MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

04/07/2012

MAR DE HISTÓRIAS: O apogeu criativo de Faulkner

Publicado em 1940, O POVOADO   (The Hamlet) pertence ao apogeu criativo de William Faulkner (1897-1962), autor que divide o topo do meu panteão pessoal junto com Thomas Mann. É um romance formado por várias historietas. Começa com a aparição dos Snopes, um clã estranho (todos se parecem) e predatório, num vilarejo do Mississipi dominado pela família Varner. O mal snopes vai alastrando-se e corroendo os antigos valores sulistas, impondo à economia e às relações humanas da região um incipiente capitalismo selvagem.

É difícil dizer qual das histórias que compõem O POVOADO é mais absorvente, mais bem armada, mais bem escrita: se a história da obsessão de Ab Snopes por cavalos, se a da fascinação sexual exercida pela opulenta Eula Varner no seu professor e num grupo de rapazes (cujo desfecho será o casamento dela com Flem Snopes, o gerador do mal snopes), se a do Snopes retardado, Ike, que se apaixona por uma vaca e a rapta, se a do casamento inevitável de Houston, do qual ele tentou fugir por treze anos, se a do seu assassinato por Mink Snopes, se a luta de vontades entre Mink e o primo por causa do dinheiro no cadáver de Houston, se a do julgamento de Mink, o qual aguarda inutilmente a intervenção de Flem, se a da patética insistência de Henry Armstid em comprar um cavalo num enervante leilão que se arrasta por um dia inteiro e que culminará em fuga dos eqüinos (essa parte, de fato, é a mais famosa do romance e é amiúde publicada à parte, com o título “Cavalos malhados”), se a da destrambelhada e quase irreal  busca pelo tesouro da Casa do Francês (que pertence a Flem Snopes), empreendida por Armstid, Bookwright e Ratliff. Este último é uma espécie de porta-voz dos valores  do deep South:

    “Ele morava em Jefferson e percorria boa parte dos quatro condados…vendia talvez três ou quatro máquinas por ano, o resto do tempo passava comercializando terras,gado, ferramentas agrícolas de segunda mão e instrumentos musicais, ou qualquer outra coisa que os donos já não quisessem mais, relatando de casa em casa, com a eficiência de um diário, as notícias dos quatro condados… além de levar, com a pontualidade de um jornal, mensagens pessoais sobre casamentos e enterros, e receitas para fazer conservas de frutas e verduras. Ele nunca esquecia um nome e conhecia todo mundo, homem, mula e cachorro, num raio de oitenta quilômetros”.

Compassivo e fatalista, cínico e matreiro, Ratliff serve de costura para a narrativa, contando e ouvindo o mar de histórias da região, em diálogos maravilhosos.

Se não se pode apontar qual a melhor história, pode-se, entretanto, afirmar que a mais transfigurada pelo lirismo é a da paixão do débil mental pela vaca. Que outro autor seria capaz de tascar numa vaca o epíteto de virgem meditativa, mantendo-se no precário fio da poesia pura, sem se esborrachar no ridículo que ameaça lá em baixo?

No mais, além dos enredos intrincados, contados de maneira magistral e sempre inusitada, O POVOADO destaca-se na série de obras-primas de Faulkner (Luz em agosto; Absalão!Absalão!; Enquanto agonizo; Pantalão Negro; O som e a fúria) pelo humor que ilumina o livro de ponta a ponta, dando sabor à densa massa que configura a invasão do povoado e da região pelos Snopes. Até mesmo a tradução meio sem-graça de Wladir Dupont (a versão portuguesa, feita por Jorge Sampaio, é muito mais vívida, acredite se quiser, leitor) deixa entrever que o povoado dominado pelo algodão (“o ar tórrido, que parecia estar impregnado do ranger cansado e lento das carroças carregadas, cheirava a algodão; tiras de algodão se enroscavam na vegetação endurecida pelo pó, à beira da estrada, ou então se podiam ver na terra, esmagadas por cascos e rodas), rústico, perdido no Mississipi, no final do século XIX e começo do XX, é a região  onde o leitor encontrará a melhor ficção já escrita.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA  de Santos, em 20 de maio de 1997, e aqui ligeiramente modificada)

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