(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de abril de 2005)
Depois de fazer justiça ao trabalho de fôlego de Barbara Heliodora no sábado passado, convém lembrar que outra tradutora de Shakespeare, Beatriz Viégas-Faria, já tem uma respeitável lista de títulos nos últimos anos: entre outros, Macbeth, Otelo, Romeu e Julieta, Sonho de uma noite de verão, Muito barulho por nada, Júlio César; sendo Noite de Reis um dos mais recentes. A versão de Heliodora, por sua vez, acaba de ser lançada pela Lacerda.
Embora um Bobo, Feste, tenha grande importância em Noite de Reis, e paire “loucura” no ar, estamos longe de Rei Lear. Trata-se de uma mascarada, de uma fantasia brincando com o amor e a identidade sexual. A Corte (de Elizabeth I e Jaime I) tinha por hábito usar o teatro como diversão no período subseqüente ao Natal, culminando com a 12ª noite, daí o título original.
Na comédia maluca de Noite de Reis o casal de gêmeos, Sebastian e Viola, é vítima de um naufrágio e os dois chegam, separados dessa forma, à Ilíria, na qual Orsino, o Duque, corteja em vão a Condessa Olívia. Viola disfarça-se de homem e passa a servir Orsino (por quem se apaixona), inclusive como intermediário entre ele e a esquiva Olívia (que se apaixona por Viola enquanto rapaz). Quando Sebastian aparece, uma série de confusões se estabelece porque todos o tomam pela irmã. Um dos momentos mais engraçados acontece quando Sir Andrew Aguecheek, ridículo pretendente de Olívia, o encontra na rua e o esbofeteia. Ao revidar, Sebastian pensa: “Serão todos loucos ?”, pergunta nada exagerada, pois logo a seguir ele é levado para a Igreja por Olívia, a quem nunca vira a fim de celebrar o noivado.
A personagem mais famosa da peça é Malvólio, um puritano afetado, vítima de uma trama de serviçais e parentes de Olívia: ele fica convencido de que sua patroa está apaixonada por ele e é tido como lunático. Como bem observou Harold Bloom, o que torna interessante Malvólio (e define a atmosfera de Noite de Reis) é que ele sonha “a ponto de distorcer a sua própria noção de realidade, permitindo, assim, que Maria lhe perceba a natureza e contra ele arme uma cilada”. O mesmo Bloom mostra que Feste, o Bobo, é o único personagem sensato nessa comédia desvairada. Todos, tocados pelo amor, ou confundindo o amor com outra coisa (mania de grandeza, interesse material) piram, saem dos eixos, traem suas naturezas e suas vontades racionais. Shakespeare também se vale comicamente de uma teoria predominante em sua época: de que o homem é escravo dos seus “humores” (sangue, bílis, linfa, fleuma) e que eles definem seu temperamento.
Apesar da sua agora já extensa intimidade com Shakespeare, Beatriz Viéga-Faria ainda se contenta em nos dar paráfrases das falas, sem arriscar vôos poéticos ou cômicos. Acostumado durante anos com as traduções de Carlos Alberto Nunes (e olhe que elas já foram muito criticadas), é difícil ver uma passagem como esta, por exemplo (em que Orsino se declara à Viola), “Vosso dono vos deixa, e em pagamento / dos serviços de prol que lhe prestastes / contra a disposição de vosso sexo / e a ternura que em tudo vos é própria / já que tanto tempo me chamastes / de Senhor, minha mão ora aqui tendes / de ora avante és a dona de teu dono”, virar isso: “O seu amo não precisará de seus serviços. E, pelo trabalho prestado, tão contrário às aptidões de seu sexo, tão abaixo de sua criação nobre e delicada, e dado que você me chamou de mestre por tanto tempo, eis aqui a minha mão: a partir de agora, você é a dona de seu mestre, senhora de seu senhor”. É tudo igual, mas como tudo muda! Se para melhor ou pior, depende do leitor.
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