusão da palavra impressa,  incluindo suas conexões  com mudanças sociais e políticas. Para eles, o ano de 1710 se destacou como momento decisivo  na história do copyright…”), para a  qual confluem várias disciplinas.

No caso do paradigma de leitura (Os mistérios da leitura), um assunto premente nesta nossa época em que se criam novos suportes físico-cognitivos para essa atividade, ficamos sabendo que os homens do passado liam sem a preocupação de continuidade, interessados em anotar passagens para suas próprias antologias pessoais, seus livros exemplares de como se conduzir na vida: “Os ingleses do início da era moderna liam de forma intermitente, pulando de um livro para outro. Dividiam os textos em fragmentos, que agrupavam em novos padrões ao transcrevê-los em seções diferentes de seus cadernos… ler e escrever eram atividades inseparáveis. Pertenciam a um esforço contínuo de compreender as coisas, pois o mundo era repleto de sinais: era possível navegar por ele utilizando a leitura, e, ao manter u  registro do que lia, você criava seu próprio livro, um livro com a marca da sua personalidade”. Acho que esse aperitivo já dá uma indicação do interesse do texto.

E no ensaio sobre a obra de Voltaire (O que é a história do livro?), parece que estamos fazendo uma viagem no tempo, conhecendo intimamente os livreiros-distribuidores que atendiam à imensa demanda da obra do genial e irreverente autor francês: “…eu gostaria de me concentrar no elo menos conhecido no processo de difusão, o papel do livreiro, tomando como exemplo Isaac-Pierre Rigaud, de Montpellier… Pessoalmente, não simpatizava nem um pouco com Voltaire”. Você pensa, leitor, que ele não simpatizava por motivos religiosos, ideológicos, chocado pela verve e iconoclastia voltaireanas? Nada disso: “…deplorava a tendência do filósofo de remendar seus livros, adicionando e corrigindo trechos enquanto colaborava em edições piratas pelas costas dos editores originais. Esses hábitos geravam reclamações dos compradores, que não concordavam em receber textos inferiores (ou insuficientemente audaciosos)…” Uma delícia.

Uma leitura como essa nos faz contar com um longo futuro para os livros…Mas é o futuro, e como saber? O próprio Darnton está há uma década preparando um e-book para revolucionar a sua prática de publicação de material pesquisado: “Não que uma publicação eletrônica ofereça atalhos, nem que eu tenha a intenção de despejar na internet todo o conteúdo das minhas caixas… Meu plano é trabalhar com esse material de diversas formas, abordando os temas essenciais na narrativa em primeiro plano e incluindo nos planos inferiores mini-monografias e documentos selecionados nos arquivos mais ricos. Meus leitores poderão se servir do que quiserem, nas porções que preferirem, e até mesmo interligar meu trabalho com as pesquisas de outros na florescente área da história do livro. Um livro eletrônico sobre a história do livro na era do Iluminismo! Não consigo resistir. Vou mergulhar…”

(resenha  publicada  em “A Tribuna” no dia 17 de agosto, de forma mais condensada)

16/11/2011

ECOTERAPIA: a auto-ajuda necessária

Resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em quinze de julho de 2003

Numa excelente entrevista a Roberto D´Ávila, Marcelo Gleiser afirmou que é muito difícil idéias ou pesquisas falsas/anti-éticas durarem muito tempo porque a comunidade científica tem sempre como comprovar ou negar sua validade e credibilidade.

Será? O que o físico teórico e autor de livros de divulgação científica (e pelo que está anunciando, futuro romancista) não levou em conta é que essas pseudo-idéias ou pesquisas não atingem somente a comunidade científica. A força do falso, um dos textos reunidos por Umberto Eco em SOBRE A LITERATURA, discute justamente como “no curso da história, tiveram crédito crenças e afirmações que a Enciclopédia [no sentido de saber consolidado]  atual desmente factualmente…” Eco informa até os sites nos quais teremos acesso a informações sobre a teoria da “Terra Oca”: “Existem por aí muitíssimos seguidores da teoria. E é inútil dizer que os sites (e os livros que divulgam) foram criados por alguns espertalhões que especulam com um público de tolos e/ou devotos da New Age. O problema social e cultural não é representado pelos espertalhões, mas pelos tolos, que evidentemente ainda são legião”.

Sempre imagino Eco com os traços psicológicos de Guilherme de Baskerville, o monge-detetive de O nome da rosa, presumivelmente inspirado em Sherlock Holmes. Pois é, ele pode até conter uma homenagem ao herói de Conan Doyle, contudo Baskerville é muito mais inteligente do que o limitado e superestimado Holmes (cujas qualidades como personagem são de outra ordem, a meu ver), muito mais perceptivo e compassivo em relação ao que é humano, ideológica e passionalmente falando. Assim também é o pensador Umberto Eco: sempre brilhante, mas sempre interessado pelos fenômenos humanos, pelas ideologias e pelos investimentos passionais da humanidade, até mesmo pelos tolos que ainda formam legião.

Muitos dos temas de SOBRE A LITERATURA, que resgata palestras e debates mundo afora, são difíceis. O método do grande escritor italiano é um pouco como o que descreve em Ironia Intertextual e Níveis de Leitura. Quem não perceber tudo não será excluído do prazer da leitura. Ele está se referindo a obras de ficção (incluindo as suas) que trabalham com um duplo código de leitura (o leitor é uma peça-chave nos esquemas teóricos de Eco). Poderia estar se referindo aos ensaios. A imagem que utiliza é ironicamente aristocrática, a ironia e o sabor da maneira como é colocada tirando o travo da antipatia classista que ela pudesse sugerir: “É como um banquete em que sejam distribuídos no andar de baixo os restos da ceia posta no andar superior: não os restos da refeição, mas os da panela e bem postos eles também e como o leitor ingênuo acredita que a festa desenrola-se em um andar apenas, há de saboreá-los pelo que valem (e serão, ao fim e ao cabo, saborosos e abundantes), sem supor que alguém tenha recebido mais”.

Assim, leitores do andar de baixo ou do andar superior podem apreciar a análise do Paraíso de Dante e do estilo retórico do Manifesto Comunista de Marx e Engels; ensaios sobre o conceito de símbolo e sobre a ideologia do estilo; a história de três gerações intelectuais italianas e sua relação com a idéia da América (leia-se EUA). São pontos altíssimos o ensaio (mais um, e que bom!) sobre Joyce, a intersecção entre a biblioteca de Dom Quixote de La Mancha e a biblioteca de Babel de Jorge Luis Borges (e, depois, um ensaio maravilhoso sobre a influência do autor argentino na sua própria trajetória), o ensaio sobre os rípios (os pontos amorfos na estrutura de uma obra), além de um texto sobre a Poética de Aristóteles.

Eco prolonga o seu delicioso e inestimável Pós-escrito a O nome da rosa, de 1984, em Como escrevo, reflexão sobre sua produção ficcional que se estende a seus três outros romances já publicados (O pêndulo de Foucault; A ilha do dia anterior; Baudolino).

E no ensaio que deu origem ao título da coletânea, Sobre algumas funções da literatura, ele surpreendentemente parece se alinhas ás reflexões de Harold Bloom em O cânone ocidental da literatura como confronto com nossa mortalidade: “A função dos contos imodificáveis é precisamente esta: contra qualquer desejo  de mudar o destino, eles nos fazer tocar com os dedos a impossibilidade de mudá-los. E assim fazendo, qualquer que seja a história que estejam contando, contam também a nossa, e por isso nós os lemos e os amamos. Temos a necessidade de sua severa lição repressiva… Creio que esta educação ao fado e à morte é uma das funções principais da literatura. Talvez existam outras, mas não me vêm à mente agora”.

17/04/2011

GUGLIELMO, GUILHERME, WILLIAM: os trinta anos de O NOME DA ROSA

(resenha publicada de forma mais condensada em A TRIBUNA de Santos, em 28 de dezembro de 2010)

De vez em quando surge um livro que se torna fundamental (além de   sua qualidade) por satisfazer anseios de que os leitores talvez nem tivessem consciência. Um grande exemplo é O nome da rosa [Il nome della rosa]. Lançado em 1980 (no Brasil, foi traduzido em 1983 pela Nova Fronteira, que vivia então um grande momento), fez com que descobríssemos,  maravilhados, que não havia dicotomia entre o prazer da leitura e a exigência literária, que ninguém precisava se envergonhar de amar a fabulação narrativa, que isso não nos tornava escravos da indústria dos best sellers e da facilidade, que podia haver fruição de uma narrativa bem-arquitetada sem culpa, de que era possível ainda se escrever no sentido do folhetim: um livro a se devorar, absorvente do começo ao fim, ainda que fosse um  truque de prestidigitação, escondendo questões menos palatáveis e acessíveis ao gosto popular.

Os anos só confirmaram essa miraculosa alquimia conseguida por Umberto Eco: eu mesmo já li cinco vezes O nome da rosa (a última delas, há poucos dias,  aproveitando seu relançamento recente pela Record, a qual, com um mínimo trabalho de revisão, utiliza a tradução da Nova Fronteira, realizada por Aurora Fornoni Bernardini & Homero Freitas de Andrade; o detalhe mais notável é terem modificado o”despenseiro” Remigio para “celeireiro”) e, após tê-lo devorado da primeira vez pela sua história engenhosa e bem urdida, nunca deixo de encontrar coisas novas e surpreendentes em sua tessitura textual (sei por exemplo,agora, apesar de Eco alertar para o perigo de se abandonar o livro nas primeiras 100 páginas, que elas não são problema para o leitor comum, e sim o terceiro dia, o mais árduo em termos de leitura “comum”, pois praticamente nada acontece e ficamos mais no esclarecimento das seitas heréticas do século XIV; e no entanto mesmo isso é uma armadilha do grande escritor italiano, já que é neste terceiro dia que ocorre o encontro amoroso-sexual de Adso com a moça sem nome), e sempre sou atraído de novo para ele devido ao seu carisma e qualidade de romance único (e olhe que não faltaram imitações).Pode-se dizer que, em certo sentido, é  “o” livro da nossa época.

Em qualquer nível de leitura, o que nos mobiliza é a inesquecível dupla central: o narrador beneditino (já velho, tomado por um sentimento apocalíptico de “fim de mundo”,  aliás utilizando todos os clichês do tempo a respeito, relembrando seu tempo de  noviço), Adso de Melk, e seu mestre franciscano (e que seria um Sherlock Holmes, se no fundo não fosse uma paródia do método sherlockiano [1]), Guilherme (no original, Guglielmo; e na imperdoável versão cinematográfica, numa incrível interpretação de Sean Connery, William) de Baskerville, em suas aventuras durante sete dias, em 1327, numa abadia italiana, onde ocorre uma série de crimes enquanto se dá um encontro entre uma legação papal (chefiada por inquisidores) e membros de ordens mendicantes (consideradas heréticas) ligados ao imperador Ludovico (que se opõe a João XXII) para discutir se Cristo e seus apóstolos eram ou não pobres; na verdade, como observa Guilherme,  a questão mesmo é decidir se a igreja deve ser pobre, num momento em que ela se define pela corrupção e pela pompa desmoralizadora, e, mais ainda, se deve abdicar de sua intervenção no mundo secular, assunto que nunca saiu de moda, como vimos nas últimas eleições. Como pano de fundo, a idéia das seitas heréticas como “um mundo de ponta cabeça”, uma realidade que se quer monolítica virada ao avesso[2].

A abadia é famosa por sua biblioteca, cujo acesso é proibido. Ao tentar penetrá-la, Guilherme e Adso descobrem um labirinto. Monges morrem por causa de um manuscrito  envenenado (em todos os sentidos), cuja aquisição remonta à história secreta da sucessão dos bibliotecários do lugar.

O mistério e sua investigação nos colocam diante de uma visão abissal (porque roça a questão do poder e da autoridade) da ordem e da desordem: a cristandade (da maneira como se configurou), as ricas abadias, o labirinto, o conhecimento livresco, o romance policial clássico, tudo isso tenta promover um ideal de ordem no mundo (muitas vezes, aliás, tentando mantê-lo estático e imutável, como o conhecimento trancado na biblioteca labiríntica), enquanto os acontecimentos parecem indicar que a desordem e o caos são, no fundo, inerentes á vida: “Encontro o deleite mais jubiloso em desenredar uma bela intriga e intrincada intriga… como filósofo,  duvido que o mundo tenha uma ordem, consola-me descobrir, se não uma ordem, pelo menos uma série de conexões  em pequenas porções dos negócios do mundo”.[3]

A ordem monolítica virada do avesso vai transtornar até os sonhos de Adso como jovem em formação que está aprendendo a “ler” o mundo, como vemos na deliciosa passagem abaixo, com sua sibilina referência a Freud e ao desconstrucionismo advindo dele:

“__ Tu vivestes nestes dias, meu pobre rapaz, uma série de acontecimentos em que toda regra justa parece ter sido desfeita. E de manhã reaflorou em tua mente adormecida a lembrança de uma espécie de comédia em que, seja mesmo talvez com outras intenções, o mundo virou de cabeça para baixo… para reviver um grande carnaval em que tudo parece andar pelo lado errado e, todavia… cada um faz exatamente aquilo que faz na vida. E no fim te perguntaste, no sonho, qual é o mundo errado, e o que quer dizer andar de cabeça para baixo. Teu sonho não sabia mais o que era o alto e onde o baixo, onde a morte e onde a vida. Teu sonho duvidou dos ensinamentos que recebeste.

__ Mas então os sonhos não são mensagens divinas, são devaneios diabólicos, e não contêm verdade alguma?

__ Não sei, Adso, disse Guilherme. Já temos tantas verdades nas mãos que no dia em que aparecesse também alguém pretendendo tirar uma verdade de nossos sonhos, então estariam realmente próximos os tempos do Anticristo…”

“__ Tu hai vissuto in questi giorni, mio povero ragazzo, una serie di avvenimenti in cui ogni retta regola sembra essersi sciolta.  E stamane è riaffiorato alla tua mente addormentata il ricordo di uma specie di commedia in cui, sia purê forse con altri intenti, il mondo si poneva a testa in giù… un gran carnevale in cui tutto sembra andare per il verso sbagliato, e tuttavia… ciascuno fa quello che ha veramento fatto nella vita. E alla fine ti sei chiesto, nel sogno, quale sia il mondo sbagliato, e cosa voglia dire procedere a testa in giù. Il tuo sogno non sapeva più dove fosse l´alto e dove il basso, dove la morte e dove la vita. Il tuo sogno ha dubiato degli insegnamenti che hai ricevuto.

__ Ma allor i sogni non sono messaggi divini, sono vaneggiamenti diabolici, e non contengono nessuna verità!

__ Non lo so, Adso- disse Guglielmo. Abbiamo già tante verità nelle mani che il giorno che arrivasse anche qualcuno a pretender di cavare una verità dai nostri sogni, allora sarebbero davvero prossimi i tempi dell`Anticristo…”

Esses elementos todos se combinam numa cosmologia borgiana, onde uma biblioteca, quem diria, contém aventuras e perigos que colocam no chinelo qualquer Indiana Jones. Se “o paraíso deve ser algo bem parecido com uma biblioteca” (Borges), também aí pode haver a Queda. Nem todas as árvores do conhecimento podem ser tocadas. Sob o risco de o homem, abandonado por Deus, ter de pensar por si mesmo:

“__ Mas quem tinha razão, quem tem razão, quem errou? –perguntei perdido.

__ Todos tinham a sua razão, todos erraram.

__ E o senhor, gritei num ímpeto de rebelião, por que não toma posição, por que não me diz onde está a verdade?”

Guilherme permaneceu um tempo em silêncio, levantando em direção à luz  a lente na qual estava trabalhando. Depois abaixou-a sobre a mesa e me mostrou, através da lente, um instrumento de trabalho: Olha, disse-me, o que estás vendo?

__ O instrumento, um pouco maior.

__ É isso, o máximo que se pode fazer é olhar melhor.”

“__Ma chi aveva ragione, chi ha ragione, chi ha sbagliato?-domandei smarrito.

__ Tutti avevano la loro ragione, tutti hanno sbagliato.

__ Ma voi,  gridai quasi in un ímpeto di rebellione, perché non prendere posiozine, perché non mi dire dove sta la veritá?

Guglielmo stette alquanto in silenzio, sollevando verso la luce la lente Allá quale stava lavorando. Poi la abbassò sul tavolo e mi mostro, attraverso la lente, un ferro da lavoro: Guarda, mi disse, cosa vedi?

__Il  ferro, un poco più grande.

__Ecco, il massimo che si può fare è guardare meglio.”


[1] “Diante de alguns fatos inexplicáveis deves tentar imaginar muitas leis gerais, em que não vês ainda a conexão com os fatos de que estás te ocupando; e de repente, na conexão imprevista de um resultado, um caso e uma lei, esboça-se um raciocínio que te parece mais convincente do que os outros. Experimentas aplicá-lo em todos os casos similares, usá-lo para daí obter previsões, e descobres que adivinhaste. Mas até o fim não ficarás nunca sabendo quais predicados introduzir no teu raciocínio e quais deixar de fora. E assim faço eu agora. Alinho muitos elementos desconexos e imagino as hipóteses. Mas preciso imaginar muitas delas, e numerosas delas são tão absurdas que me envergonharia de contá-las. Vê, no caso do cavalo Brunello, quando vi as pegadas, eu imaginei muitas hipóteses complementares e contraditórias… Eu não sabia qual era a hipótese correta até que vi o despenseiro e os servos que procuravam ansiosamente. Então compreendi que a hipótese de Brunello era a única boa, e tentei provar se era verdadeira, apostrofando os monges como fiz. Venci, mas também poderia ter perdido. Os outros consideraram-me sábio porque venci, mas não conheciam os muitos casos em que fui tolo porque perdi, e não sabiam que poucos segundos antes de vencer, eu não estava certo de não ter perdido…”

“Di fronte ad alcuni fatti inspiegabili tu devi provare a immaginare molte leggi generali, di cui non vedi ancora la connessione coi fatti di cui ti occupi: e di colpo, nella connessione improvisa di un resultato, un caso e una legge, ti si profila un ragionamento che ti pare più convincente degli altri. Provi ad applicarlo a tutti i casi simili, a usarlo per trarne previsioni, e scopri che avevi indovinato. Ma sino alla fine non saprai mai quali predicati introdutre nel tuo ragionamento e quali lasciat cadere. E cosi faccio ora io. Allineo tanti elementi sconessi e fingo delle ipotesi. Ma ne devo fingire molte, e numerose sono quelle cosi assurde che mi vergognerei di dirtele. Vedi, nel caso dell cavalo Brunello, quando vidi le tracce, io finsi molte  ipotesi complementari e contraddittore… Allora capii che l´ipotesi di Brunello era la sola buona, e cercai di provare se fosse vera, apostrofando i monaci come feci. Vinsi, ma avrei anche potuto perdere. Gli altri mi hanno creduto saggio perché ho vinto, ma non  conoscevano i molti casi in cui sono stato stolto perché ho perso, e non  sapevano che pochi secondi prima di vencere io non erro sicuro che non avessi perduto…”

[2] O que diz Remigio, o despenseiro (ou celeireiro)sobre sua juventude “herética”, como assecla de Frei Dulcino:

“Dulcino representava a rebelião, e a destruição dos senhores… Foi, não sei como dizer, uma festa dos loucos, um grande carnaval… respirávamos um ar… posso dizer  de liberdade? Não sabia antes o que era a liberdade, os pregadores nos diziam: A verdade vos tornará livres. Sentíamo-nos livres, pensávamos que era a verdade. Pensávamos que tudo aquilo que professávamos era justo.”

“Dolcino rappresentava la ribellione, e la distruzione dei signore… È stata… non so come dire, una festa dei folli, un bel carnevale… respiravamo un´aria…posso dire di libertà? Non sapevo prima cosa fosse la libertà, i predicatori ci dicevano: La verità vi farà liberi. Ci sentivamo liberi, pensavamo che fosse la verità.  Pensavamo che tutto quello che facevamo fosse giusto…”

Ou, em outro sentido, a inversão e perversão do papel de uma biblioteca, tal como praticada na abadia:

“__ Não poderia, lendo Alberto, saber o que poderia ter dito Tomás? Ou lendo Tomás, saber o que tinha dito Averroes?

Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si. À luz dessa reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era então o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de forças não domáveis por uma mente humana, tesouro de segredos emanados de muitas mentes, e sobrevividos à morte daqueles que os produziram, ou os tinham utilizado.

__ Mas então, eu disse, de que serve esconder os livros, se pelos livros se pode chegar aos ocultos?

__ No decorrer dos séculos não serve para nada. No arco dos anos e dos dias  serve para alguma coisa. Vê como nos encontramos de fato perdidos.

__ E então uma biblioteca não é um instrumento para divulgar a verdade, mas para retardar sua aparição?-perguntei estupefato.

__ Não sempre e não necessariamente. Neste caso é.”

“__ Non potresti, leggendo Alberto, sapere cosa avrebbe potuto dire Tommaso? O leggendo Tommaso sapere cosa avesse detto Averroè?

Ora mi avvedevo che non di rado i libri parlano  di libri, ovvero è come si parlassero fra loro.  Alla luce  di questa riflessione, la biblioteca  mi parve ancora più inquietante.  Era dunque il luogo di un lungo e secolare  sussurro,  di un dialogo impercettibile  tra pergamena e pergamena, una cosa viva, un ricettacolo  di potenze non dominabili da una mente umana, tesoro di segreti emanati  da tante menti,  e sopravvissuti alla morte  di coloro che li avevano prodotti, o se ne erano fatti tramite.

__ Ma  allora, dissi, a che serve nascondere i libri, se dai libri palesi si può risalire a quelli occulti?

__ Sull´arco dei secoli non serve a nulla. Sull´arco degli anni e dei giorni serve a qualcosa. Vedi infatti come noi ci troviamo smarriti.

__ E quindi una biblioteca  non è uno strumento per distribuire la verità, ma per  ritardarne l`apparizione?- chiesi stupiro.

__ Non sempre e non necessariamente. In questo caso lo è.”

[3] “O máximo de confusão somado ao máximo de ordem: parece-me um cálculo sublime. Os construtores da biblioteca eram grande mestres.”

“Il massimo di confusione raggiunto con il massimo di ordine: mi pare un calcolo sublime. I costruttori della biblioteca erano dei gran maestri.”

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