MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

22/07/2011

Alçapões invisíveis de onde surge a borboleta esquecida da revelação

 

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Quando comentei O grande Gatsby em resenha anterior, não obstante o lançamento oportuno de duas novas traduções do romance e minha admiração por ele, foi muito em função de ele ser o núcleo de uma das partes de Lendo Lolita em Teerã,  livro que mostra a fidelidade à literatura mesmo no momento mais adverso. Embora a obra de Azar Nafisi aborde, além de Fitzgerald, textos de Henry James e Jane Austen, seu centro mesmo, a partir do título, e mesmo porque a autora iraniana é especialista nele, está em Vladimir Nabokov (1899-1977).

Lolita (1955), um dos livros que mais amo, será preterida aqui por outra obra-prima nabokoviana, Fogo Pálido (1962), cuja tradução (realizada com uma perícia incrível, por Jorio Dauster & Sergio Duarte) acaba de ser reeditada pela Companhia das Letras, quase 20 anos após ter sido um memorável acontecimento editorial (e pessoal) de 1985, ao ser lançada pela Guanabara. Ainda lembro da minha primeira leitura, que coincidiu com a vitória de Jânio Quadros sobre Fernando Henrique Cardoso na disputa pela prefeitura de São Paulo.

Nabokov conseguiu aquele feito raro: o romance absolutamente original. Seu narrador (nada confiável), Charles Kinbote (ou um mero professor Botkin!) se apropria do último manuscrito do célebre John Francis Shade, justamente o poema intitulado Fogo Pálido, pois acredita que ele contenha elementos da sua própria biografia. Decepcionado ao descobrir que se enganara, edita o poema com um aparato crítico (prefácio, notas, índice remissivo) –que forma a estrutura do romance—cuja finalidade manifesta é desentranhar do poema de 999 versos decassílabos as referências a ele mesmo, Kinbote. Supostamente, ele seria o exilado, erudito e sodomita rei de Zembla, destronado por uma revolução e perseguido por um assassino esquerdista, Gradus, que acabaria por matar Shade.

Seria isso verdade? Ou seria a loucura de um megalômano intelectual que despreza o meio universitário e acadêmico em que vive (descrito, aliás, de forma engraçadíssima e mortífera). Em Lendo Lolita em Teerã, Azar Nafisi justifica sua  “relação especial” com Nabokov, “a despeito das dificuldades de sua prosa”: “Seus romances são moldados em torno de alçapões invisíveis, lacunas repentinas que constantemente puxam o tapete sob os pés do leitor. Eles são repletos de desconfiança sobre o que chamamos de realidade da vida diária, um senso aguçado da inconstância e fragilidade daquela realidade”. O “rei” de Zembla nos diz, por sua vez: “…sei fazer algo de que somente um artista é capaz: lançar-me sobre a borboleta esquecida da revelação, afastar-me abruptamente do hábito das coisas, ver a teia do mundo e a trama dessa teia”.

E através dele Nabokov proporciona uma das maiores experiências de leitura da história da ficção: perde-se muito com a leitura linear de Fogo Pálido, é preciso dizer. Muito mais fascinante e proveitoso é seguir o seu ritmo louco, aberto e caleidoscópico (a borboleta esquecida da revelação): uma nota remete à outra, e obriga sempre a reler os trechos do poema, sem contar as vezes em que nos leva ao índice remissivo. Por exemplo, o comentário do verso 17 remete à nota sobre o verso 596, que remete  aos versos 628 a 631 etc etc… Estamos longe, decerto, da “placidez da erudição” que, alega Kinbote, alimenta seus comentários. Estamos mesmo é sob a majestade da palavra poética, esta sim bastante real. Como ele prova triunfalmente ao mostrar a movimentação do assassino Gradus rumo à consumação do destino de John Francis Shade: “Embora Gradus usasse os mais variados meios de transporte…. a força que o impulsiona é a ação mágica do poema de Shade, o mecanismo e o ímpeto próprios dos versos, o poderoso motor do decassílabo. Nunca antes o avançar inexorável do destino recebeu forma tão sensual”. Ou ainda: “Acompanharemos Gradus  constantemente em nossos pensamentos, enquanto ele se desloca da longínqua e indistinta Zembla aos verdes Apalaches, ao longo de todo o poema, seguindo os caminhos de seu ritmo, cavalgando uma rima, dobrando a esquina de um enjambement, tomando fôlego num hemistíquio… escondendo-se entre duas palavras, desaparecendo no horizonte de um novo canto, aproximando-se sempre no compasso da métrica…”

Se a loucura tem esse estilo, quisera eu ser rei em Zembla.

(rezembla publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de dezembro de 2004)

Lendo Azar Nafisi na Baixada Santista

 

Meu receio diante de um livro como Lendo Lolita em Teerã [tradução de Tuca Magalhães, editora A Girafa] era que usasse a literatura apenas como um enfeite para um martirológio das mulheres no regime fundamentalista que se apossou do Irã..

Na página 288 da edição brasileira do livro de Azar Nafisi pode-se ler: “Minha amiga Mina me relembrou que no livro The tragic muse, Henry James explica que, quando escreve, seu objetivo é produzir a arte como uma complicação humana e como um obstáculo social. Isso é o que o torna tão difícil.  Mina era uma especialista em James e contei-lhe das dificuldades dos meus alunos com Daisy Miller. Ela acrescentou com uma certa ansiedade: Espero que não esteja pensando em tirá-lo do curso porque ele é difícil.  Eu lhe assegurei que não tinha essa intenção; de qualquer modo, não era porque fosse difícil para eles, mas sim por que os fazia se sentirem desconfortáveis… dizem que não precisamos de James, mas o que realmente querem dizer é: temos medo desse senhor James, ele surpreende, atordoa, confunde, inquieta um pouco”.

Nem é preciso chegar a esse ponto para compreender que, para Azar Nafisi, a literatura jamais ficaria em segundo plano. Desde as primeiras páginas, quando conta como deixou  (por imposição externa) de ser professora universitária no Irã e começou um clandestino grupo de estudos com algumas moças (a inclusão de um homem despertaria suspeitas), tendo Nabokov, autor de Lolita, como espírito tutelar, relatando também o cotidiano das discussões, as experiências pessoais das participantes, e depois ampliando o leque para abarcar sua trajetória de vida, a observação social não impede instigantes análises literárias (de obras de Nabokov, de Scott Fitzgerald,  de James, de Jane Austen). Isso não impede que tomemos contato com uma realidade quase surreal. Um exemplo: Negar, filha de Azar, está numa aula quando irrompem a diretora e a professora de moralidade (!).: “A classe inteira foi escoltada para fora da sala, suas mochilas foram vasculhadas à procura de armas e contrabando., fitas, romances, braceletes de amizade.  Seus corpos foram examinados cuidadosamente, as unhas inspecionadas.  Uma aluna, uma menina que acabara de voltar dos Estados Unidos, foi levada à sala da diretora, suas unhas estavam muito compridas….A própria diretora as cortou tão curtas que sangraram… Para Negar o fato de sequer poder chegar perto da amiga para consolá-la  dói tão ruim quanto o trauma da revista. Ela continuava repetindo, mamãe, ela simplesmente não conhece todas as nossas normas e regras, como você acha que ela se sente quando eles nos forçam a pisar a bandeira americana e gritar Morte aos Estados Unidos?”

Por causa desse estado de coisas, o grupo de leitura é formado “numa tentativa de, a cada semana, escapar do olhar fixo do censor cego durante umas poucas horas…não importa quão repressor o Estado se tornara, não importa o quanto estivéssemos intimidadas ou amedrontadas, tentamos escapar e criar nossos próprios pequenos bolsões de liberdade, como Lolita. E, como Lolita, aproveitamos todas as oportunidades para exibir nossa insubordinação:  uma pequena mecha de cabelo à mostra sob os véus, um pouco de cor insinuada na monótona uniformidade da aparência, as unhas compridas, apaixonando-nos ou ouvindo músicas proibidas”.

Lendo Lolita em Teerã tem feito muito sucesso. Para os leitores de Lolita, de O grande Gatsby, dos livros de Henry James e de Jane Austen do mundo inteiro, nada mais merecido.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de novembro de 2004)

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