MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

06/06/2017

CINQUENTA ANOS DE TUTAMEIA

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 06 de junho de 2017)

Assim como Clarice Lispector, que no ano de sua morte publicou um dos seus mais relevantes romances, João Guimarães Rosa, ao morrer em 1967, deixou uma obra-prima, TUTAMEIA. Colaboravam para a sensação de estranheza despertada por TUTAMEIA: o título peculiar (um vocábulo com o significado de “coisa de pouco valor”), os quatro prefácios com títulos abusadamente esdrúxulos (“Hipotrélico”; Nós, os temulentos, por exemplo); e, sem contar os títulos de várias estórias (“Antiperipléia”; “Droenha”; “Rebimba”, “O Bom”; “Tapiiraiauara”), os textos herméticos e quase impenetráveis.

Hoje percebe-se melhor ter ele tão somente condensado ao extremo as características que se “espalhavam” nos amplos espaços épicos de “Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile”, fazendo de cada texto de TUTAMEIA a coisa mais similar à poesia que já se criou na ficção: impossível mexer numa palavra sequer. Além disso, investindo nas “anedotas” do sertão mineiro, ele tenta atingir uma realidade “mais verdadeira”. Para isso, é importante “contar” mais do que “viver”.

Quanto à acusação de hermetismo, mesmo se levando em conta a linguagem peculiaríssima de Rosa, nada mais delicioso do que as “anedotas” (tenho minhas dúvidas e ressalvas quanto aos prefácios) da coletânea. Nem por isso, nos “desenredos” tramados pelo autor de Sagarana, deixamos de entrever as linhas tortas pelas quais lemos a vida.

Por exemplo, temos o guia de cego que ajuda o patrão a se envolver num caso adúltero e que termina suspeito da morte dele, para a qual, como em “Rashomon”, há várias versões (“Antiperipléia”). Esse guia pode ser o anão que aparece na última estória do livro, “Zingaresca” (sim, as histórias são dispostas em ordem alfabética), aquele que “vigia o que não há”. Como Riobaldo, ele conta sua história para um interlocutor citadino.

Em Lá, nas campinas, Drijimiro não consegue lembrar o local da sua infância, só restou na memória as palavras que dão título à estória, “o que guardado sempre sem saber lhe ocupara o peito, rebentado: luz, o campo, pássaros, a casa entre bastas folhagens, amarelo o quintal da voçoroca, com miriquilhos borbulhando nos barrancos.

Esses são alguns pontos altos do livro. E sempre, em qualquer uma delas, as frases genialmente únicas: “as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas”; “calava-se a ternura, infinito monossílabo”; “memória, que é o que sem arrumo há, das muitas partes da alma”; “a gente tem de existir—por corpo real, continuado—condenado”; “o mundo se repete mal é porque há um imperceptível avanço”; “de onde vem o medo? Ou este terráqueo mundo é de trevas, o que resta do sol tentando iludir-nos do contrário”… E assim, Guimarães Rosa iluminou a nossa literatura como a borboleta que (ele mesmo diz, raiando pela indescrição) “sai do bolso da paisagem”.

23/11/2012

“O que raia pela indescrição”: TUTAMÉIA

(resenha publicada originalmente em  A TRIBUNA de Santos, em 18 de novembro de 1997)

    Há 30 anos (em novembro de 1967), morria João Guimarães Rosa, que publicara Tutaméia  poucos meses antes, surpreendendo muita gente, inclusive admiradores das suas outras obras. Colaboravam para a sensação de estranheza despertada por Tutaméia: o título peculiar (um vocábulo com o significado de “coisa de pouco valor”); o subtítulo ainda mais esquisito, Terceiras Estórias (em 1962, Rosa havia lançado as Primeiras Estórias, mas onde estavam as Segundas?); os quatro prefácios com títulos abusadamente esdrúxulos (Hipotrélico; Nós, os temulentos, por exemplo[1]); e, sem contar os títulos de várias estórias (Antiperipléia; Droenha; Rebimba, o bom; Tapiiraiauara), os textos herméticos e quase impenetráveis. Afundara o escritor mineiro no experimentalismo meramente formalista, exibicionista e cabotino?

    Hoje percebe-se melhor ter ele tão somente condensado ao extremo as características que se “espalhavam” nos amplos espaços épicos de Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile, fazendo de cada texto de Tutaméia a coisa mais similar à poesia que já se criou na ficção: impossível mexer numa palavra sequer. Além disso, investindo nas “anedotas” do sertão mineiro, ele tenta atingir uma realidade “mais verdadeira”. Para isso, é importante “contar” mais do que “viver”.  Já afirmara antes, em Festa de Manuelzão (um dos mais belos textos de Corpo de Baile):

“… o mundo era grande. Mas ainda era muito maior quando a gente ouvia contado, a narração de outros, e volta da viagem. Muito maior do que quando a gente mesmo viajava, serra-abaixo-serra-acima, quando a maior parte do que acontecia era cansativo (…) tudo trabalho empatoso, a gente era sofrendo e tendo de aturar…”

    E afirma definitivamente  em Tutaméia:

“A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por linhas tortas…”

   Quanto à acusação de hermetismo, mesmo se levando em conta a linguagem peculiaríssima de Rosa, nada mais delicioso do que as “anedotas” (tenho minhas dúvidas e ressalvas quanto aos prefácios) da coletânea. Nem por isso, nos “desenredos” tramados pelo autor de Sagarana, deixamos de entrever as linhas tortas pelas quais lemos a vida.

   Por exemplo, temos o guia de cego que ajuda o patrão a se envolver num caso adúltero e que termina suspeito da morte dele, para a qual, como em Rashomon, há várias versões (Antiperipléia). Esse guia pode ser o anão que aparece na última estória do livro, Zingaresca (sim, as histórias são dispostas em ordem alfabética), aquele que “vigia o que não há”. Como Riobaldo, ele conta sua história para um interlocutor citadino: “E o senhor ainda quer me levar, às suas cidades, amistoso?… Cidade grande, o povo lá é infinito.”

dos pais por um dos violentos Lopes e que, mansa, insidiosamente, foi apoderando-se da fortuna dele, envenenando-o então. Porém, outros membros do clã também querem usufruir dela e ela faz então com que todos se destruam. Tem um caso com um homem mais jovens, quer ter filhos com ele: “Quero o bom-bocado que não fiz, quero gente sensível. De que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta da questão da saudades? Eu, um dia, já fui muito menininha…”

    Em Lá, nas campinas, Drijimiro não consegue lembrar o local da sua infância, só restou na memória as palavras que dão título à estória, “o que guardado sempre sem saber lhe ocupara o peito, rebentado: luz, o campo, pássaros, a casa entre bastas folhagens, amarelo o quintal da voçoroca, com miriquilhos borbulhando nos barrancos. Tudo e mais, trabalhado completo, agora, tanto—revalor—, como o que raia pela indescrição: a água azul das lavadeiras, lagoas que refletem os picos dos montes, as árvores e os pedidores de esmolas. Tudo era esquecimento, menos o coração.”

   Esses são alguns pontos altos do livro (e Barra da Vaca; Como ataca a sucuri; Curtamão; Desenredo; Faraó e a água do rio; Reminisção; Os três homens e o boi; Umas formas; Intruge-se, também não são?). E sempre, em qualquer uma delas, as frases genialmente únicas: “as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas”; “calava-se a ternura, infinito monossílabo”; “memória, que é o que sem arrumo há, das muitas partes da alma”; “a gente tem de existir—por corpo real, continuado—condenado”; [os ciganos] “não criavam apego aos lugares, de tanto que conhecessem a ligeireza do mundo; as cantigas que sabiam, era para aumentar a quantidade de amor”; “o mundo se repete mal é porque há um imperceptível avanço”; “de onde vem o medo? Ou este terráqueo mundo é de trevas, o que resta do sol tentando iludir-nos do contrário”… E assim, Guimarães Rosa iluminou a nossa literatura como a borboleta que (ele mesmo diz, raiando pela indescrição) “sai do bolso da paisagem”.


[1] Nota de 2012– Tais prefácios foram estudados com grande acuidade por Irene Gilberto Simões em As paragens mágicas, um dos melhores estudos rosianos, e ao qual a minha resenha acima é muito devedora em suas linhas gerais, como—aliás—sou devedor à autora pela inspiração intelectual, pela sua postura como leitora. Na época da publicação da resenha, não tive espaço para fazer essa quase dedicatória, mas agora posso corrigir a lacuna.

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