MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

22/10/2015

AVENTUREIROS DEMAIS POR DENTRO: a inquietante visão do artista em “Tonio Kröger” e “A Morte em Veneza”

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[uma versão do texto abaixo foi publicada em 21 de outubro de 2015, no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, ver: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/10/por-alfredo-monte-em-confissoes-de.html]

Em Confissões de Felix Krull (1954), seu derradeiro romance, Thomas Mann faz Schimmelpreester, padrinho do personagem-título, um pintor que «não raro expressava ideias duvidosas sobre a natureza do artista em geral», dizer: «Assim são as pessoas. Desejam o talento, que em si é uma singularidade. Mas as outras singularidades que a ele se ligam, ou talvez lhe sejam inerentes, não só não as admitem de modo algum, como lhes negam toda e qualquer compreensão».

Portanto, o grande escritor alemão nunca chegou a abandonar as questões que povoam dois textos da juventude, Tonio Kröger (1903) e A morte em Veneza (1912), clássicos agora relançados pela Companhia das Letras[1]. Em ambos encontramos uma inquietante visão da realização artística. Ambos têm em comum também certa solenidade do tom narrativo, distante da alegria jocosa que perpassa O eleito (1951) e outras obras maiores de Mann (A montanha mágica, 1924; Carlota em Weimar, 1939; o próprio Felix Krull, por exemplo).

Escrito aos 28 anos, Tonio Kröger desenvolve à exaustão o mote da posição duvidosa e suspeita do artista na sociedade; de tal forma que o protagonista, já um escritor de certa fama, ao voltar à cidade natal, é confundido com um marginal foragido. E ele mesmo acha que a confusão é justificada!

Tonio pertencera a uma tradicional e abastada família («não somos ciganos num carroção verde»), porém abandonara a cidade quando da morte do pai, e a mãe—exótica mulher de um país estrangeiro—caíra no mundo, por assim dizer. Ainda assim, ele conservou a nostalgia pelo mundo burguês (do qual se excluíra por vontade própria), pelos «inocentes loiros, de olhos azuis», como seus amados da adolescência, Hans Hansen e Ingeborg Holm (note-se que a ambivalência dele atinge inclusive a sexualidade, como geralmente acontece no universo manniano, onde a beleza pessoal, mais do que a identidade de gênero, é que dá as cartas[2]).

Por isso, se sente «um burguês que se extraviou na arte, um boêmio com saudades do bom berço, um artista de consciência pesada», e compensa esse desconforto com a ideia de que o artista tem de ser um trabalhador incansável, «passando despercebido como uma sombra parda, como um ator sem maquiagem, que não é nada enquanto não tem um papel a representar(…) quem vive não trabalha(…) preciso estar morto para ser realmente um criador».

Tonio mantém-se “suspeito” aos olhos burgueses, todavia causará igualmente má impressão aos seus companheiros, por insistir numa fachada que ele denomina de «decoro exterior»; para ele, «Como artistas já somos aventureiros demais por dentro. Pelo menos por fora devemos vestir-nos bem, que diabo! E nos comportar como gente decente».

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Toda essa problemática, formulada em Tonio Kröger de maneira muito incisiva, só que com um entrecho dramático um tanto tênue, é amplificada poderosamente em A morte em Veneza, com resultados ficcionais mais fortes, tanto que talvez se trate da única novela do século vinte capaz de se ombrear com A metamorfose, de Kafka. Como Mann conseguiu escrever algo assim aos 37 anos?!

O cinquentão Gustav Aschenbach, apesar do afinco maníaco a que se entrega no trabalho de escritor, sente-se de fato “morto por dentro” (tal como Tonio augurara). Resolve, então, sair de sua estafante rotina em Munique, viajando para algum balneário no sul da Europa. Depois de outros lugares insatisfatórios, decide-se por Veneza. Lá, como todos sabem, impressiona-se com a beleza de um menino polonês de 14 anos, Tadzio; apaixonado, segue-o por toda a parte, não se decidindo a ir embora da mítica cidade, mesmo ao tomar conhecimento de que uma peste a assola. Durante um passeio, ao perder de vista Tadzio, angustiado e esgotado fisicamente, come morangos (contaminados) para refrescar-se e, pouco tempo depois, em plena praia, entra em agonia mortal.

Esqueça-se um pouco do pormenor homoafetivo, caro leitor, não é por aí que se compreenderá A morte em Veneza, nem o texto nem a extraordinária versão cinematográfica realizada em 1971 por Luchino Visconti, na qual Aschenbach transforma-se em compositor clássico, detalhe essencial num filme que é uma das mais perturbadoras e majestosas experiências não-verbais já levadas a cabo, onde o espectador compreende tudo o que se passa através da utilização da música de Gustav Mahler e das expressões (do pathos) de um ator admirável (Dirk Bogarde).

Tadzio, com sua beleza, exerce mais do que uma banal sedução erótica, é o anjo da morte a conduzir Aschenbach—aquele que trabalha incessantemente para criar formas artísticas e domesticar o caos—para o mar, o outro polo da narrativa, o mar que encanta o jovem Tonio Kröger e encanta o escritor maduro[3]: «Amava o mar pela necessidade de repouso do artista que, assediado pela multiformidade das aparências, anseia por abrigar-se no seio da simplicidade, da imensidão, e por um pendor proibido, diametralmente oposto à sua tarefa e por isso mesmo tentador, para o indivíduo: o desmedido, o eterno (…) Repousar na perfeição é o anseio nostálgico daquele que se esforça por alcançar a excelência; e o nada não é uma forma de perfeição?»[4].

Assim, Aschenbach, que vagara por Veneza atordoado por Eros (na forma de um Lolito, avoengamente chamados de efebos), não sabia que ele o levava para o reino do nada, numa irônica e cruel dança da morte. A beleza encarnada num corpo serve como perverso umbral para o território onde não existem formas.

Derrota (redentora talvez, quem sabe?) para Aschenbach; vitória absoluta para um Thomas Mann então em crise, chafurdando há anos num bloqueio criativo, do qual emergiu com o texto mais emblemático e perfeito da sua obra.

[a versão original do texto acima foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 16 de maio de 2000]

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NOTAS

[1] O primeiro deles em nova tradução, de Mário Luiz Frungillo. Já houve as de Maria Delling , as quais traduziram também o segundo, mas a nova edição reaproveita uma brilhante versão de Herbert Caro, publicada na antiga Coleção do Prêmio Nobel (Mann o recebeu em 1929).

[2] E talvez fosse melhor dizer que embaralha as cartas.

[3] Quase ia escrever “velho” porque, à época, cinquenta anos já era praticamente a velhice, e percebe-se nitidamente o temor de Mann a ela e suas possíveis iniquidades.

[4] Não foi à toa que Mann leu apaixonadamente Schopenhauer, cujo pensamento tem grande peso na estrutura de seu primeiro romance, Os Buddenbrooks (1901).

Bildnachweis: Keystone / Thomas-Mann-Archiv Zürich Zur ausschließlichen Verwendung in der Online-Ausstellung

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20/10/2015

O PACTO COM O DIABO DE THOMAS MANN: “DOUTOR FAUSTO”

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 20 de outubro de 2015)

A tradução de Herbert Caro para Doutor Fausto talvez tenha sido o grande acontecimento literário nos anos 1980 e tornou-se um clássico. Agora reaparece pela Companhia das Letras, que reeditará as obras de Thomas Mann, as quais continuam surpreendentemente populares.

Nessa versão de 1947 do mais famoso pacto com o diabo, o tentador propõe ao músico Adrian Leverkühn vinte e quatro anos de genialidade. A “apropriação” da sua alma começou ao contrair sífilis com uma prostituta, doença que degenerará em loucura irremediável, tal como Nietzsche. O grande filósofo teve suas ideias encampadas pelo nazismo. O destino de Leverkühn, tão semelhante, espelhará o da Alemanha, que mergulha em duas guerras. Tudo nos é contado por Serenus Zeitblom que, em meio à Segunda Guerra, propõe-se a escrever a biografia do amigo.  Como ele mesmo afirma, «minha vida pessoal sempre se me afigurou apenas secundária, e sem que propriamente me descuidasse dela, vivia-a distraído… ao passo que minhas verdadeiras diligências, tensões e preocupações se dedicavam ao bem-estar do amigo da infância».

Portanto, de imediato salta aos olhos o aspecto de alegoria poderosa da Alemanha rumo à loucura nazista, ainda mais ao expor as raízes luteranas presentes na mentalidade germânica (boa parte da história transcorre em cidades saturadas de passado como Halle, Leipzig e Kaisersaschern). Mas há um lado ainda mais instigante em Doutor Fausto: a discussão do problema da arte contemporânea que, por extensão, afeta a própria forma do livro.

Leverkühn tem especial predileção pela paródia. Atualmente, todas as manifestações artísticas estão impregnadas por ela ou pelo seu primo pobre, o pastiche. Dentro da narrativa, discute-se incessantemente se a função genuína da arte não se esgotou e se ela não é somente, e isso nos melhores casos, crítica e recombinação paródica das formas passadas. Além disso, discute-se o problema da arte como jogo e diversão ou como forma de conhecimento, ambição dos maiores artistas do século vinte. Como romance enciclopédico que é, Doutor Fausto assume essa oscilação e, entre todo o anedotário da narrativa, o leitor passa por discussões sobre teologia, ética, física, astronomia, biologia, sociologia, economia, estética, teoria musical e por aí vai.

Isso não deve assustá-lo, leitor. Quem avançar no texto observará que ele vai se tornando cada vez mais “narrativo” e dinâmico na parte final, ao contar o destino das várias pessoas ligadas a Leverkühn, trazendo, aliás, muitos elementos autobiográficos (a vida das irmãs de Mann, por exemplo)[1].

E num romance tão extraordinariamente construído, onde um fato aludido em determinado ponto (como as formas híbridas de vida que aparecem no começo) vai ganhar pleno significado mais adiante, Mann também não deixa de espelhar sua obra. Há a decadência da burguesia e a oposição entre esta e o mundo artístico e boêmio (como em “Buddenbrooks” & “Tonio Kröger”), o episódio italiano desagregador (como em “Morte em Veneza”), há a presença da doença (como em “A Montanha Mágica”); há até a antecipação de projetos posteriores: Adrian compõe uma obra utilizando a história do Papa Gregório, que Mann contará em “O Eleito”, em 1951, poucos anos antes da sua morte.

No período da ascensão e triunfo de Hitler, quando o Nobel de 1929 tornou-se um famoso exilado, muita gente afligiu-se porque ele não deixava claro seu posicionamento diante do Terceiro Reich (é que, verdade seja dita, durante o conflito 1914-18, ele se destacara pelo nacionalismo fanático, quase chauvinista)[2]. Quando o fez, foi um acontecimento memorável e seu irmão, o também notável Heinrich Mann, o cumprimentou comentando que ele dissera a “palavra final”.

Os romances precedentes de Mann sempre foram acusados de ter um pé no passado e não acompanhar a radicalidade formal de outros grandes modernistas (Joyce, Kafka, Proust, Virginia Woolf, Faulkner, Musil, Broch, Döblin, Céline). Com seu pacto com o diabo, mais uma vez teve a última palavra.

[o texto acima é uma versão de resenha anterior, publicada em A TRIBUNA de Santos, em 08 de outubro de 1996]

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ANEXO 

[a resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 5 de setembro de 2000]

Em O lobo da estepe (1927), de Hermann Hesse, pode-se ler o seguinte: «essas fatais relações com a música eram o destino de toda a intelectualidade alemã (…) uma hegemonia da música, como não se conheceu em nenhum outro povo. Nós, os intelectuais, sonhamos todos com uma linguagem sem palavras, que possa exprimir o inexprimível, que possa representar o irrepresentável. Em vez de tocar seu instrumento da forma mais fiel e honesta possível, o intelectual alemão está sempre em luta com a palavra e fazendo a corte à música».

Em Doutor Fausto (1947) talvez o maior entre os romances do século XX (junto com A montanha mágica), as palavras de Hesse citadas acima são lugubremente dramatizadas, tanto no que concerne a Adrian Leverkühn, o protagonista, compositor que faz pacto com o Diabo para desenvolver a genialidade inata (sempre trilhou caminhos perigosos), quanto no que concerne à narrativa, que tenta se apropriar da linguagem musical de uma maneira quase asfixiante, tornando o livro uma experiência difícil, insuportável para muitos.

Para o jovem Adrian, antes do pacto, «a música é ambiguidade organizada como sistema». Para Serenus Zeitblom, o narrador (amigo do músico pactário, desde a infância), «a música pertence a um mundo místico, por cuja fidedignidade incondicional em matéria de razão ou do valor humano eu não gostaria propriamente de garantir».

Zeitblom tenta manter a tocha do humanismo e da razão em meio ao mundo demoníaco criado pelo Nazismo. Escrevendo a biografia de Adrian, arrasta a narrativa para o universo da ambiguidade. Tudo é o que é. E mais alguma coisa, às vezes o seu contrário. A experiência do prazer sexual traz a doença mortal que levará à loucura e à morte. O vanguardismo musical (o estilo musical desenvolvido no livro é um espelho da técnica dodecafônica de Arnold Schönberg, que revolucionou a música clássica) mergulha no arcaico, no primitivo. O Diabo aparece como um rufião vulgar e discute como um teólogo.  O pacto é concretizado na Itália que foi berço do humanismo clássico e da Renascença. No plano mais íntimo, Adrian envia Rudi Schwerdtfeger, o qual foi seu amante, na missão de fazer a corte a uma mulher por ele.

E há a ambiguidade do próprio romance: ele é realmente uma narrativa na qual se conta uma história terrivelmente dramática, que pode ser uma alegoria da Alemanha desde as raízes luteranas presentes na mentalidade germânica até a loucura nazista, ápice de um processo inerente a essa mesma mentalidade, ou é uma vasta (para muitos, aborrecida, interminável) enciclopédia disfarçada?

Desde o começo, Mann povoa seu texto com uma desconfortável atmosfera híbrida, com a discussão de certas formas intrigantes como as «flores criadas pelo gelo» e a flora de excrescências inorgânicas desenvolvidas pelo pai de Adrian, formas heliotrópicas que arremedam a vida orgânica. A impressão que se tem é que o restante da narrativa não passa de um desdobramento dessas fantasmagorias que desafiam as fronteiras entre os reinos animal, vegetal e mineral. E essa mesma “contaminação” ou esse mesmo “simulacro” vão fornecer a base para um dos grandes temas de Doutor Fausto: o problema da paródia (pela qual Adrian demonstra predileção). A função da arte esgotou-se e ela, na era contemporânea, não é apenas (e isso nos melhores casos) recombinação paródica das formas passadas? A tragédia do pacto com o Diabo não se tornou uma espécie de melodrama? Curiosamente, o filho de Mann, Klaus, escreveu um romance que utilizou igualmente (e também foi igualmente traduzido pelo grande Herbert Caro) a aproximação paródico-alegórica com o Diabo e o advento do Nazismo: Mephisto, cuja famosa adaptação cinematográfica lamentavelmente deixava passar em branco na tela o tom de zombaria irônica do texto original, sucumbindo na “pesadez” solene e melodramática que muitos veem no próprio texto de Mann, o pai.

E realmente, Doutor Fausto também parece, a princípio, arrastar-se nessa mesma “pesadez” solene-melodramática. É incrível como Mann vai libertando o romance dessa armadilha e deixando-o, senão leve (o que é impossível, com um tema desses), cada vez mais ágil, dinâmico, cheio de soluções surpreendentes (Clarissa e Inês, irmãs que são as personagens femininas mais importantes, realizam atos extremos: uma suicida-se; a outra assassina Rudi Schwerdtfeger). Artimanhas de mestre.

Agora: que ironia cruel a de Thomas Mann fazer com que a danação de Adrian e sua repercussão no círculo de relações dele espelhem episódios da biografia da sua própria família. Já acontecera tal espelhamento biográfico em Os Buddenbrooks, só que dessa vez ele foi além da narração da decadência: lançou-os –só com passagem de ida—no Inferno. Grande escritor (o maior), mas péssimo (por que não dizer perverso) parente. Não  à toa o filho Klaus suicidou-se também.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2015/11/05/thomas-mann-fazendo-arte-no-romance-das-ficcoes-e-confissoes-radicais/

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NOTAS

[1] O próprio Mann revoltava-se contra os que acham árdua a leitura, ou mesmo ilegível a obra. Em carta ao seu editor afirmou, com razão: «O livro não é um tratado insuperavelmente difícil e sim, pelo menos em parte, um romance que entretém e até mesmo emociona. Não seria certamente desejável que o público ficasse atemorizado».

[2] Como se ele precisasse deixar mais claro do que escrever coisas inexcedíveis como Histórias de Jacó & Carlota em Weimar, os quais iam contra toda a burrice e intolerância dominantes. Em especial, é preciso lembrar das palavras que ele coloca na boca de seu Goethe a respeito dos alemães:

« [A antipatia aos judeus] só era comparável com outra, a que existe contra os alemães, cujo papel atribuído pelo destino e cuja posição interior e exterior entre os povos demonstravam o mais espantoso parentesco com a posição dos judeus… às vezes o assaltava o medo angustioso de que um dia se pudesse desencadear o ódio coligado do mundo contra o outro sal da terra, a germanidade…»

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14/04/2014

THOMAS MANN E O INGREDIENTE BRASILEIRO DA SUA ALMA ALEMÃ: um pequeno dossiê

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(o texto abaixo foi publicado originalmente na revista METÁFORA 13, em outubro de 2012)

Thomas Mann conferia um aspecto simbólico ao fato da mãe, Júlia da Silva Bruhns, ser brasileira: nascido (em 1875) e educado numa época na qual teorias raciais se multiplicavam, nunca deixou de considerar tal pitada “exótica” da sua biografia um ingrediente suspeito e perigosamente ambíguo —e pior, inerente à condição de artista.

Essa visão burguesa e “careta” poderia ser um certificado infalível de obsolescência de uma obra. Por incrível que pareça, entre os grandes autores de sua época, Mann ainda é um dos mais reimpressos. Como explicar seu apelo?

Em 1924, ao publicar A Montanha Mágica, enfrentou resistências devido à forma arrojada e enciclopédica (ele mesmo faria —n´ A Gênese do Doutor Fausto (1949)— a afirmação célebre de que “no âmbito do romance, hoje só é levado em consideração aquilo que não é mais romance”). Era, entretanto, a época de Joyce, de Proust, de Kafka e, a partir dessa obra-prima, nunca deixou de ser incluído entre os gênios da prosa modernista. Conta-se que, Nobel de 1929, cogitou-se seriamente (mas sem sucesso), décadas mais tarde, atribuir-lhe um segundo prêmio, em razão da sua inacreditável produção madura: entre outros, José e seus irmãos (1933-1943), Carlota em Weimar (1939), O eleito (1951) e, claro, o avassalador Doutor Fausto (1947).

A proposta de um segundo Nobel também tinha o seu quê de mea culpa. Pois ele fora premiado exclusivamente por seu romance de estreia Os Buddenbrooks (1901). E isso nos leva à outra face curiosa dessa carreira acidentada: louvado pelo maior dos críticos marxistas, György Lukács, como o narrador épico da decadência burguesa, Mann viveu longo período como autor decadente.

Explico-me. A brasileira e de sensibilidade assaz artística Júlia casou-se, não sem tensões, com o próspero comerciante e senador Thomas Johann Heinrich, da cidade portuária de Lübeck.   Como num exemplar romance familiar freudiano, a morte do pai aparentemente resolveu o impasse entre arte e materialismo: a senadora mudou-se para a boêmia Munique e dois de seus filhos lançaram-se com sucesso na carreira literária: Heinrich e Thomas, este com seus primeiros contos e o escandalosamente autobiográfico Os Buddenbrooks.

Só que após o casamento (em 1905) com a judia Katia Pringsheim (acrescentando mais uma pitada “suspeita” à sua existência), ao mesmo tempo em que vendia muito e mantinha uma vida social bem-sucedida, Thomas mergulhou na esterilidade produtiva: durante quase vinte anos foi apenas o “autor de Os Buddenbrooks”. Nem outro romance desse período (Sua Alteza Real, 1909), nem sequer Morte em Veneza (1912, que abriria seu caminho aos poucos para se tornar um dos clássicos do século), revelaram-se soluções para o bloqueio criativo de um intelectual reacionário e apegado às formas mais chauvinistas da germanidade, como demonstrou nos ensaios que escreveu em reação à Primeira Guerra (e ao irmão Heinrich, apaixonado pela França, e que aparecia então como o mais avançado dos dois, o mais capacitado a “durar”).

Ironicamente, após tanta defesa da Alemanha contra as outras nações, nos anos 1930 ele se tornaria um célebre exilado do regime hitlerista. Talvez porque, no final, os ingredientes “suspeitos” e “exóticos” prevaleceram. A mãe brasileira sobrepujou o pai e a modernidade literária e todos nós ganhamos com isso. Pois o “paralisado” Mann da Primeira Guerra, ao morrer, em 1955, lépido e fagueiro criava mais um romance notável (infelizmente, ficou incompleto): As Confissões de Felix Krull, no qual brincava matreiramente com todos esses elementos da sua vida estranha de alemão “contaminado” pelo Brasil.

 senhorita julia

O ARTISTA E O MUNDO

  1. Tonio Kröger (1903) e Morte em Veneza (1912)Em ambos encontramos cristalizada a inquietante visão manniana da realização artística. Escrito aos 28 anos, Tonio Kröger desenvolve à exaustão e de forma lapidar (é, talvez, a melhor porta de introdução ao seu universo) o tema da posição duvidosa e suspeita do artista na sociedade. De forma que o protagonista, já um escritor famoso, ao voltar à cidade natal é confundido com um marginal foragido.Assim como ele, Aschenbach em Morte em Veneza (transformado em músico na grande adaptação cinematográfica de Luchino Visconti) mantém a nostalgia pelo mundo burguês e liga-se à sua ideologia produtiva pela extrema disciplina, procurando a perfeição formal. Na romanesca cidade italiana, onde procura se aliviar do estresse dessa existência ordeira, apaixona-se por um belíssimo efebo de 14 anos e contrai a “peste”: um momento-chave da literatura é aquele em que morre, associando Tadzio ao mar. Vagara por Veneza atordoado por Eros e não sabia que este era o anjo da morte, que o estava conduzindo para o nada. A beleza encarnada no corpo humano serve como perverso umbral para o reino onde não existem formas.
  2. A Montanha Mágica (1924)Nas listas de melhores romances do século XX, sempre aparece como a alternativa a Doutor Fausto: Hans Castorp, “filho enfermiço da vida”, nada afeito às exigências da realidade, vai visitar o primo tuberculoso num sanatório suíço, e de lá não consegue sair por sete anos. Parece condenado à inatividade e à falta de sentido do mundo burguês anterior à Primeira Guerra, mas ali, entre grandes discussões filosóficas, aprenderá (apesar da advertência do primo, “estamos aqui para ficar sadios e não mais sábios”) tudo sobre a vida até que tenha de descer da Montanha Mágica para participar do confronto bélico de 1914-1918, que mudará a Europa.Aliando o realismo simbólico que constituíra sua maior conquista em Sua Alteza Real, Mann aqui hipertrofia (de forma divertidíssima) uma feição tipicamente alemã da prosa de ficção, o “romance de formação” de um protagonista, até atingir uma apoteose do gênero: um romance total, uma forma enciclopédica quase inédita para incorporar “aquilo que não é mais romance”. Além disso, é uma reflexão romanesca sobre o Tempo que nada fica a dever a Marcel Proust.

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3. O jovem José (1934) e José, o provedor (1943)

Na figura do imaturo e sonhador José do segundo volume de sua tetralogia, Mann revive suas obsessões: no mesmo passo em que prossegue sua investigação da invenção do monoteísmo (iniciada de forma genial com Histórias de Jacó, 1933), temos o temperamento artístico como ingrediente desestabilizador (devido à sua ambiguidade moral), mesmo na remota ambientação do Antigo Testamento.

Já exilado nos EUA e fã do presidente Roosevelt, em José, o Provedor, volume final da tetralogia (precedido por José no Egito, 1936), publicado em plena Segunda Guerra, Mann desloca seu personagem da esfera “artística”, por assim dizer, e o projeta no plano prático da existência, como administrador e símbolo da liderança democrática, que aqui aparece não só como contraposição à mitologia nazifascista, como—de forma mais profunda—também representando uma virada das suas próprias posições na guerra anterior. José tem de sair da sua “montanha mágica” e pôr mãos à obra no mundo real.

4. Carlota em Weimar(1939)

Thomas Mann sempre se identificou com Goethe. E resolveu fazer uma experiência incrível: entrar na mente do grande gênio literário alemão, num capítulo extraordinário, onde exercita o “stream of consciouness”, o fluxo de consciência consagrado por James Joyce em Ulysses, para mostrar a alquimia que se processa no interior do artista. Enquanto isso, Carlota Kestner, inspiradora da amada de Werther, o idolatrado livro do mestre, vem ajustar contas com ele e recebe, na hospedaria local, várias pessoas ligadas ao Conselheiro de Weimar: nesses episódios, Mann espelha a frustração, a incompreensão e desilusão, a par da admiração e amor, das pessoas à volta da sua própria existência. Um jogo fascinante entre personagens e pessoas reais que os inspiraram, e uma reflexão definitiva sobre o uso que o artista faz da vida dos outros e o que ele é, como ser biográfico, para os outros.

5. Doutor Fausto (1947)

Utilizando a lenda do pacto com o Diabo que inspirou a obra maior (Fausto) do seu ídolo, Mann se vale da paródia e da intertextualidade e, mais radicalmente do que nunca, de tudo “aquilo que não é mais romance” para contar a história de um músico, Adrian Leverkühn, o qual firma um pacto com o Diabo (não deixa de ser curioso que seu filho, Klaus Mann, tenha contado uma história similar no romance Mephisto, de 1936). Oriundo de cidades com profunda impregnação luterana, Leverkühn espelha no seu mergulho na genialidade (meio sinistra) e depois na loucura (consequência da sífilis) a nação alemã impregnada pelo chauvinismo nacionalista até chegar ao delírio nazista. Como síntese de suas obsessões, Mann faz com que a história seja narrada por Serenus Zeitblom, amigo do pactário, uma alma sensata, burguesa, sadia. O espectro de Lübeck e do pai ainda rondando o artista boêmio de Munique e as danações do temperamento artístico. E voltando-se às suas inquietações básicas, a capacidade de criar um dos monumentos do romance modernista, um dos raros a se ombrear com as obras de Joyce, Proust e Kafka.

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17/11/2012

A MAIOR PERSONAGEM FEMININA DE THOMAS MANN

Venho comentando sistematicamente nesta minha coluna de A TRIBUNA o relançamento das obras de Thomas Mann pela Nova Fronteira. Já quase no final do percurso, a avaliação do empreendimento acaba sendo negativa. A princípio, as edições pareciam boas e bonitas. Não resistem, porém, a um olhar mais cuidadoso: não há unidade nas capas, umas são de muito bom gosto, outras surpreendem pela breguice; no caso dos livros mais volumosos, elas vão se descolando e o exemplar fica todo deformado. Cobrando tão caro,  a editora poderia pelo menos ter utilizado um papel melhor porque, somando tudo, sua coleção Thomas Mann ficou com um ar bem ordinário.

As deficiências da apresentação gráfica não são nada comparadas às encontradas nos textos. A Nova Fronteira prometeu “traduções revistas”. Ora, ora. Pegue-se CARLOTA EM WEIMAR. A não ser em alguns casos demasiadamente gritantes, a nova edição mantém quase todos os erros da anterior (lançada em 1984). Por exemplo, Goethe era indulgente com os horários de seu secretário Riemer, mas tanto em 1984 quanto agora o leitor brasileiro lerá que ele era indulgente com os honorários. O mesmo Goethe afirmava ter mão de artesão, apesar do seu refinamento aristocrático, só que o infortunado leitor daqui encontrará, em 1984 e agora, um absurdo não de artista. Etc etc etc. As traduções devem ter sido revistas por Stevie Wonder.

É uma pena, uma vez que LOTTE IN WEIMAR  é notável e não apenas por trazer a melhor personagem feminina criada por Mann: o famoso sétimo capítulo penetra diretamente na mente de Goethe, num enorme e complexo monólogo interior, com jogos de palavras e alusões que necessitavam de um tratamente editorial decente para não trazer mais dificuldades ao leitor. Esse capítulo e a parte inicial de José e seus irmãos são os maiores tours-de-force de Mann em termos técnicos, seus maiores feitos virtuosísticos.

Antes desse momento genial, a Senhora Conselheira Carlota Kestner chega a Weimar em 1816 (com 68 anos). Ela foi, na juventude, a inspiradora de Lotte, amada de Werther na obra-prima de Goethe, fato que sombreou toda a sua existência burguesa respeitável como mãe de 11 filhos.Apesar do pretexto da viagem (visitar a irmã e o marido desta), Carlota tem como objetivo confrontar-se com Goethe, o qual pontifica em Weimar como o supremo homem da nação alemã. Como ela mesma (um personagem pelo qual o leitor se apaixona) afirma, a certa altura: “existe uma velha conta entre a montanha e eu, uma conta que não foi saldada”. Mais tarde, num diálogo fantasmagóricona carruagem do próprio Goethe: “Vim para considerar o que teria sido possível, e cujas desvantagens diante do real verdadeiro são tão evidentes; e que entretanto permanece no mundo a seu lado como um Mas, e se…? e Se tivesse sido de outro modo…, o que é digno de nossa investigação. Você não acha também, velho amigo, e não pergunta também, às vezes, pelo possível no meio das dignidades da sua realidade?”

Os seis primeiros capítulos do romance são bem teatrais. Carlota, que se instalara numa hospedaria, procura sair para visitar a casa da irmã e é impedida por diversas visitas, as quais lhe oferecem visões indiretas e sombrias do autor de Werther e Fausto. Depois, temos o extraordinário capítulo central do livro, em que percebemos o trabalho alquímico processando-se na mente goethiana, à margem e além de todas as visões exteriores e parciais que tivemos dele. O clímax do romance seria, é claro, o encontro (não se viram por 44 anos) entre Carlota e o “grande homem”, num almoço formal na casa dele, no capítulo seguinte, contudo Mann deliberadamente (creio eu) o constrói como um anti-clímax, para depois jogar o leitor no intrigante e belo capítulo final, onde a velha conta não saldada entre a montanha e Carlota é discutida numa atmosfera onírica, como se não fosse possível um entendimento real entre ambos no cotidiano solene, pesado e reverente que cerca o antigo apaixonado de Lotte.

Em CARLOTA EM WEIMAR alternam-se três planos: o plano do jogo literário (pois Carlota, no livro, se torna duplamente personagem: já o era de Goethe, torna-se novamente em Mann, afastand0-se ainda mais da sua existência biográfica real), que é  mola propulsora para o plano do espelhamento biográfico (a frustração, incompreensão e desilusão dos vários personagenscom relação a aspectos da personalidade e comportanento de Goethe, no texto, reproduzem as mesmas reações com relação ao próprio Thomas Mann, uma pessoa que, no entender do seu risível biógrafo Donald Prater, era mais fácil de admirar como escritor do que se gostar como ser humano, como se isso tivesse a menor importância: há gente simpática demais no mundo, um Thomas Mann é muito raro); e, por fim, o plano alegórico: ao desenhar um perfil da época pós-napoleônica na visita de Carlota a Weimar, o grande escritor alemão projeta o momento histórico no qual escrevia, com a sua pátria dando os passos decisivos para iniciar a Segunda Guerra.

Quem ler o romance com atenção, tendo em mente o ano da sua publicação (1939), verá como Mann faz com que as afirmações de Goethe, que é afinal o nome mais alto da cultura germânica, mesmo para os nazistas, funcionem como advertências diretas para os seus compatriotas (ele já se encontrava exilado): “não é certo que tenham de odiar a luz. Lamento por eles não conhecerem o encanto da verdade…que se consagrem credulamente a qualquer rufião místico que apele para o mais baixo, confirme-os em seus vícios e lhes ensine a entender a nacionalidade como isolamento…” A antipatia aos judeus “só era comparável com outra, a que existe contra os alemães, cujo papel atribuído pelo destino e cuja posição interior e exterior entre os povos demonstravam o mais espantoso parentesco com a posição dos judeus… às vezes o assaltava o medo angustioso de que um dia se pudesse desencadear o ódio coligado do mundo contra o outro sal da tera, a germanidade…”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de fevereiro de 2001)

 

03/09/2012

Thomas Mann, terminando como começou: “Confissões do Impostor Felix Krüll”

Em meados dos anos 50, Patricia Highsmith escreveu O talentoso mrRipley, no qual mostrava como o protagonista se apropriava da identidade do homem que invejava após assassiná-lo. Na verdade, Ripley sentia-se como se, a partir daí, começasse efetivamente a existir (antes, sempre se sentia um “nada”). Não deixa de ser curioso que, mais ou menos na mesma época, Thomas Mann tenha lançado o primeiro volume do seu Confissões do impostor Felix Krüll, em que se narra também um processo de apropriação da identidade alheia. Com uma diferença fundamental: há o consentimento do Outro. E mais ainda: se Ripley é sombrio, Felix Krüll faz jus ao seu prenome. Pelo menos, é o que afirma e reafirma várias vezes. No entanto, quanto à troca de identidade não há dúvida:

“Não, a mudança e renovação do meu eu usado, despir o velho Adão e entrar num outro, era isso, na verdade, que me dava plenitude e felicidade. Percebi que a troca de existências não produz apenas uma deliciosa renovação, mas também certa obliteração, no sentido de que todas as recordações da minha vida anterior haviam sido exiladas de minha alma… Minhas recordações! Não era prejuízo nenhum já não terem de ser minhas”.

Já na adolescência, Felix gostava de se fantasiar (servia de modelo para o padrinho, o pintor Schimmelpreester) e detestava voltar ao ramerrão diário:

“Ah, eram horas maravilhosas! Mas quando, acabada a brincadeira, eu vestia novamente meus trajes cotidianos, insípidos e insignificantes, dominava-me uma incontrolável tristeza, uma nostalgia, uma sensação de tédio indescritível e infinito”.

Entre uma e outra citação há todo mundo de aventuras e incidentes engraçados. Confissões do impostor Felix Krüll é o que se chama de romance picaresco, isto é, mostra de forma antes cômica que séria como um personagem ascende na escala social. Nele, fica claro que, no fundo, Thomas Mann (que morreu um ano depois do lançamento do livro, em 1955, deixando o seu derradeiro romance incompleto) era tanto um anarquista quanto um humorista, apesar de ter mantido uma aparência de decoro burguês nas obras anteriores.

O livro permeou toda a sua carreira. Começou a ser escrito mais ou menos na época de Morte em Veneza (1912), teve uma parte publicada anos depois, em 1923, e segundo Nigel Hamilton (em Os irmãos Mann) quando o grande escritor alemão o retomou, no fim da vida, continuou a escrever de onde tinha parado no manuscrito, como se não tivesse havido nenhuma modificação interna ou estilística no intervalo (claro que isso não é possível, mas John Ford, o maior dos cineastas clássicos, já nos alertou numa de suas obras-primas derradeiras: quando a lenda é mais forte do que a verdade, imprima-se a lenda).

Resumindo ao extremo, o romance conta como, no final do século XIX, após a falência e suicídio do pai, a família de Felix se dispersa. Ele vai para Paris trabalhar como criado de hotel, além de aperfeiçoar sua arte como ladrão e trapaceiro. E um grande sedutor, pois é muito belo e a narrativa mostrará pretendentes femininos e masculinos ao seu corpo. Entre os freqüentadores habituais do hotel está o marquês de Venosta. Ele mantém uma ligação com uma atriz e os pais querem obrigá-lo a fazer uma viagem pelo mundo para afastá-lo dela. É ele quem propõe a Felix a troca de identidades já referida. Quando ela se efetiva, o primeiro passo do “marquês” é Lisboa (Mann, ao descrevê-la, parece ter misturado Portugal e Espanha, numa confusão geográfica que espanta seus críticos, em se pensando no seu meticuloso apego documental, mas ele parece ter se dado total liberdade de trabalhar num terreno quase onírico em algumas das suas obras finais). Lá, ele se envolve com a esposa e a filha de um eminente cientista, o professor Kuckuck, a quem ele conhecera no trem para a capital portuguesa (uma passagem que retoma o clima e o tom narrativo de A montanha mágica, tanto que, em alguns momentos, temos a impressão de que Felix se metamorfoseou não no marquês de Venosta, e sim em Hans Castorp, o herói daquele que é o meu livro predileto de Mann e de todos que já li). E é em Lisboa, mais exatamente nos braços da sra. Kuckuck, que a narrativa se interrompe…

Assim como em Retrato de uma senhora, de Henry James, esse desfecho truncado não chega a ser decepcionante. A história do simpático e sedutor trapaceiro tende ao infinito e provavelmente Mann (que tinha particular estima por ela) jamais a terminaria mesmo. Não deixa de ser pertinente que se interrompa justamente no momento em que a formidável matrona acolhe nos braços o jovem “marquês”, quando se pensa que o autor supremo para Mann era Goethe: Felix Krüll “termina” (uma palavra extremamente imprópria neste caso) sua história envolto pelo eterno feminino consagrado por Fausto, a suprema obra goethiana. De fato, a própria troca entre Krüll e Venosta é meio fáustica, enquanto que a “troca”, por assim dizer, entre Ripley e Dickie Greenleaf era mais dostoievskiana, carregada de crime e culpa.

Contudo, a grande arte, a suprema ironia de Confissões do impostor Felix Krüll está no exercício da narrativa em primeira pessoa. Em nenhum dos outros grandes romances de Mann o leitor encontrará a primeira pessoa.Que ele o faça numa narrativa em que justamente o narrador é um farsante, um trapaceiro, alguém que usurpa a identidade alheia e foge da sua própria, é a prova de um senso de humor superior, de alguém que sabia tudo sobre o ato de escrever ficção. Alguém que terminou sua obra assim como começou: como o maior de todos.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de junho de 2000)

24/02/2011

Os mortos que não podem ser enterrados: duas resenhas-homenagens

 

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de novembro de 2006)

No primeiro dia do mês morreu um dos maiores escritores do século XX, William Styron, aos 81 anos, após anos de luta contra a depressão e a tentação do suicídio, o que causou uma drástica diminuição de títulos novos da sua já pouco prolífica obra. Esse drama foi contado no curto e impressionante Perto das trevas (Darkness visible), onde podemos ler: “A depressão, quando me dominou, não era uma estranha, nem mesmo uma visitante inesperada. Há décadas ela batia à minha porta”.

Já no seu romance mais famoso, o maravilhoso A escolha de Sofia (1979), um dos livros mais lidos e relidos pelo autor deste artigo ao longo dos últimos 20 anos, podia-se ter uma indicação dessa proximidade com as trevas. O narrador, Stingo, afirma: “Na minha carreira de escritor, sempre me senti atraído por temas mórbidos –suicídio, estupro, assassinato, vida militar, casamento, escravidão”.

Parece ser um fardo dos escritores do chamado Deep South, herdeiros de William Faulkner. Styron certamente foi o mais brilhante deles, já a partir do primeiro romance, Deitada na escuridão (Lie down in darkness, 1951), história de uma jovem sulista, Peyton Loft, que se suicida em Nova York. O relato começa com seu cadáver voltando para casa e reconstitui toda a desagregação familiar que a transforma ao mesmo tempo numa mistura de Antígona e Ifigênia, partícipe e vítima do destino do clã.

Mesmo com a atmosfera carregada, esse texto de estréia impressionava mesmo pelo fabuloso domínio técnico do autor de 25 anos. Deitada na escuridão está para sua obra como Os Buddenbrooks para a de Thomas Mann (como foi observado pelo  crítico marxista Carlos Nélson Coutinho, discípulo de Georg Lukács, na edição brasileira de  Realismo Crítico Hoje): se nada mais tivesse produzido, já garantiria espaço para ele dentro de uma geração assombrosamente talentosa (Truman Capote, Norman Mailer, Saul Bellow, J.D. Salinger, Paul Bowles só para citar os mais óbvios).

Alguns anos depois apareceu o brevíssimo e austero A longa marcha, que mostrava a grotesca realidade da guerra sem precisar chegar a ela. Ele já teve duas traduções no Brasil (uma, como O preço da paz), só que está há anos fora de mercado. Mais absurdo ainda: o muito admirado Set this house on fire (1960), para o já citado  Carlos Nélson Coutinho o equivalente de A montanha mágica nos EUA, sequer foi traduzido!

Felizmente o mesmo não aconteceu com sua obra-prima As confissões de Nat Turner (1967), a qual, apesar do repúdio de intelectuais negros, ganhou o Pulitzer e é o mais cabal entrelaçamento entre o tema da escravidão com a problemática espinhosa da constituição de uma mentalidade religiosa contraditória na cultura afro-americana, ao dar a voz (num grande e também contraditório exercício narrativo em primeira pessoa) a um escravo que liderou uma rebelião violenta no século XIX. Aqui nesta coluna Nat Turner entrou na lista dos 100 maiores romances do século passado. Ainda assim, o meu  favorito continua sendo a memorável história do encontro entre o aspirante a escritor e a não-judia sobrevivente (se é que se pode chamá-la assim, e considerando o final do livro) de Auschwitz, na Nova York de 1947, que embora tenha proporcionado a Meryl Streep um personagem à altura do seu talento (e lhe valeu o Oscar mais merecido que algum intérprete já recebeu), empobreceu no cinema: A escolha de Sofia é um romance caleidoscópico e fascinante, com suas idas e vindas temporais, algo que só encontra paralelo nos livros de Jorge Semprún, como Um belo domingo.

Aí veio a deterioração psíquica, a necessidade de internar-se, após o uso indiscriminado de remédios como Halcion e Ativan. E, de vez, em quando, uma jóia como Uma manhã em Tidewater (1993), reunião de três narrativas. A mais bonita delas: Shadrach, na qual um negro quase centenário, com um falar incompreensível, aparece na propriedade de “brancos pobres” e faz com que o narrador, embrião do futuro escritor, tenha de traduzir a trajetória que o levou até ali, onde foi escravo, para morrer, despertando a família Dabney para sua própria história, perdida no empobrecimento crescente geração após geração.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,   em 27 de agosto de 2005)

Por conta de Lima Barreto, que ocupou esta coluna nas últimas semanas (VER aqui no blog:

https://armonte.wordpress.com/2012/05/08/genio-da-raca-lima-barreto/), quase que se deixa escapar uma data importante: a morte de Thomas Mann há 50 anos, em 12 de agosto (ele nasceu em 1875), na Suíça, numa espécie de exílio auto-imposto diante da guinada conservadora e totalitarista (após a guerra) do seu país de adoção, os EUA, depois de perder a cidadania alemã com a ascensão nazista.

O maior dos escritores já estreou com um romance genial: Os Buddenbrooks (1901), pelo qual ganhou o Nobel (em 1929) e que apresenta  seu mais inesquecível personagem, Thomas Buddenbrook, o qual, após elevar o prestígio sócio-comercial da firma da família, descobre, com a leitura de Schopenhauer, que tudo é “maya”, ilusão. A partir daí, tudo o que é sólido desmancha no ar.

Ainda nessa primeira fase, temos o revelador Tônio Kröger.  A  visão da arte como uma atividade perigosa e suspeita, essencialmente  desagregadora, que precisa ser refreada por uma vida exteriormente burguesa, é herdada de Nietzsche, e terá lugar até em O lobo da estepe (1927), de Hermann Hesse, cujo misantrópico protagonista, gosta de viver em casas burguesas e arrumadas.

Antes da Primeira Guerra, Mann ainda publica dois textos-chaves: Sua Alteza Real, onde aprimora seu estilo rumo a um realismo simbólico, e Morte em Veneza (a melhor novela do século XX, junto com A Metamorfose, de Kafka), na qual um grande e cansado escritor deixa-se levar pela beleza de um menino/anjo-da-morte, associado ao apelo do mar, o mundo informe, tentação suprema para quem sempre lutou para criar a forma.

Após um longo e obscuro ciclo, começa em 1924 o grande período de Mann como gênio da literatura, com sua mais apaixonante realização, A Montanha Mágica, caso raro de uma obra difícil, mas carismática e popular, ao ponto de a Nova Fronteira relançar neste ano mesmo uma reimpressão e ela se esgotar rapidamente em diversos lugares. Recentemente, esse romance inigualável  e seu protagonista, Hans Castorp ganharam uma bela homenagem de Harold Bloom em Como e por que ler.

O apelo do fascismo foi diagnosticado com precisão em Mário e o Mágico (1930). De 1933 a 1943, ou seja, da vida na Alemanha ao exílio nos EUA, foram publicados os quatro volumes de José e seus irmãos. O primeiro, Histórias de Jacó, é possivelmente o texto mais bonito e virtuosístico que Mann escreveu, ao ponto de eclipsar, talvez injustamente, os outros três. É o tipo de texto que seria escolha certa para a famosa hipótese da “ilha deserta” que sempre se propõe aos leitores.

O mais incrível , no entanto, é que reelaborando a fábula bíblica, ele ainda escreveu uma obra-prima como Carlota em Weimar (1939), narrativa sobre o reencontro de Goethe e a inspiradora da heroína de Werther, e na qual a alma alemã é dissecada. E também a divertida farsa hindu, As cabeças trocadas (1940), além de outra  história tirada do  Antigo Testamento: A Lei, sobre Moisés.

Depois da Segunda  Guerra, ainda começou outro período glorioso para Mann: em 1947, ele  pôde rir por último na tola questão de ser um “artista ultrapassado”, ao publicar o moderníssimo, ao mesmo tempo sinistro e paródico, Dr. Fausto, para muitos sua obra suprema, e que realmente é a mais impressionante. O impacto da mistura de pacto com o demônio, alma alemã, música e nazismo foi tão grande que ele chegou a ser cogitado para um segundo Nobel.

Livre de qualquer amarra, ainda escreveu dois romances imperdíveis: O Eleito (1951), que disputa com Histórias de Jacó a taça no quesito criatividade na prosa e estado de graça com que foi escrito; e o incompleto (ficou só no primeiro volume) As confissões do impostor Félix Krull (1954), texto que o acompanhou a vida inteira e que representa sua incursão na “alta comédia”, aquela em que a vida é sonho e estamos no grande teatro do mundo.

Mann teve a sorte de ser esplendidamente traduzido no Brasil, especialmente por Herbert Caro e Agenor Soares de Moura. Teve a sorte de ter um admirador, Anatol Rosenfeld, que deixou ótimos ensaios sobre sua obra. Pena que as biografias sobre ele sejam lamentáveis: Nigel Hamilton, em Os irmãos Mann, procura sempre depreciá-lo, em favor de Heinrich Mann. E há uma ridícula e desonesta biografia de Donald Prater, Thomas Mann, que já é comprometida de saída pela maldisfarçada e inoportuna antipatia do biógrafo pelo biografado e pelo visível fastio que sua obra lhe causa. É realmente muito pouco para um criador tão raro e fascinante que, como se lê na capa da edição de estréia da “EntreLivros” (na qual foi o destaque), “desafia e seduz o leitor atual”. Sempre tachado de ultrapassado, Mann , como Flaubert, sempre acaba por ultrapassar, deixando para trás os detratores.

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