MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/03/2011

ODISSÉIA NO ESPAÇO INTERIOR

A Novo Século está relançando vários títulos de Virginia Woolf. A fascinação pela água permeou toda a sua obra (além da sua morte: ela se afogou) e fornece o motivo simbólico de A Viagem (The Voyage Out), seu primeiro livro (que já fora lançado por aqui, numa capa constrangedora, pela Siciliano), no qual narra a travessia do Atlântico por Rachel, a qual, aos 24 anos, parece demasiado inexperiente. Órfã de mãe, viaja com o pai num dos navios de que ele é proprietário, a bordo do qual é beijada por um homem mais velho, Richard Dalloway. Ele e sua esposa reaparecerão dez anos depois numa obra-prima: Mrs. Dalloway, que forma com Ao Farol (27), Entre os Atos (41) e sobretudo As Ondas (31) o quarteto dos livros maiores da genial escritora inglesa.

E numa obra que, como o mar, é fluir e refluir de temas, A Viagem é a primeira escala e apresenta o convencionalismo de uma paisagem que não fica muito distante das indicações rotineiras dos guias turísticos (o que não significa que não seja deslumbrante e possa surpreender), e essa timidez aventureira é o que respalda restrições de críticos e leitores comuns, que também se entendiam com a segunda escala, Noite e Dia (19), por manter-se igualmente na segurança das rotas habituais, mas sem os equipamentos necessários de entretenimento que um investimento desses requereria. É aos poucos, com lento progresso, que Woolf atingirá seus postos avançados e embrenhar-se-á por caminhos peculiares, deixando-se levar pela deriva das correntes internas, chegando, assim, ao coração das trevas dos mares interiores.

É ainda pálida a indicação dessa intrepidez na trajetória de Rachel, após o beijo e a chegada à América Central, ambos os eventos despertando sentimentos que a fazem, entre outras conseqüências, aproximar-se da tia, Helen, primeira encarnação de um tipo de mulher admirado por Virginia Woolf e que será retratado de maneira definitiva na Mrs. Ramsay de Ao Farol.  Na América, Rachel se apaixona por Terence e freqüenta o estreito círculo social de estrangeiros, permitindo a Woolf começar a mostrar suas cruéis garras satíricas, enquanto a heroína desabrocha, tanto no sentido da sexualidade (mais circunspectamente do que nos livros de D.H. Lawrence) quanto no sentido de conhecer o poder do “momento”, de imergir na efemeridade do instante pleno: “A névoa que os envolvera, fazendo-os parecer irreais, desfazia-se um pouco mais…Como naquela ocasião no hotel em que ela se sentara na janela, o mundo se organizava debaixo do seu olhar muito nitidamente, e em suas verdadeiras proporções”.

Ao percorrer (e introduzir na ficção), em seus melhores momentos, espaços insólitos, que não estavam ainda demarcados, o evanescente e impressionista romance de estréia de Virginia Woolf nos coloca no pórtico de uma das realizações artísticas mais significativas do século XX e justifica o famoso e oracular dito de Georg Lukács: “começou a estrada, a viagem terminou”.

(resenha publicada em primeiro de novembro de 2008)

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