MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

25/04/2011

Destaque do blog: UM CÂNTICO PARA LEIBOWITZ

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TRECHOS DA PRIMEIRA PARTE:

“– Imbecil! Não estou pedindo a você para me dizer o que é que ele era. Sei muito bem o que era, se é que você viu– O abade Arkos deu várias pancadas na mesa para acentuar o que dizia. — Quero saber se você, você!, tem absoluta certeza de que ele era apenas um homem comum!

       Essas perguntas estavam confundfindo o irmão Francis. Para ele não havia uma nítida linha divisória entre a ordem natural e a sobrenatural, mas antes uma zona intermediária mais ou menos obscura…uma região confusa, o preternatural, onde coisas deitas de simples terra, ar, fogo ou água tinham uma tendência a se comportar estranhamente, como coisas que não eram deste mundo… Ele nunca tinha ´certeza absoluta´ de nada, como o abade queria que tivesse…”

“Emily tinha um dente de ouro. Emily tinha ujm dente de ouro. Emily tinha um dente de ouro. Era, na verdade, perfeitamente certo. Tratava-se de uma dessas trivialidades históricas que, de algum modo, conseguem ficar na memória dos vivos, em lugar dos fatos importantes que deveriam ser lembrados, mas que nunca foram registrados, obrigando algum historiador monástico do futuro a escrever: Nada do que contém a Memorabilia ou qualquer fonte arqueológica até agora descoberta revela o nome do chefe que ocupava o Palácio Branco durante a sexta década do século XX… E, no entanto, estava claramente registrado na Memorabilia que Emily tinha um dente de ouro…”

“A Simplificação cessara de obedecer a qualquer plano ou propósito logo depois de ter começado, e tornou-se um frenesi insano de assassinato e destruição das massas, como só ocorre quando já não há mais vestígio de ordem social. A loucura foi transmitida às crianças que tinham aprendido não só a esquecer, mas a odiar, e vagas de fúria reapareceram esporadicamente até na quarta geração após o Dilúvio. Então, não mais se destruíam os sábios, que já não existiam, mas os simples alfabetizados.”‘)

APONTAMENTOS DE LEITURA (16.10.2009)

Quando eu passei a comprar livros sistematicamente, no começo dos anos 80, além das livrarias e dos sebos, havia o Círculo do Livro.  Foi através dele que tive minha primeira experiência com UM CÃNTICO PARA LEIBOWITZ, de Walter M. Miller Jr (1923-1996). A capa da edição do Círculo  é a imediatamente acima, breguinha de doer. A obra, porém, foi um impacto e um  deslumbramento que se repetem agora que estou me ocupando dela  devido ao cinqüentenário do seu lançamento em livro (a publicação original ocorreu num magazine de ficção científica, uns quatro anos antes, em forma de três novelas; creio que a última publicação no Brasil foi pela Melhoramentos, na mesma ótima tradução de Maria da Glória de Souza Reis, embora também com uma capa horrível).

UM CÂNTICO PARA LEIBOWITZ  é tão bom quanto Fundação, de Isaac Asimov (com o qual tem pontos de contato, embora seja melhor escrito; não melhor romance ou realização ficcional, apenas melhor escrito; outro livro com o qual ele apresenta afinidades temáticas é O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse) ou Solaris, de Stanislaw Lem.

Apesar do título elegíaco e do próprio tema apocalíptico, o livro é extremamente bem-humorado: Miller se vale, de forma muito inspirada, do imaginário católico (e da terminologia católica) para nos apresentar um futuro pós-devastação pela guerra nuclear, no qualo Ordens monásticas  procuram preservar os fragmentos da cultura e de conhecimento, pois as gerações que sobreviveram ao desastre optaram por uma drástica Simplificação, ou seja, a martirização de todos os sábios, intelectuais, eruditos e letrados que, de forma ativa ou não, colaboraramm para que a civilização chegasse àquele estágio. Quase todo o nosso arsenal cultural  foi destruído, e só a pertinácia de alguns monges permitiu que sobrasse algum vestígio.

Esse é o quadro geral, e não é de forma alguma original com relação ao Zeitgeist, o espírito da época dos anos pós-Segunda Guerra (dominados pela Guerra Fria), uma vez que a ameaça nuclear penetrava fundo na indústria cultural e na cultura popular, e havia a paranóia da destruição global (hoje, ainda há essa paranóia só que adquiriu outros contornos).

Miller (que escreveu as três partes que compõem o livro mais ou menos quando tinha 32 anos) era católico, tinha sido da Força Aérea norte-americana na Segunda Grande Guerra e evoca-se bastante uma imagem que o impressionou fortemente: o bombardeio de um mosteiro beneditino em  Monte Cassino.

A primeira parte, “Fiat Homo” (um latim meio estropiado, assim como aconteceu na Idade Média, é o meio de comunicação entre os personagens de várias ordens) mostra uma abadia em meio a uma das paisagens desérticas que surgiram a partir da destruição nuclear, seiscentos anos antes (essa parte terminará no ano 3174). O personagem principal é um noviço,  irmão Francis (de Utah), que não sabe se tem a vocação monástica, contudo não há outro caminho intelectual. A abadia é dedicada ao Beato Leibowitz, o qual foi um dos principais mártires da época da Simplificação, e que ao perder contato com a esposa, fez-se religioso. A narrativa se inicia quando está ocorrendo o processo de canonização do Beato (o sobrenome judeu parece não causar espécie alguma nesse nada admirável mundo novo, embora para nós evoque o genocídio dos judeus durante a guerra, a qual, lembrem-se, ainda estava muito próxima na época da publicação original). Como toda a Memorabilia manuseada pelos monges (ou seja, textos, imagens, diagramas, etc), a vida desse santo homem é mal conhecida, a documentação é fragmentária e todos repetem e copiam os conhecimentos sem os entender muito bem. Cultuadores incuiltos, assim como somos da Grécia ou de pretensas civilizações mais antigas (Atlântida, por exemplo), o passa-tocha é mais importante que a compreensão. O que importa é a idéia civilizatória. É o caso  de Roma: o Papa já não está mais na cidade original, destruída, ou em ruínas, tanto faz,  mas em algum lugar que sempre está mudando, porém ainda é o centro religioso: a Nova Roma, onde quer que esteja. Os viajantes utilizam burros, ainda se come pão e queijo e se bebe vinho, mas os caminhos são perigosos porque um bando de monstrengos, seres mal formados, podem atacar, roubar e até devorar suas vítimas. As aves de rapina sobrevoam as paisagens, mais soberanas que o papa.

Pois bem, o irmão Francis está fazendo jejum no deserto durante a Quaresma e encontra um velho peregrino, uma espécie de Judeu Errante, nada simpático, ainda mais para alguém que vive a tortura da fome e da sede e que teme o ataque das aves de rapina e dos lobos e, para isso, tenta construir uma frágil toca para a noite. Só que falta uma pedra para rematar esse abrigo tosco e o velho peregrino é quem acaba indicando a mais adequada. Como está desconfiado dele, Francis não se aproxima muito e o velho coloca uns sinais para que ele a reconheça.

Ao remexer nessa pedra, após a partida do intruso, Francis descobre um antiquíssimo abrigo nuclear, com documentos e restos mortais (que podem pertencer à esposa do Beato Leibowitz; conseguir a data exata da morte dela seria uma ajuda inestimável ao seu processo de canonização, pois dúvidas pairam sobre se, ao tomar o hábito, ele continuava ou não casado, já que não a encontrara em meio ao desastre).

Ao levar uma caixa com achados para a abadia, inicia-se uma deliciosa comédia humana. O abade fica alarmado diante da celeridade com que a boataria e a imaginação romanesca aumentam o acontecido com Francis (há quem diga que ele esbarrou com o próprio Leibowitz), interroga Francis diversas vezes, em diálogos engraçadíssimos e memoráveis. Como o noviço estava em estado de jejum e por isso propenso aos delírios e às alucinações (mesmo que tenha realmente descoberto algo concreto, pois tem a caixa para provar), ele quer um desmentido cabal para encerrar o diz-que-diz. O sadio senso de realidade do noviço poderia ajudar, mas não ajuda (ele diz que pensa ser altamente improvável que tivesse encontrado o Beato Leibowitz, morto há tantos séculos, não diz que é impossível, o que faz toda a diferença do mundo). Como castigo, por sete anos ele é impedido de pertencer à Ordem, tornando-se um noviço veterano, ajudando na cozinha.

Quando Roma mostra interesse pelos documentos encontrados (inclusive, num detalhe muito divertido, pois Miller era engenheiro elétrico, há um diagrama  de uma turbina elétrica que é um dos objetos de devoção e cópia, pois há uma indústria de cópias da Memorabilia do Beato Leibowitz e eles não têm a menor idéia da serventia daqueles artefatos ou conceitos, pois houve um total retrocesso tecnológico, e a narrativa parece antes ambientada no remoto passado do que no futuro por vir), o Abade se torna mais afável e condescendente com Francis e permite que ele tome o hábito, passando a trabalhar na seção de copistas e fazedores de iluminuras. Por quinze anos ele vai trabalhar numa iluminura que recria um diagrama elétrico que ele achou no abrigo nuclear e é ele quem vai levar o original e a cópia (muito mais bonita) para o Papa, durante um faustoso jubileu (como se vê, as cerimônias religiosas sobreviveram ao colapso da civilização, a Roma papal  sobreviveu à Roma de César), no qual, entre outras comemorações, dar-se-á a tão aguardada canonização de Leibowitz.

Na jornada para Roma (que pelo visto agora fica no território dos antigos EUA), Francis, já bem mais velho, é assaltado: roubam-lhe a mula, vários objetos e ainda por cima a cópia na qual trabalhou por 15 anos, pois o ladrão acreditava que era o original. Só fica com ele a sagrada relíquia, que chega sã e salva até o Papa, o qual, após saber das aventuras e desventuras do monge leibowitziano, dá a ele um presente: as duas moedas de ouro que permitiriam pagar o resgate da iluminura (exigência do salteador). Assim, Francis fagueiramente retorna à abadia e leva uma flechada bem entre os olhos, caindo morto no mesmo local onde fora assaltado e sendo enterrado pelo velho peregrino que aparecera a ele quando noviço e que iniciara toda a sua trajetória.

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TRECHO DA SEGUNDA PARTE

“O abade inclinou-se: …Seja bem-vindo em nome de São Leibowitz, Mestre Taddeo. Bem vindo em nome de sua abadia, em nome de quarenta gerações que esperaram pela sua vinda. Esteja em casa. Aqui estamos para servi-lo. –Ass palavras eram sinceras, tinham sido reservadas por muitos anos para esse momento…

      Por um momento seu olhar encotrou o do escolástico. Sentiu esfriar rapidamente seu ardor. Aqueles olhos de gelo –frios, investigadores e cor de cinza. Caóticos, famintos e orgulhosos. Sentia-se estudado por eles, como se fosse uma curiosidade sem vida.

      Fervorosamente, Paulo rezara para que esse momento fosse como uma ponte sobre o abismo de doze séculos– e para que, através dele, o último cientista martirizado de uma era remota pudesse dar a mão ao porvir. Havia, na verdade, um abismo. Isso era claro. O abade sentiu de repente que não pertencia à era presente, que ficara encalhado num banco de areia ao longo do rio do Tempo, e que nunca houvera uma ponte.”

APONTAMENTOS DE LEITURA: A SEGUNDA PARTE, “FIAT LUX”  (19.10.2009)

A segunda parte de UM CÂNTICO PARA LEIBOWITZ se encerra em 3781, já vários séculos depois da descoberta do irmão Francis. O único personagem que se mantém da narrativa anterior é o estranho peregrino, responsável pela descoberta do abrigo nuclear e dos novos documentos para a Memorabilia. Será o mesmo?  O abade Paulo se irrita porque todos o consideram o próprio Judeu Errante (e que está aguardando a vinda do Messias), vivendo há séculos.

Houve progresso e vemos cenas mundanas, na corte de Hannegan, governante que quer criar um Império, unificando todo o antigo território norte-americano e submetendo as tribos nômades. A Memorabilia ainda é guardada, copiada e estudada na erma abadia da Ordem de São Leibowitz, mas há também o Collegium, uma espécie incipiente de Universidade, em que sábios leigos procuram reavivar a ciência. O mais brilhante deles é Mestre Taddeo, um tanto quanto descrente da autenticidade e utilidade da Memorabilia, mas que é recebido na abadia para estudar os documentos… Recebido com desconfiança, mesmo porque vem escoltado por uma guarnição militar de Hannegan, com o propósito expresso de protegê-lo na travessia de regiões perigosas, mas com o propósito oculto de estudar a arquitetura do santuário, que  o torna uma verdadeira fortaleza, de forma a que, numa guerra, ele sirva como fortificação militar, defendendo as fronteiras de um nascente império.

Boa parte da narrativa (tão brilhante quanto a primeira parte, e talvez mais colorida e diversificada) se funda nos debates entre os pontos de vista de Paulo e de Taddeos. Quando este chega, um dos monges (Irmão Kornhoer), que gosta de fazer experiências, acabou de aperfeiçoar um dínamo que permite a iluminação elétrica da sala dos copistas (não é à toa que essa parte chama-se “Fiat Lux”), e para que o dínamo funcione ali, retiram um grande crucifixo que ali estava há séculos (o simbolismo da cena fala por si). No final, quando as posições ideológicas se tornaram bem polarizadas, o abade ordena que recoloquem o crucifixo e, pasmem leitores modernos e esclarecidos, somos quase tentados a ficar do lado dele, mais simpático do que Taddeos. Mas Walter M. Miller Jr. aparentemente não toma partido,  deixa que seus personagens exponham suas idéias e visões do mundo, e todos têm razão em parte, o que significa que nenhum ponto de vista é absoluto.

Taddeos descobre que a Memorabilia não era tão inútil assim e mesmo assim fica um pouco despeitado porque suas “descobertas” científicas e “criações” de conceito são, de fato, redescobertas tardias e recriações do já feito e já pensado em épocas mais evoluídas. E fica espantado como um simplório humilde como Kornhoer chegou a uma invenção sensacional, apenas pelo bom senso prático e pela intuição no uso dos antigos conhecimentos fragmentários e não pelo raciocínio, pela dedução e pela lógica.

As páginas finais dessa parte expõe um cenário de guerra, que também é evolução e mobilidade, após séculos de estagnação e paralisia. Porém, sobranceiras, no deserto e nas regiões ainda inóspitas, as aves de rapina sobrevoam e aguardam.    

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TRECHOS DA TERCEIRA PARTE 

“Velha de séculos mas recentemente alargada, a estrada era a mesma que fora percorrida por exércitos pagãos, peregrinos, camponeses, carroças de burro, nômades, selvagens cavaleiros do leste, artilharia, tanques e caminhões de dez toneladas. Seu tráfego fora intenso, médio ou quase nulo, de acordo com a época ou a estação. Uma vez, há muito tempo, houvera seis pistas e tráfego de robôs. Depois, o movimento cessara, a pavimentação rachara, e uma relva rala chegara a aparecer depois de chuvas ocasionais, através das fendas. A poeira terminara por cobri-la. Os habitante do deserto picaram o concreto quebrado para construir choupanas e barricadas. A erosão a transformou em simples caminho através do deserto. Mas agora havia seis pintas e tráfego de robôs, como antigamente.”

Fogo, o mais belo dos quatro elementos do mundo e, todavia, um elemento do Inferno. Ao mesmo tempo que ardia em adoração no centro do Templo, exterminara a vida de uma cidade, naquela mesma noite, e lançara o seu veneno sobre a Terra. Como é estranho que Deus tenha falado do interior de uma sarça ardente, e que o Homem tenha feito de um símbolo do Céu um símbolo do Inferno. Olhou outra vez as estrelas nevoentas da madrugada. Bem, não haveria Paraíso ali em cima, diziam. Entretanto, pra lá tinham ido homens que olhavam para estranhos sóis em ainda mais estranhos céus… em mundos de geladas tundras equatoriais e de escaldantes florestas árticas, suficientemente parecidas com a Terra para que, de algum modo, o Homem pudesse viver com o mesmo suor do seu rosto (…) Os homens quanto mais se aproximavam de um paraíso por eles mesmos construído, mais impacientes pareciam ficar com a sua obra e consigo próprios… Quando o mundo jazia na escuridão e na tristeza, era fácil crer na perfeição e desejá-la ansiosamente. Mas quando tornou-se brilhante com a inteligência e as riquezas,começou a pressentir a estreiteza do fundo da agulha e a exasperar-se, pois nada mais havia a esperar. E agora iam destruí-lo outra vez, este jardim do Paraíso, civilizado e sábio, iam outra vez dilacerá-lo, para que o Homem pudesse voltar a esperar no meio da escuridão angustiosa.”

 APONTAMENTOS DE LEITURA: A TERCEIRA PARTE, “FIAT VOLUNTAS TUA”

“Nenhum mal no nundo, exceto o que é  introduzido pelo Homem (…) O único mal no mundo, agora, é o fato de que o mundó já não é….”

Na terceira parte, confirmando a estrutura cíclica a que a visão de Miller se atém, nós vemos a civilização humana novamente atingir um novo auge tecnológico, as potências novamente se ameçarem mutuamente com armas nucleares e, enfim, a destruição do planeta. Mais uma vez, um abade da Ordem de Leibowitz (Zerchi) é o centro da trama. Ele instrui o irmão Joshua a se preparar para ser o líder espiritual de um grupo que embarcará numa nave, levando os tesouros espirituais da abadia para outra galáxia, para iniciar uma nova etapa da existência da humanidade (quando a nave parte: “Viram a face de Lúcifer,qual um horrível cogumelo sobre a nuvem tempestuosa, subindo vagarosamente como um titã erguendo-se depois de séculos de aprisionamente na Terra“), seguindo ordens da Nova Roma, quando se constata que o fim é iminente e inevitável.

Sempre surpreeendendo com suas soluções narrativas, Miller coloca o abade Zerchi em situações insólitas e contestatórias (ele chega a ser quase agredido por policiais quando tenta impedir uma vítima da radiação e sua filha sejam encaminhadas a um eufemístico “Campo de Misericórdia”, organiza piquetes, etc). No clímax da narrativa, quando realmente se dá o desastre nuclear final (pelo menos, neste ciclo da história), ele está ouvindo a confissão de uma mutante, a sra. Grales, que é bicéfala, e sempre está arengando porque sua outra cabeça, que ela chama Raquel, e da qual nunca ninguém viu o menor sinal de vida (a não ser o irmão Joshua) não é batizada.

O desastre acontece, o padre fica entalado num buraco,  moribundo (“Quando voltou a si não havia senão pó. Estava preso no chão até a cintura… Começou a recolher as hóstias, desajeitadamente, com a mão que ficara livre. Cuidadosamente, foi apanhando cada uma do meio da areia. O vento ameaçava fazer voar, os pequenos flocos de Cristo…. Um fio de sangue, de vez em quando, entrava-lhe nos olhos. Enxugava-o com o braço para evitar manchar o Pão Sagrado com os dedos sujos. Esse não é o sangue certo, Senhor, é o meu e não o vosso….), vendo as aves de rapinas mais uma vez reaparecendo (…quando acordou já não estava só… Era um pássaro escuro e feio, mas não como aquela Outra Escuridão. Esse só lhe cobiçava o corpo: O jantar ainda não está pronto, irmão pássaro –disse, irritado.– Você vai ter de esperar. Não haveria mais muitos jantares, notou o abade, antes que o próprio pássaro se tornasse jantar para outro, pois tinhas as penas chamuscadas pelo clarão e um dos olhos, fechado. Estava encharcado com a chuva, e Zerchi imaginava que esta trouxesse consigo a morte”).

Aí sobrevem o ponto mais discutível do livro, pois a sra. Grales morreu e Raquel nasceu, é o ser que surge da destruição, a última visão do abade, na sua inocência e candura. Eu até compreendo a necessidade de Miller de inserir essa cena na sua saga religiosa, mas ela se abeira perigosamente do piegas (ela é quem batiza o padre moribundo, embora esteja aprendendo a falar, como ser recém-nascido): “A imagem daqueles olhos verdes e cheios de frscor ficou com ele até o fim. Não indagou por que Deus quisera fazer surgir uma criatura com a inocência primitiva (sic) do ombro da Sra. Grales, ou por que lhe dera os dons preternaturais do Paraíso, aqueles mesmos dons que o Homem tentara arrancar o Céu a viva força, desde que os perdera. Vira a inocência primitiva naqueles olhos e uma promessa de ressurreição. Um só vislumbre tinha sido uma magnanimidade e ele chorou de gratidão…”

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27/12/2009

Em relação ao século XX: 100, 75, 50, 25 anos de obras e autores

[Juan Carlos Onetti]

{Eugene Ionesco}

[Norberto Bobbio]

[Selma Lagerlöf]

100 anos- Em 2009, a escritora alemã Herta Müller ganhou o Nobel. Exatamente cem anos atrás, a sueca Selma Lagerlöf (1858-1940) tornava-se a primeira mulher a receber o prêmio. Não conheço muito bem sua obra,  só li algumas histórias de De saga em saga, uma coletânea que aparece numa coleção dos premiados com o Nobel, porém há um ensaio excelente de Marguerite Yourcenar sobre ela em Notas à margem do tempo, e que nos faz vislumbrar um universo fascinante.

    No mesmo ano em que a autora de A saga de Gösta Berlings (seu livro mais conhecido) se tornava a pioneira de uma lista ainda muito pequena, nascia na Romênia natal de Herta Müller um dramaturgo originalíssimo, que faria parte do chamado “teatro do absurdo”: Eugene Ionesco, de A cantora careca, Os rinocerontes; A lição; e, no Uruguai, um dos prosadores que mais mereceriam o Nobel no século XX: Juan Carlos Onetti, com obras do calibre de A vida breve, O estaleiro & Junta-Cadáveres, e que forma, com o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo a santíssima trindade da ficção hispano-americana.

      Também em 1909, nascia o grande pensador italiano Norberto Bobbio, autor dos ensaios maravilhosos reunidos em Nem com Marx, nem contra Marx. E na Letônia nascia o luminoso Isaiah Berlin (que faria carreira na Inglaterra), o autor de Pensadores russos, um pensador que gostava mais de escrever ensaios do que preparar “livros”.  E naquele ano, Lima Barreto lançava seu libelo anti-racista que também, e principalmente, é um poderoso romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha.

75 anos- De 1934, gostaria de destacar dois romances essenciais: o maior livro de Graciliano Ramos, São Bernardo (ser o melhor livro de um escritor como Graciliano é um fato por si só notável; para mim, aliás, os maiores romances brasileiros do século passado são Grande sertão: veredas; A maçã no escuro; São Bernardo  & Triste fim de Policarpo Quaresma); e o terrível e avassalador Morte a crédito, de Louis-Ferdinand Céline (que talvez seja até maior do que sua obra-prima anterior, Viagem ao fim da noite). Vidas secas e cheias de angústia no Nordeste e na França. A vida lembrada, cá e lá, como memórias do cárcere

[raymond chandler]

50 anos- É difícil escolher o acontecimento literário supremo de 1959, ano em que morria o grande Raymond Chandler, pois nesse ano iniciavam suas carreiras gloriosas nomes como Günter Grass, com O tambor de lata, certamente um dos maiores romances já escritos; os outros não começaram já nesse patamar: Philip Roth (Adeus, Columbus), Vargas Llosa (Os chefes) e Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares). O único título comparável em magnitude ao de Grass talvez seja O almoço nu, que revelou o universo muito peculiar de William Burroughs, mas cuja legibilidade maior foi possível graças à notável versão cinematográfica de David Cronemberg (a versão de O tambor nada tem de notável). Mesmo assim, um romance cinquentenário pelo qual tenho um carinho especial é Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr, merecidamente um clássico da ficção científica, mas que não se restringe a um “livro de gênero”. Na área de contos, é difícil pensar num título mais importante do que As armas secretas, de Cortázar, não só por causa da sua qualidade literária (o meu favorito é “Cartas da mamãe”, mas o mais considerado é “O perseguidor”, baseado na vida de Charlie Parker), como pela sua influência na literatura dos anos 60 e 70: basta lembrar que “As babas do diabo” foi a inspiração de Antonioni para seu Blow up (1968). Também não se pode esquecer a irreverência, a jovialidade e o trato de linguagem de Zazie no metrô, a obra-prima de Raymond Queneau.

     Em 1959, Jean-Paul Sartre dedicou-se a escrever um roteiro imenso (depois não utilizado, naquela época não existiam as produções para a tv a cabo, não existia a HBO; mesmo assim, Sartre resmungou que as pessoas tinham paciência para ver quatro horas da vida de Ben-Hur e não tinham para ver a vida do criador da psicanálise) sobre a vida de Freud para John Huston. O filme é ótimo, mas o texto de Sartre não fica atrás: Freud, além da alma; o marcante romancista português Vergílio Ferreira lançou sua obra mais famosa, o difícil porém importante Aparição; e há quem ache uma obra-prima (não é o meu caso) Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, ainda assim um livro que se deve levar em conta. Em todo caso, eu prefiro o folhetinesco Asfalto selvagem, as deliciosas desventuras em série de Engraçadinha, uma das grandes criações de Nélson Rodrigues

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion, e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras.

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25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion (sempre cito uma de suas frases, “ninguém está isento do movimento geral”, e sua heroína, Inez Christian Victor, é como se fosse uma amiga pessoal), e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras, a qual justamente em 1959 havia escrito o mais belo dos roteiros em hiroshima, meu amor, dirigido por Alain Resnais.

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