
No meu post sobre Súplicas Atendidas, de Truman Capote, (VER https://armonte.wordpress.com/2013/07/28/destaque-do-blog-suplicas-atendidas/)
eu afirmava que a tradução de Guilherme da Silva Braga era “cheia de escorregões e soluções ruins” (estendendo o reproche a uma parte dos tradutores da L&PM). Com toda a razão, o referido tradutor se referiu ao tom genérico e vago do meu comentário. pedindo que eu apontasse exemplos:
“Olá, Alfredo!
Não nos conhecemos, mas achei no seu blog uma referência à minha tradução “cheia de escorregões e soluções ruins” do livro Súplicas atendidas, do Truman Capote.
Como a crítica foi feita nos termos mais genéricos possíveis (sem um único exemplo) e é dirigida não só a mim mas todos os tradutores da editora, gostaria se possível que você me apontasse alguns desses deslizes para que eu possa analisá-los e comunicar à L&PM qualquer mudança pertinente. “(26.01.10)
Não me fiz de rogado, é claro, e logo enviei uma lista de trechos, expressões e soluções que me desagradaram ou me pareciam estranhos:
… em alguns casos, talvez a revisão tenha falhado também, acredito que você também não é responsável pelo título: “Preces atendidas” seria mais exato, por causa da esfera religiosa da citação e porque todo o mundanismo do livro se contrapõe a ela, num sentido muito moralista;
na pág. 25 aparece “Hadrian”, quando o correto já que é o costume seria “Adriano”.
Aliás, a questão de títulos e nomes de logradouros também é muito espinhosa, poderia ter sido unificada, e unas notas de rodapé, ou esclarecendo o título ou o significado que teriam em português, ou traduzindo, e em notas, colocando o original. Por que deixar, na mesma pág. 25, em inglês os títulos dos contos de P.B.Jones? (“Suntan” e “Massage”; e na pág. 28, “Many Thoughts of Morton”)?, por que manter “upper Eighties” (p. 28) ?
na pág.30- Nuriêv não seria Nureyev ?;
há sempre uma preguiça em não traduzir trocadilhos e jogos de linguagem- na pág. 32, por exemplo, o jogo com Billy, o nome do reverendo sedutor e o “billy” para o pênis, foi muito mal resolvido.
As palavras garoto e menino, em várias passagens (p.34 ou p.37, por exemplo)´ficam muito aquém do significado sexual que lhes é conferido. No Brasil, temos o termo “bofe”, que cairia muito melhor. Aliás, esse termo, “bofe” é utilizado de maneira singularmente inadequada para um cliente de Jonesy na pág. 101 (um cliente de michês jamais seria um “bofe” na nossa cultura gay);
há os trechos que ficaram esquisitos ou meio sem sentido (ou eu fui muito burro e não consegui captar o sentido).: É estranho o “venho existindo” da pág. 19 (“na ACM de Manhattan onde venho existindo há um mês”); na página seguinte: “Meu nome é P.B. Jones e estou com dois corações” (?).
A caracterização do escritório de Boatwright (p. 24): “O escritório tinha uma atmosfera meio de negócios (!?).; parecia um salão vitoriano”. “Meio de negócios”?
na pág. 29, “Faulkner, aficcionado em Lolitas”, a preposição está muito esquisita, não? e mesmo o termo “aficcionado”
na pág. 34- “depois de exagerar no vinho tinto e no amarelo”- não consegui entender esse “amarelo”.
na pág. 39 e em várias outras o termo “cafetão” não é muito exato, já que se trata do “bancador” do michê.
na pág. 40, um trecho estranhíssimo, que me parece truncado: “Denny prestava-se a um único papel, o de Amado, pois era tudo o que ele jamais tiinha sido [ já essa formulação de saída é muito estranha; a gente entende, mas é estranha]. Assim, exceto pelos eventuais flertes com o comércio marítimo, o Amado tinha sido Watson” (!?).
na pág. 41, o que seria exatamente “o jeito bondoso e BIOLÓGICO” de Jean Connoly?
E na mesma página, que raios é um “cenografista”, função de Christopher Isherwood em Hollywood?
na pág. 47, mais um jogo de palavras perdido, que ficou forçado, porque “bastardo” não é um xingamento comum em português, mas sim em inglês: “sabia que eu era um bastardo mas e me perdoava porque afinal de contas eu tinha nascido bastardo”. O primeiro bastardo tem, na verdade, acepção de canalha, filho-da-puta, como você bem sabe, e o trecho empastelou isso.
na pág. 52 eu não consegui entender o que significa “mas eu senti que ela tinha se juntado à maioria”.
tudo bem que Capote cite em inglês um título de Colette, mas o tradutor brasileiro poderia procurar o título em francês de “My Mother´s house” ou indicá-lo em nota. (pág. 55)
na pág.61, há o seguinte trecho descuidado: “ele me deu um MURRO na cara, um GOLPE DE CARATÊ que deu a impressão…” etc etc. Não entende de caratê, mas creio que “murro” não seria o termo exato.
Não consigo imaginar ninguém falando (pág. 65): “Eu não levo. Posso meter. Mas não levo”. O cara diria “Eu não dou” ou algo similar, mas “não levo”, parece legenda de filme pornô, nas quais em vez de “me chupe” colocam “sugue meu pau”, coisa que ninguém fala na vida real.
Na pág. 76- Outra preposição e regência estranhas: “Por muitos anos fui parcial a Veneza” (e na página seguinte outro título de Jonesy que foi mantido em inglês).
Em conversas com amigos que leram sua tradução, alguns estranharam outras coisas, que eu não tinha sacado, por exemplo o termo “lambedora de carpetes” (pág. 79), que soa estranho em português.
Espero, assim, ter escapado dos ´termos mais genéricos possíveis`, e sempre sublinhando que se trata apenas de opiniões”. (28.01.10)
Fiquei impressionado com a presteza, a conscienciosidade e o brio profissional com que Guilherme me respondeu, quase ponto a ponto, e me envergonhei de não ter sido mais preciso no meu comentário sobre a tradução. Sua resposta também mostra como se pode discordar civilizada, porém incisivamente, de outrem:
“Agradeço muito os comentários mais detalhados enviados por email. Acho que tem um pouco de tudo: críticas em que você tem razão, críticas em que se trata de simples gosto pessoal (onde “gosto pessoal” é equiparado a “bom” e “gosto alheio” a “ruim”) e críticas relativas a trechos não há erro algum ou impropriedade alguma.
Alguns esclarecimentos gerais sobre opções tradutórias: não traduzo nomes de logradouros e não ponho notas de rodapé. Há quem goste e há quem não goste, mas são opções tão válidas e defensáveis quanto traduzir logradouros ou pôr as famigeradas (e na minha modesta opinião execrandas) notas de rodapé.
Quanto a “Hadrian”, você tem toda a razão — foi um deslize e vou avisar a editora.
“Nureyev” e “Nuriêv” estão ambos corretos e dependem apenas da norma usada para se transliterar do russo, mas as formas com Y em geral são meras cópias da transliteração inglesa, enquanto as versões com I seguem uma grafia mais de acordo com a nossa língua.Compare “Dostoevsky” com “Dostoiévski” ou “Tolstoy” com “Tolstói”, por exemplo.
A suposta preguiça na resolução do trocadilho Billy/billy explica-se simplesmente porque não há trocadilho: “billy” não é gíria para “pênis” em inglês. O personagem simplesmente chama o pênis do cliente pelo nome deste, da mesma forma que se poderia chamar o pênis de um sujeito chamado João de “joãozinho” ou algo assim.
Observação de Alfredo Monte (também em função dos comentários gerados pelo post)- Na verdade, nunca pensei que “billy” fosse gíria para pênis, só achava que poderia haver uma adaptação para o português da brincadeira.
Os termos especificamente gays parecem realmente não estar de acordo. Também vou ver se resolvo isso melhor e comunico a editora.
“Estar com dois corações” é uma expressão bastante comum — ao menos por aqui (Porto Alegre) eu ouço com certa freqüência. O Google também registra mais de onze mil usos dessa mesma construção só na primeira pessoa do presente do indicativo, com o que se pode afirmar com razoável margem de segurança que se trata de expressão conhecida. Significa mais ou menos “não conseguir escolher entre duas opções por querer a ambas” (como em “Estou com dois corações — não sei se vou para a praia ou para a serra”, dando a entender que ambas opções são tão boas que é difícil escolher).
“Meio de negócios” quer dizer “mais ou menos como de negócios”, como se costuma dizer em linguagem corriqueira. Aqui já aproveito para ressaltar que esse livro destoa completamente, em termos estilísticos, de quase tudo o que o Capote escreveu — é muito mais coloquial e talvez (não sei) isso tenha afetado sua impressão a respeito da tradução como um todo. Mesmo em inglês, a linguagem do Capote deste livro pouco lembra o Capote de Bonequinha de luxo ou dos contos, por exemplo.
“Vinha amarelo” é simplesmente um tipo específico de vinho. Se chama assim mesmo em português (o Google registra cerca de 6.000 ocorrências).
O trocadilho com “bastardo”, é verdade, fica mais fraco em português. Mas simplesmente não há como resolver de maneira muito mais satisfatória — se você conhecer algum termo que queira dizer tanto “filho ilegítimo” como “filho-da-puta” na nossa língua, por favor queira me comunicar e prontamente pedirei a alteração. Esse é um exemplo bastante característico de crítica fácil a um problema tradutório para o qual uma solução ideal é absolutamente difícil de encontrar.
Sobre o livro da Collette: não há tradução para o português. Daí a opção por não traduzir (geralmente eu só traduzo os títulos de obras para as quais existe tradução, para evitar dar ao leitor a impressão — nesse caso, falsa — de que o livro existe em português).
Quanto a “não levo”, concordo que pode não ser muito comum, mas daí a dizer que não existe ou que é tradução malfeita vai um longo caminho. Uma busca por “não levo no cu” no Google, por exemplo, dá quase cem resultados.
“Lambedora de carpete” é um termo baseado na expressão bastante comum “lamber carpete” (fazer sexo oral em uma mulher, quase sempre com a implicatura de que quem faz sexo oral é também uma mulher).
Em relação às regências apontadas, você também tem razão, embora meia dúzia de erros desse tipo em um livro de 200 páginas não me pareçam justificar o emprego do termo “desleixo” em relação ao trabalho realizado. Na verdade foi o que me incomodou na sua crítica: não o fato de estar sendo criticado — o que faz parte, embora nunca seja agradável –, mas por simplesmente ver chamado de “desleixado” um trabalho que pode ter sido feito com qualquer coisa, menos desleixo.
Como você pode ler acima, pelo menos algumas das soluções criticadas com termos tão contundentes no blog são perfeitamente defensáveis e redigidas em português cursivo. Claro que daí a agradar vai um longo caminho — a meu ver, tão longo quanto o que separa a opinião perfeitamente legítima de “não gostei da tradução” ou “eu teria traduzido diferente” da opinião questionável (em vista dos argumentos acima) segundo a qual a tradução foi feita com desleixo.
Seja como for, agradeço o tempo que dedicou a essa correspondência.” (28.01.10)
Creio também (e por isso pedi permissão a ele para divulgar nossa pequena correspondência) que as nossas observações mais detalhadas serão úteis e oportunas ao leitor do livro traduzido e do meu blog.
“Oi, Alfredo!, Se quiser postar os esclarecimentos, fique à vontade, desde que eventuais comentários em resposta sejam feitos com respeito ao meu trabalho e também ao dos tradutores em geral. Naturalmente isso não o impede de tecer mais críticas se achar que esta é a coisa a fazer — apenas pressupõe que estas sejam redigidas com o mesmo bom-senso e a objetividade demonstrados no seu email, e não nos termos genéricos e abrangentes usados anteriormente no blog. Parece-me que críticas nos moldes dessas feitas no seu email só tem a acrescentar a essa relação tradutor-leitor (você apontou erros indiscutíveis pelo menos em relação ao nome “Hadrian” e às gírias do circuito gay — que pretendo corrigir em edições posteriores –, e acredito que pelo menos um ou dois comentários meus devam tê-lo convencido de que o que parecia ser erro não era), ao passo que menosprezar o trabalho do tradutor não contribui em nada para qualquer discussão que se pretenda minimamente séria ou útil a respeito do assunto.
Se estiver de acordo, vá em frente. Fique à vontade para corrigir quaisquer erros de digitação também (notei que comi um pedaço de uma frase logo no início do meu email e escrevi “vinha” amarelo, entre outros)”.(28.01.10);acho, por essa última observação que talvez ele pense que eu tenha uma sanha assassina andando à cata de erros e deslizes; só sou um pouco detalhista demais…