MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

12/06/2014

LEITURAS EM ESPELHO: “Romeu e Julieta na aldeia” (Gottfried Keller) e “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” (Nikolai Leskov)

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(uma versão do texto abaixo foi publicada no “Letras in.verso e re.verso”, em 11 de junho de 2014.

VER:  http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/06/entre-shakespeare-e-pagina-policial.html)

A editora 34 tem apresentado um catálogo notável de traduções de clássicos, incluindo nomes escassamente conhecidos pelos brasileiros, caso de Gottfried Keller (1819-1890) e Nikolai Leskov (1831-1895). No entanto, quando se estuda a história do “romance de formação”, o suíço invariavelmente é citado como aquele que escreveu a mais importante obra nessa vertente tão fundamental do gênero: O verde Heinrich (“verde” no sentido de imaturo, isto é, em formação); por seu lado, o responsável por uma maior divulgação, no Ocidente, do russo foi Walter Benjamin, por meio do seu citadíssimo O narrador, em que ele o toma como paradigma da atividade (para ele, em extinção[1]) que dá título ao ensaio:

“Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.

    Cada manhã recebemos notícias do mundo todo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral… O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.”

Keller e Leskov têm algo em comum (além da publicação pela 34): ambos “aclimataram” tragédias shakespearianas (ou melhor dizendo, personagens e situações que se tornaram definitivos nas tragédias do bardo inglês) para a realidade cotidiana de seus países. Se Shakespeare inventou o humano, como quer Harold Bloom, vejamos o que faz a sua invenção solta pelo vasto mundo no século em que Balzac reinventou-o, ou pelo menos fez diminuir em muito seus horizontes, colocando a comédia do humano nos trilhos do capitalismo burguês (de onde até agora ele não conseguiu descarrilhar).

Romeu e Julieta na AldeiaGRD_22_lady macbeth

I

Publicada em 1856, com outras quatro (compondo o primeiro volume do ciclo A gente de Seldvila), a novela Romeu e Julieta na aldeia sustenta com vigor o peso da comparação com aquela que é a mais popular tragédia (mais até do que Hamlet, creio eu) de Shakespeare. Além do título, no primeiro parágrafo o narrador traz à baila a intertextualidade de forma explícita: “Narrar esta história seria uma imitação ociosa se ela não se baseasse num acontecimento verídico, demonstrando quão profundamente se enraíza na vida humana cada uma daquelas fábulas sobre as quais as grandes obras do passado estão construídas. O número de tais fábulas é limitado, mas elas sempre afloram em nova roupagem e, então, obrigam a mão a fixá-las”.[2]

O “gancho” sai, por conseguinte, tanto do “teatro” (na sua acepção mais nobre) — aliás, de uma espécie de mundo platônico-arquetípico das fábulas —quanto das corriqueiras páginas policiais (o mundo da informação): o suicídio de um jovem casal, cujo romance era contrariado pela inimizade entre suas famílias. E Keller dá efetivamente uma coloração à Balzac para a situação, desvelando certas leis sociais e psicológicas de seu país, através da criação da fictícia região de Seldvila. Fará bem àqueles que afirmam que nossa época é pior do que as anteriores, e que a criminalidade, a violência e o esgarçamento dos valores morais e familiares imperam de maneira nunca vista, ler a história de Sali e Vrenchen, para aclarar (e ter menos falseada) sua noção do passado.

O narrador já nos adverte quanto aos falsos bucolismos, ao começar o relato com um aparente quadro idílico, de trabalho sadio, de relações humanas cordiais e civilizadas, em meio a uma paisagem rural inspiradora: temos dois proprietários de terras, Manz (pai de Sali) e Marti (pai de Vrenchen) arando seus terrenos (há outro de permeio, em estado de abandono, por falta de herdeiros oficiais), fazendo uma pausa para usufruir do lanche trazido pelos filhos, ainda pequenos (estes, por sua vez, gostam de se embrenhar pelo terreno sem dono e ali brincar).

Num leilão pelo arremate daquele lote toda essa harmonia azeda: começa uma disputa infindável (com litígios mil que arruinarão a ambos) entre Manz e Marti, de tal forma que, quando os dois se encontram, chegam às vias de fato. Vem à tona o pior não só deles, como também da comunidade à volta (que acompanha com interesse de ave de rapina o saldo da quizila). Anos mais tarde, à família de Manz restará (após a perda de suas terras) a administração de uma taberna sórdida de Seldvila (que significa “vila dos bem-aventurados”!); e ao viúvo Marti sobrará uma parcela ínfima e descurada da sua propriedade (um incidente violento o levará à demência e à internação numa instituição para alienados, deixando a filha à própria sorte). Separados por alguns anos (já que um dos lados adversários fora viver no espaço urbano), quando Sali e Vrenchen se reencontram, percebem a paixão mútua. Uma relação sem futuro.

E se, na primeira parte, Keller mostrava a rigorosa engrenagem da ganância, do rancor e da depauperação, na segunda ele apresentará um dos retratos mais marcantes da mentalidade jovem (mesmo que atada a um destino fatalístico) já levados a cabo na ficção. A caracterização dos detalhes da intimidade entre os dois é maravilhosa. Tem o seu quê de irresponsabilidade, de imprevidência; o seu quê de romantismo invencível;[3] e também o seu quê de conformismo revoltante: o Romeu e a Julieta dos cantões suíços preferem a morte (após o idílio durante uma quermesse) do que se libertar dos laços que os prendem à sua comunidade, por medo de se tornarem “apátridas” ou “andarilhos” (o pior dos destinos, dentro da lógica daquele meio), pois é preciso ter uma “certidão de cidadania”, sem a qual não podem deitar raízes em nenhuma localidade.

Foi assim que a boa gente de Seldvila (incluindo Manz e Marti, em causa própria) manteve afastado e espoliou aquele cuja alcunha é “violinista escuro” (de provável etnia cigana), legítimo herdeiro (todos sabem) do pedacinho-de-chão-causa-da-discórdia entre as famílias, nunca fornecendo a ele esse documento que lhe permitiria reivindicar seus direitos.

É por isso que, apesar de Romeu e Julieta na aldeia nos fazer penetrar, de um modo lindo e comovente, no cerne e na plenitude da juventude do casal condenado, tragédia mesmo é a dos apátridas (como o violinista escuro), a manutenção tácita da exclusão, através de táticas burocráticas e mesquinhas. O desperdício das vidas de Sali e Vrenchen, afora a loucura dos pais, é a falta de coragem de romperem com tal estrutura, tornando-se párias conscientes: descendem na escala social, mas são sempre “da aldeia”, aceitando os valores da tribo.

A tradução de Marcus Vinicius Mazzari é exemplar, porém ele incorreu em grave erro ao inserir determinadas notas de rodapé onde “esclarece”, invasiva e inapropriadamente, elementos simbólicos e significados da história. Veja-se, por exemplo, a nota 6, na pág. 17, na qual acompanhamos brincadeiras e rituais infantis de Sali e Vrenchen: “A narração dessas brincadeiras infantis no campo central compreende detalhes (como o motivo da papoula vermelha sobre a cabeça da boneca) que apontam simbolicamente para desdobramentos posteriores da história”!!!???

Teria sido melhor deixar o leitor acompanhá-la com mais liberdade, sem a camisa-de-força acadêmica[4]. O que ele informa caberia melhor no seu (este sim, indispensável) posfácio. Nele encontramos a bela justificativa de Keller para seu projeto, reivindicando seu direito (e o de todo criador) “de em qualquer época, mesmo na era do fraque e das estradas de ferro, estabelecer um elo direto com o elemento da parábola, da fábula—um direito que, no meu modo de ver, não devemos permitir que nos seja subtraído por nenhuma transformação cultural”.

(uma versão da seção acima—dedicada ao texto de G. Keller—foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de junho de 2014)

 

romeu e julieta

II

Em 1865, quem se valeu desse direito, estabelecendo seu elo direto com o elemento da parábola e da fábula na era do fraque e das estradas de ferro (que não eram novidade mesmo num império marcado pelo atraso com relação às demais potências da época) foi o ainda jovem Leskov (ainda assinando com pseudônimos seus trabalhos literários) com Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk.

Também é visível a vinculação ao noticiário policial (e os detalhes violentos e sórdidos nada ficam a dever aos veiculados nos programas televisivos contemporâneos muito assistidos como “Cidade Alerta” ou “Brasil Urgente”— tidos, inclusive, como fortes formadores de opinião).  Igualmente no primeiro parágrafo o narrador explicita sua “aclimatação” (o detalhe curioso é que como que a divide com outros — pertencentes a uma casta mais letrada, bem entendido, para ter a referência no seu horizonte cultural): “De quando em quando aparecem em nossas paragens uns tipos que nos fazem sentir um tremor na alma sempre que nos lembramos deles, por mais que o tempo tenha passado desde o nosso último encontro. E um desses tipos é Catierina Lvovna Izmáiolova, mulher de um comerciante, outrora protagonista de um terrível drama, após o qual nossa nobreza, usando uma expressão bem apropriada, passou a chamá-la Lady Macbeth do distrito de Mtzensk”[5].

Catierina é uma personagem flaubertiana (explico-me adiante) que chega a extremos de tragédia, e malgrado a sonora e expressiva alcunha, inclusive por parte da parcela mais letrada da população do distrito, a analogia com Lady Macbeth não é estritamente exata: como todos sabem, a personagem da peça instiga, espicaça o marido a fim de que ele cometa os crimes necessários para chegar ao poder.Veja-se um exemplo, a seguinte fala da personagem de Shakespeare num colóquio exasperado entre o casal Macbeth:

LADY MACBETH: (…) Desde já me ponho

                                 A duvidar de teu amor. Tens medo

                                  De ser na ação e no valor o mesmo

                                  Que és no desejo? Queres ter aquilo

                                  Que estimas como o ornato da existência,

                                   E te mostras em tua mesma estima

                                   Um covarde, dizendo “Não me atrevo”

                                   Depois de “Quero”, como o pobre gato

                                   Do provérbio, que quer comer o peixe

                                   Mas sem sujar as patas?[6]

Moça pobre, de temperamento impetuoso, Catierina Lvovna conformou-se em casar com um comerciante bem mais velho (não havia outra possibilidade para o seu futuro), e vive por cinco anos na grande propriedade do sogro um cotidiano de isolamento e tédio (tal como Emma Bovary—e aqui Benjamin pode ser novamente evocado, padroeiro que é de todos os comentadores leskovianos: “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”), até que numa ausência prolongada do marido, ela se envolve com um dos empregados, o mulherengo sedutor Serguiêi, e o torna seu amante.

A paixão por Serguiêi desperta Catierina em todos os sentidos: “… deu plena expansão a seu gênio. Agora se mostrava uma mulher de pulso… enchia-se de altivez, determinando tudo pela casa afora, e sem deixar Serguiêi arredar pé de perto de si”. Para isso, ela tem de primeiramente liquidar o sogro, e o faz, envenenando-o. Mais tarde, eliminará o marido (uma cena impressionante e brutal), que volta de inopino.

Em tudo e por tudo, parece ser ela a ditar as regras, a derrubar os limites, como fosse uma ancestral da femme fatale do cinema noir. Não é bem assim: do mesmo modo como se larga à modorra do clima e à languidez[7], ao bochorno do seu idílio adúltero, ela deixa que o aparentemente bonachão (embora cúmplice dos seus crimes) Serguiêi a induza, é um processo totalmente inverso ao que observamos no casal Macbeth e muito mais afim aos processos psicológicos observáveis em Madame Bovary, em que a fantasia pessoal tem sua parte nas transgressões de Emma, mas pesa muito mais o cálculo dos seus amantes e “cúmplices”, que se valem dessa mesma fantasia para manipulá-la e usufruir do que tem a oferecer.

Serguiêi é que se revela o calculista-mor do enredo (sua amante sendo movida pela passionalidade). Isso fica claro quando, após o assassinato do marido (e o sumiço de seu corpo), aparece outro postulante à herança: “Boris Timofiêitch negociava com um dinheiro que não era todo seu… ele tinha em circulação mais dinheiro do seu sobrinho Fiódor Zakhárov Liámim, menor de idade, do que propriamente seu”.O menino vem visitar a “tia” e lemos o seguinte diálogo entre os amantes:

“__ Agora, Catierina Ilvovna, todo o nosso negócio vai virar pó.

__ Por que virar pó?

__ Porque agora tudo isso vai ser dividido. O que é vamos administrar, um negócio vazio?

__ Ora essa, Seriója, será que estás achando pouco?

__ Mas o problema não é comigo; eu só duvido que agora a gente vá ter aquela felicidade.

__ Como assim? Por que nós não vamos ter aquela felicidade, Seriója?

__ Porque, pelo amor que tenho pela senhora, Catierina Ilvovna, eu desejaria vê-la uma verdadeira dama e não vivendo do jeito que a senhora tem vivido até agora. Ao contrário, com a diminuição do capital nós ainda vamos acabar vivendo pior do que antes.

__ E por que eu iria precisar disso, Seriójotchka?

__ É verdade, Catierina Ilvovna, pode ser que a senhora não tenha nenhum interesse nisso, só que para mim, que a estimo — e mais uma vez contrariando o olhar das pessoas, que são infames e invejosas — isso será terrivelmente doloroso. A senhora faça como achar conveniente, é claro, mas eu tenho pra mim que essas circunstâncias nunca vão me fazer feliz.”

Por tais vias insidiosas, ele a instiga, espicaça a eliminar o pequeno Fiódor (numa outra cena extraordinária). Vai ser a desgraça do casal criminoso. Serão pegos em flagrante, julgados e condenados à Sibéria, aos trabalhos forçados, o que levará Lady Macbeth do distrito de Mtzensk a outro patamar, narrativo e psicológico. Poucas páginas finais são tão intensas e cruéis (e tão econômicas em seus efeitos): inverte-se a dinâmica do casal (ou melhor, ela se explicita tal como é, de fato) e vemos toda a impetuosidade e bovarismo de Catierina Lvovna (o Ilvovna que lhe dirige Serguiêi é marca do inculto, como nos esclarece o tradutor) degradar-se (em paralelo à sua degradação social) numa sofrida paixão de sujeição e humilhação. Haverá ainda um último ato em que ela reencontrará o seu “gênio” (lembram?, aquele que despertara graças à ligação com o empregado e a decisão de eliminar o sogro) e tomará mais uma atitude extrema e irresignada: um lado Medeia bem mais forte do que o lado Lady Macbeth inscrito nesse temperamento. Uma Medeia que teve de se confinar a um meio flaubertiano, onde o corriqueiro é atroz.

Assim, a tragédia elizabetana, a vida em ramerrão (seja nos moldes balzaquianos ou nos moldes flaubertianos) e a dimensão em que suas monstruosidades podem ser filtradas — como “exemplo”— num mundo pós-Revolução Industrial (a página policial, que galvaniza as atenções da sociedade, e que capitaneia a deterioração da narrativa no mundo da informação triufante) se unem em dois textos perfeitos que têm de constar em qualquer lista sensata das maiores obras de ficção do século XIX.

 

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NOTAS

[1] “São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente… É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (utilizo a tradução de Sérgio Paulo Rouanet publicada pela Brasiliense, no volume 1 das Obras Escolhidas de Walter Benjamin, Magia e Técnica, Arte e Política, 1985).

É nesse texto que Benjamin faz o famoso uso dos arquétipos de narradores: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante;

[2] Todas as citações de Keller se referem à versão de MarcusVinicius Mazzari (ed. 34, 2013; edição que inclui as ilustrações feitas por Karl Walser, irmão do genial Robert Walser, autor de Jacob von Gunten; há também um pequeno texto deste último, antes do posfácio do tradutor) para Romeo und Julia auf dem Dorfe.

Não foi a primeira vez que o texto foi traduzido: ele pode ser encontrada também em Três Novelas Alemãs, em versão de Otto Schneider & Germano Thomsen (Ediouro, 1988; antes, pela Boa Leitura, 1964).

[3] Como exemplo, este trecho:

“Foram até a porta da cozinha, que fixara aberta e dava diretamente  para o quintal, e tiveram de rir quando se olharam no rosto. Pois a face direita de Vrenchen e a esquerda de Sali, que durante o sono estiveram encostadas uma na outra, exibiam agora, por causa da pressão, um vermelho carregado, enquanto a palidez das outras faces se acentuava ainda mais com a aragem fria da madrugada. Esfregaram carinhosamente o lado frio e pálido de seus rostos para dar-lhes também a coloração vermelha. O frescor da manhã, a paz calma e orvalhada que se estendia por toda a região, o recente alvorecer, tudo isso os deixava felizes e esquecidos de si mesmos, e sobretudo Vrenchen parecia dominada por um espírito ameno de despreocupação

__ Amanhã à noite, portanto, eu preciso sair desta casa—disse ela—e procurar um outro teto. Antes disso, porém, gostaria de me divertir bastante com você, uma única vez, apenas uma vez; gostaria de dançar com você em algum lugar, apaixonada e intensamente, pois a dança com que sonhei se apossou de todo o meu ser!

__ De todo modo quero ficar ao seu lado e ver onde você vai se abrigar—falou Sali—; e também adoraria dançar com você, menina adorável, mas onde?

__ Amanhã haverá quermesse em dois lugarejos não muito distantes daqui—replicou Vrenchen.—Nesses lugares as pessoas nos conhecem pouco e mal irão reparar em nós…”

[4] Também causa espécie ele não fazer referência em nenhum momento (nem sequer na bibliografia) à tradução anterior.

[5] Uso em todas as citações de Leskov a tradução de Paulo Bezerra, publicada pela 34 em 2009.

Um Lady Macbeth do Distrito de Mzensk, vertido por Ana Weinberg e Ary de Andrade, consta da coleção Antologia do Conto Russo, Vol. III, da Editora Lux Ltda,1961).

O título original é Ledi Makbet Mtzenskogo uezda.

[6] Utilizo a tradução de Manuel Bandeira para Macbeth, ATO I, cena VII (ed. José Olympio, Coleção Rubáiyát, 1961)

[7] Atmosfera fixada com grande eficácia por Leskov:

“O luar penetrava pelas folhas e flores da macieira, desfazendo-se em réstias minúsculas, claras e as mais caprichosas, pelo rosto e por toda a figura de Catierina Lvovna, deitada de costas; o silêncio imperava no ar; só uma brisinha leve e morna mexia um pouquinho as folhas sonolentas e espalhava o perfume delicado das relvas e árvores floridas. Respirava-se algo languescente, que dispunha para a indolência, a volúpia, os desejos obscuros”.

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04/12/2010

HAMLET GENÉRICO

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O tradutor Fernando Nuno e a editora Objetiva começaram, a partir da publicação de Hamlet, a Coleção Shakespeare, norteada por uma excelente idéia: verter integralmente os textos, entretanto adaptando-os ao formato da prosa. A narração substitui as deixas teatrais. As falas permanecem relativamente intactas.

É uma solução média bastante pertinente para atrair o leitor de hoje (principalmente o público jovem), sem que se recorra a condensações ou mutilações excessivas através de adaptações simplificadoras. No fundo, não é muito diferente de outra versão média, a tradução de Millôr Fernandes editada pela L&PM (que também tem outras versões muito ágeis e qualificadas de peças shakesperianas na sua coleção pocket).

E também média, no bom sentido, é a versão em prosa de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros & Oscar Mendes, publicada pela Nova Aguilar—possivelmente ainda o melhor meio de entrar em contato com Shakespeare em língua portuguesa—que, como as outras, é uma boa preparação para enfrentar traduções mais eruditas e complexas, como a de Péricles Eugênio da Silva Ramos, um tour-de-force do tradutor e também para o leitor.

Aqui nem vou falar da peça (todo mundo sabe que o espectro do pai de Hamlet conta a ele que fora assassinado pelo irmão, agora rei da Dinamarca, e a vingança que ele deve efetivar é procrastinada até o último ato, no qual morrem todos os personagens principais), embora—como tantos outros—eu tenha dedicado boas horas da minha vida a pensar sobre ela (todo mundo sabe também que é um dos quatro ou cinco textos fundamentais da história do Ocidente).

Recentemente foi lançado no Brasil o importante livro de L. S. Vygotski, A tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, onde ele mostra como é infrutífera a tentativa de entender a peça a partir da falta de decisão de Hamlet. Ele é o homem que teve acesso à vida após a morte (no contato com o espectro); a partir daí torna-se uma figura no limiar, na passagem entre os dois mundos, nunca mais estará inteiramente “cá”, já está com um pé no lado de “lá”. A peça, com sua filosofia à Montaigne, é uma aula de preparação para a morte (já se disse dela que é `o Eclesiastes em ação”).

“The readiness is all”, diz o príncipe a Horácio no último ato, logo antes do clímax, quando deve duelar com Laertes (cuja tragédia espelha a sua).

Causa espanto que Fernando Nuno (que é apresentado como um apaixonado por Shakespeare) tenha vertido de forma tão chocha a fala “Desafiamos os presságios. Se vai ser agora, também pode ser em outra hora, e se não for para acontecer, também não vai ser agora, também pode acontecer mesmo assim. E se é para deixar de lado alguma coisa, qual é a hora certa para deixá-la de lado? O mais importante de tudo é estar sempre prevenido”.

Compare-se com a versão (muito mais bela) de Péricles Eugênio da Silva Ramos: “…desdenhemos o augúrio. Há uma iniludível providência na queda de um pardal. Se for este o momento, não está para vir; se não está para vir, é este o momento; se não é este o momento, há de vir todavia—estar pronto é tudo. Já que ninguém sabe, por coisa alguma do mundo, qual o momento exato de morrer, por que nos preocuparmos?”.

Para o leitor que aprecia justamente a linguagem é o mesmo choque experimentado com o que aconteceu ao já referido Eclesiastes na “nova versão internacional”. Na Bíblia de Jerusalém, lemos: “Vaidade das vaidades—diz Coélet—vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?” É lindo, é a suprema beleza da linguagem.

Na “nova versão internacional”, lemos: “Que grande inutilidade, diz o mestre, que grande inutilidade. Nada faz sentido! O que o homem ganha com todo o seu trabalho em que tanto se esforça debaixo do sol?” É preciso dizer alguma coisa? Mesmo louvando a iniciativa de um novo Hamlet, é preciso dizer que muita coisa se perdeu na canhestrice. Por exemplo, é possível uma frase como “A little more than kin, and less than kind” (pouco mais que um parente, menos que um filho) virar “filho desse aí é que eu não sou mesmo”!!!!???? Ou ainda, onde está o soberbo e indispensável grito de Hamlet ao saber que o tio realmente assassinara o pai: “Ó minh´alma profética”?

E assim por diante. O Hamlet que inaugura a coleção Shakespeare não é suficiente,mas é um bom primeiro passo para quem não se contentar apena com ele. Mais que uma adaptação ou condensação, menos que um Hamlet genuíno.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de julho de 2003)

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hamlet

03/12/2010

A mulher negra, o homem dourado e o malabarista de palavras

 

Em Ulisses, de James Joyce, há uma longa, famosa e pândega discussão, capitaneada por um dos protagonistas, Stephen Dedalus, na qual se afirma que Shakespeare foi corneado pela mulher, Anne Hathaway, com seu irmão Richard, e que instilou essa situação em algumas de suas maiores peças (Hamlet & Otelo, particularmente).

Em 1964, no quadringentésimo aniversário do nascimento de Shakespeare, Anthony Burgess (1917-1993)um joyceano convicto—publicou NADA COMO O SOL (Nothing like the sun), notável romance em que expande a hipótese e que agora sai no Brasil, traduzido por Paulo Reis para a Ediouro, a qual tenta vendê-lo como uma espécie de Shakespeare apaixonado em livro. Ora, ora. O público que gosta de filmes do Oscar que nasceram com vocação para a Sessão da Tarde dificilmente apreciará o passional Shakespeare de Burgess, embora o criador de Hamlet apareça inteiro para o leitor, mesmo que no mundo da ficção. Por mais “inventado” que seja o Shakespeare de NADA COMO O SOL ele parece mais real do que aquele que surge das biografias e o romance do autor de Laranja mecânica é o único a transmitir uma ideia do que poderia ter sido sua mente.

Nós o conhecemos a partir da sua adolescência em Stratford. Sua ambição: restaurar a dignidade da família, tornar-se um cavalheiro, sair do meio estreito onde vive. Durante anos ele é tolhido por causa do desastrado casamento a que foi obrigado com uma mulher mais velha, Anne Hathaway. Até que recebe um vaticínio misterioso de uma velha local (“O dado está lançado: uma mulher negra ou um homem dourado”), partindo com uma trupe de atores.

Em Londres, com seus sonetos e poemas longos, torna-se o favorito do conde de Southampton, Henry Wriothesly, dez anos mais novo do que ele, e com uma beleza tão letal quanto a do Tadzio de Morte em Veneza.

É o homem dourado, o grande amor masculino de sua vida, até que resolva assumir a carreira teatral (embora compre sua quota num teatro com dinheiro de Henry). A mulher negra (também imortalizada nos sonetos) é Fatimah, uma muçulmana que começa a ser sustentada por ele até que Henry a roube, contaminando-a com a sífilis (doença que consumirá Will em suas últimas décadas, segundo o romance), enquanto conspira contra a rainha Elizabeth.

A mulher negra e o homem dourado, “o estranho é que eles podem alimentar melhor ambas as minhas fomes, ao mostrar tais fomes tão claramente separadas e diferentes. Pois alma e corpo nunca podem ser alimentados juntos, por mais que falemos da unidade do amor. Pois o amor é uma só palavra, mas é muitas coisas… Com ela encontro o paraíso do animal que é o inferno do anjo; com ele, já afastada a fome do corpo, existe o mais desejável dos tipos do amor, ao qual Platão cantava hinos. E então meu demônio interior diz Ainda assim, tu admiras a beleza das formas dele, é um amor impuro. Sonho que estamos dançando gravemente uma pavana ou sarabanda, nós três, e nesses movimentos consigo reconciliar o animal e o anjo que há em mim. Gostaria de poder compartilhá-la com ele e compartilhá-lo, mas talvez somente um poeta possa pensar em termos tão altos, incompreensíveis tanto para a alma (que doa) quanto para o corpo (que toma)”.

Ao mesmo tempo, Shakespeare vai se transformando num burguês respeitável de Stratford, enviando dinheiro, comprando propriedades. Há a esperada cena do flagrante de adultério, entretanto, como se vê, NADA COMO O SOL vai muito além dela, ainda que sua repercussão na sensibilidade de Will (e até na sua relação com Henry) seja profunda. É uma visão vertical e alucinante da Inglaterra elizabetana e da mente do maior dos malabaristas da palavra, como ele muitas vezes se denomina. É plena de humor, de vitalidade, mesmo em seu crescente tom sombrio, e nada tem de um pueril romancezinho histórico. Poucos lançamentos deste ano serão tão interessantes.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de agosto de 2003)

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