“Mas agora, disse ela, como quem volta ao que interessa, me diga o que você espera da vida, além de fama e fortuna, que são o óbvio. Eu respondi: Não sei o que espero. Sei o que eu gostaria. Eu gostaria de ser adulto.” (Truman Capote, Monstros Imaculados)
CAPOTE CAPOTOU?
No Brasil existem algumas lacunas editoriais difíceis de explicar (Henry James que o diga). Mesmo com o sucesso de A sangue frio & Breakfeast at Tiffany´s- Bonequinha de Luxo (por sinal, grandes obras literárias, antes de qualquer coisa), e com o pequeno volume do conjunto da obra de Truman Capote (1924-1964), há livros dele que nunca foram traduzidos por aqui, salvo engano: os seus dois primeiros romances, Others voices, others rooms (em Portugal, Outras vozes, outros lugares, mas também poderia ser “Outras terras, outras gentes”, aproveitando o verso proverbial), de 1948, e o encantador A harpa de ervas, de 1951. Pelo menos, agora temos uma edição (pela L&PM) de seu romance inacabado, ANSWERED PRAYERS-SÚPLICAS ATENDIDAS (não seria melhor “Preces atendidas”, mesmo porque existe um livro de Danielle Steel com o título escolhido?), na tradução cheia de escorregões e soluções ruins de Guilherme da Silva Braga (a L&PM faz um trabalho fantástico de divulgação de um leque amplo de títulos para o leitor de qualquer nível aquisitivo, contudo não se pode dizer que exija muito capricho dos seus tradutores, como já pude comprovar muitas e muitas vezes)
´Capote começou a pensar em SÚPLICAS ATENDIDAS logo após atingir o auge do sucesso com A sangue frio (nós sabemos o que lhe custaram esses anos envolvido com o livro devido às produções biográficas que trataram exautisvamente do assunto, o sonolento Capote & o ótimo Confidencial). Ele pretendia um vasto painel das mazelas e do avesso dos ricos e famosos com os quais convivia e que se aproximasse do microcosmo proustiano de Em busca do tempo perdido. Contrariando seus editores, ele publicou alguns capítulos do livro na revista “Esquire”, em meados dos anos 70 (apos anos adiando a publicação do livro, sempre negociando novos prazos) e foi execrado e transformado em inimigo público número um daquela gente toda. Por quê? Ele nem se deu ao trabalho de fazer o chamado “roman a clef”, o romance com pessoas reais aparecendo sob nomes que as disfarçassem, não, ele deu nome aos bois, contando as fofocas, os disse-me-disse, o que corria à boca pequena e à socapa E usou um tom venenoso, deletério, transformando todo aquele mundo numa espécie de caverna de monstros (não à toa, o primeiro capítulo tem o título de Monstros imaculados).
No final, quando ele morreu, em 1984, todo o material prometido reduzia-se a três capítulos (a edição da L&PM tem 173 páginas). Nada mais foi encontrado (as hipóteses a respeito do assunto podem ser encontradas no Prefácio de Joseph M. Fox, para a edição póstuma de 1987, essa mesma que levou vinte e dois anos para chegar até nós).
Portanto, qualquer avaliação de SÚPLICAS ATENDIDAS tem de levar em conta o seu inacabamento. Todavia, é quase impossível não comparar o resultado com outros que ficaram inacabados, como A morte feliz, de Camus, Um sopro de vida, de Clarice Lispector, Entre os atos, de Virginia Woolf, para não falar das grandes obras inacabadas que fazem parte da nossa imaginação (a de Kafka, a de Musil, O livro do desassossego, de Pessoa, até mesmo Em busca do tempo perdido, que nunca teve uma última demão). Como, apesar da ligação entre eles, Capote parece ter trabalhado em cada capitulo como um bloco separado, independente, pronto para publicação, não dá para evitar a sensação de que ele não se preocupou com o acabamento de cada um deles, o que é mais preocupante do que a falta do conjunto. Cada um por si tem altos e baixos gritantes, que causam espanto ao leitor habitual do autor de Música para camaleões (meu livro favorito dele, para mim uma das maiores obras do século XX; aliás, Capote é o mais perfeito dos autores norte-americanos da 2a metade do século passado).
O tecto é uma narrativa de P.B. Jones, que está de volta a Nova York após anos de aventuras oportunistas na Europa e que escreve seu relato instalado na ACM (“os corredores murmuram com as passadas abafadas de cristãos libidinosos; se você deixa a porta aberta, isso em geral é entendido omo um convite…”), aos 35 ou 36 anos (a imprecisão é devida às circunstâncias obscuras do seu nascimento).
Com o sonho de ser escritor, logo cedo Jonesy começou a se prostituir, já quando trabalhava como massagista, e continuou na sua condição de michê , mesmo depois de publicar o primeiro (e único) romance, queimando-se no meio editorial nova-iorquino por abandonar a mulher (mais velha) com a qual passara a viver, uma personalidade marcante daquele meio. Na Europa, após inúmeras peripécias (e “quatorze mil dólares” de capital acumulado), ele conhece a (segundo o texto, porque o leitor não sente nada disso) Kate McCloud. É esse relacionamento e as conseqüências (ao que tudo indica, criminais) que deveria constituir o centro anedótico da narrativa de Jonesy, só que nunca saberemos, já que ele não existe, apenas a cena em que os dois se conhecem, e as inúmeras referências a ela. Portanto, falta a espinha dorsal do enredo de SÚPLICAS ATENDIDAS.
Em Nova York, Jonesy volta a trabalhar como michê para a cafetina Victoria Self. Um dos seus clientes, embora não nomeado, é visivelmente Tennessee Williams, descrito de uma forma aniquiladora. No último capítulo “sobrevivente”, Jonesy acompanha uma amiga da alta sociedade ao La Côte Basque, lugar chiquíssimo de Nova York, onde os clientes são passados em revista, com todos os seus podres. Mas para o brasileiro de classe média de 2009, todas as fofocas malévolas e podres e lados b que avultam no texto não causam nenhum terremoto, e boa parte do que se revela ali se mostra datado, letra morta, já que nenhuma personagem ganha relevo suficiente.
O que mais me surpreende em Capote é o seu moralismo. Eu já afirmei, no meu post em que destacava algumas efemérides literárias ligadas ao século XX, que a mãe dele, Nina (que abominava ter um filho gay e tinha vergonha explícita do seu afeminamento), fez um ótimo trabalho para incutir culpa e automortificação em Capote. Em SÚPLICAS ATENDIDAS, ele parece se comprazer em se mostrar (e mostrar os conhecidos, e principalmente os gays) em contornos sórdidos: todos chafurdam na lama, todos são explorados ou exploradores, e a lealdade é pra lá de duvidosa… Não há dúvida de que esse ingrediente maldoso e essa psique tortuosa fazem parte do chamado mundo gay, todos nós conhecemos esse aspecto. O que espanta é que parece ser a única coisa que emergiu das vivências de Capote, toda aquele outro lado tão lírico e tão peculiar, que faz a delicia do leitor das histórias curtas (e quem esquece Breakfast at Tiffany´s?) e de A harpa de ervas, só não desapareceu porque há lampejos, lampejos lindos, que atravessam o livro (e não se pode deixar de lado que há coisas engraçadas e bacanas no meio das maldades, dos retratos derrisórios, nas anedotas engafarradas por anos na adega Capote prontas a serem servidas). No fundo, o estilo do romance manqué de Capote me parece de um discípulo de Louis-Ferdinand Céline, aquele terrível autor francês, que nas suas obras-primas Viagem ao fim da noite, de 1932, e Morte a Crédito, de 1934, descrevem a existência como um fardo de sordidez e canalhice, num estilo vulcânico, aos borbotões: “contra a abominação de ser pobre, é preciso, vamos confessar, é um dever, experimentar tudo”, lemos em Viagem ao fim da noite, ou ainda: “nus. É assim que a gente deve se habituar a imaginar desde o primeiro contato os homens que vêm nos visitar; os compreendemos bem mais depressa depois disso, distinguimos de imediato em qualquer criatura sua realidade de gigantesco e ávido verme. É um bom truque de imaginação. Seu imundo prestígio se dissipa, se evapora. Nu em pêlo, só resta em resumo diante de nós um pobre saco vazio despretensioso e cheio de si que se esforça em tartamudear num gênero ou noutro” ou ainda: “Indiscutivelmente haveria que fechar o mundo por duas ou três gerações pelo menos se não existissem mais mentiras para contar. Não teríamos mais nada a nos dizer, ou quase”. Na literatura norte-americana, houve um discípulo de Céline, Norman Mailer. E o que sentia, lendo SÚPLICAS ATENDIDAS,é quse uma paródia do estilo de Mailer, ou então um Mailer que escrevesse parodiando o universo e o imaginário de Capote. O resultado saiu muito estranho.
Não obstante, nenhum característica do livró é mais discutível ou mal solucionada do que seu próprio narrador-protagonista. Capote fez dele ao mesmo tempo um alter ego e um catalisador de experiências, por meio da michetagem, que é mais ou menos correspondente ao pícaro (sem trocadilhos) dos romances do tipo, que atravessam vários escalões da sociedade em suas aventuras. Mas, por alguma estranha razão, o autor (Capote) se esquece do physique de role básico do seu herói, que é essencialmente gay, e faz surgir diante de nós um hetero, apaixonado por Kate McCloud, um michê garanhão ativo, o que não convence ninguém, e falseia completamente os rumos da narrativa . Que Jonesy seja fascinado pelo mundo das mulheres (e que não o é?), tudo bem, mas que ele nos venha com ereções, tesões incontroláveis, disposições de cavaleiro andante,etc, nos faz rir e debochar.