Se um viajante numa noite de inverno, fora do povoado de Marbork, debruçando-se na borda da costa escarpada, sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa, numa rede de linhas que se entrelaçam (numa rede de linhas que se entrecruzam), no tapete de folhas iluminadas pela lua, ao redor de uma cova vazia, que história espera seu fim lá embaixo?
Essa é uma das questões que povoam o vertiginoso SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO (Se una notte d’inverno un viaggiatore , 1979), de Italo Calvino(1923-1985), um dos romances centrais do século XX. Ele já havia sido lançado no final de 1982 (e tive a sorte de “descobri-lo” logo a seguir) pela Nova Fronteira, numa inesquecível tradução de Margarida Salomão, e agora volta numa versão de Nilson Moulin pela Companhia das Letras.
Nessa verdadeira poética da leitura,o herói é o Leitor, que compra o livro chamado “Se um viajante numa noite de inverno”, num primeiro capítulo que por si só já vale o romance, e descobre, após algumas páginas, que, por um erro de encadernação, a leitura não pode ser continuada. Indo atrás de um exemplar sem defeito, acaba conhecendo uma Leitora, e ambos se envolvem num emaranhado de textos interrompidos cuja leitura é impossível prosseguir.
O que parecia, a princípio, um inocente erro editorial, toma as proporções de uma conspiração mundial orquestrada por um tradutor, Ermes Marana, líder de uma organização que cria textos apócrifos, a partir de línguas exóticas (cimério, címbrio), distantes (japonês), ou, num ato de ousadia extrema, bem próximas (é o caso de textos do escritor irlandês Silas Flannery).
Por que ele, ex-namorado de Ludmilla (a Leitora), perpetra tais atentados contra a Leitura?
“Ermes Marana —desde sempre, porque seu gosto e talento o impeliram a isso, mais ainda depois que sua relação com Ludmilla entrou em crise— sonhava com uma literatura composta exclusivamente de obras apócrifas, de falsas atribuições autorais, de imitações, contrafações e pastiches. Se essa idéia conseguisse impor-se, se uma incerteza sistemática quanto à identidade de quem escreve impedisse o Leitor de abandonar-se com confiança —confiança não tanto no que é contado, mas na voz misteriosa que conta —,talvez nada mudasse no exterior do edifício da literatura. Mas, por baixo, nos alicerces, lá onde se estabelece a relação entre o leitor e o texto, algo mudaria para sempre. Então Ermes Marana não mais haveria de sentir-se abandonado por Ludmilla quando ela estivesse absorta na leitura; entre o livro e ela sempre se insinuaria a sombra da mistificação, e ele, identificado com cada uma das mistificações, teria confirmada sua presença”.
É lógico que não se consegue abordar plenamente um empreendimento complexo e virtuosístico como SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO numa resenha. Pode-se arriscar afirmar, porém, que seu tema central é: qual o lugar da leitura no mundo? Sendo reduzido o espaço da liberdade na nossa organização social (quando não na própria organização existencial), como a aventura da leitura, essencialmente marcada pela liberdade, pode ter ainda algum sentido?
Mesmo quando uma história narra o destino limitado de seu personagem, ou uma trama que se apresenta como um jogo de cartas marcadas, ela abre para o leitor um labirinto, pois, como afirmou Paul Auster, num dos textos da Trilogia de Nova York, o que importa numa história é a sua relação com outras histórias. É o que realiza primorosamente o grande escritor italiano naquela que é talvez sua maior obra (afirmação temerária, se lembrarmos que ele é autor da genial trilogia Os nossos antepassados, composta por Visconde dividido ao meio, O Barão nas árvores e O cavaleiro inexistente; e autor também de Marcovaldo, As cidades invisíveis, O castelo dos destinos que se cruzam, Palomar…).
Só que Calvino nunca perde de vista a tensão entre liberdade e possibilidades infinitas, de um lado, e aprisionamento e circunstâncias irrevogáveis, de outro, tensão que alimenta até as histórias interrompidas que o Leitor e Ludmilla tentam prosseguir, como se pode verificar, por exemplo, nas reflexões do protagonista de “Olha para baixo, onde a sombra se adensa” (a quinta história), descontando-se o aspecto paródico de que o texto se reveste:
“A conclusão a que levam todas essas histórias é que a vida de cada pessoa é única, uniforme e compacta como um cobertor enfeltrado cujos fios não podem ser separados. E assim, se por acaso ocorre de deter-me num detalhe qualquer de um dia qualquer como a visita de um cingalês que pretendia vender-me uma ninhada de crocodilos recém-nascidos… posso ter a certeza de que nesse episódio insignificante está implícito tudo aquilo que vivi, todo o meu passado, os múltiplos passados que tentei inutilmente deixar para trás, todas as vidas que se consolidam numa só —a minha, que continua também neste lugar, o qual resolvi não mais deixar, esta casinha com quintal num subúrbio parisiense, onde instalei meu viveiro de peixes tropicais, um comércio tranqüilo, que obriga a uma vida estável como eu nunca tive, pois os peixes não podem ser negligenciados nem um dia sequer…”
Calma, leitor, tudo parece extremamente sério e inquietante (e é), entretanto SE UM VIAJANTE NUMA NOITE DE INVERNO é uma imensa brincadeira, uma brincadeira no sentido mais prazeroso da palavra, como só um autor com a luminosa inteligência de Calvino poderia proporcionar. Que outro autor poderia inventar, para interromper a leitura de um livro, um ataque de um grupo de jovens que acredita em OVNIS e que é levado a crer que naquele exemplar, justamente naquele, encontram-se indicações de extraterrestres para a Humanidade? Ou inventar uma cena em que um personagem vai procurar outro num cemitério e pergunta ao coveiro: “Procuro o senhor Kauderer”. E o coveiro responde: “O senhor Kauderer não está. Mas como o cemitério é a casa dos que não estão, pode entrar”,
resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de dezembro de 1999