(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de janeiro de 1998)
Seria difícil apontar o maior escritor dos EUA,por causa do número de grandes autores, contudo Saul Bellow apareceria como um dos mais fortes candidatos ao título.
A Rocco está lançando Trocando os pés pelas mãos e outras histórias (“Him with his foot in his mouth and other stories”), uma coletânea de cinco “novelas”—aquele velho termo infeliz, que só causa confusão, para designar um texto cuja extensão é maior do que a de um conto e menor do que a de um romance.
Trocando os pés pelas mãos é uma amostra (com altos e baixos) de temas recorrentes na obra de Bellow, como a incapacidade dos intelectuais de lidar com a vida, muitas vezes deixando-se arrastar para a abjeção, além do envolvimento com o submundo criminoso da sociedade (em duas histórias do livro são parentes que arrastam os narradores para esse submundo: o irmão na narrativa-título, e o primo na história intitulada justamente Primos). Outro tema importante, e incessantemente repetido pelo grande escritor judeu norte-americano, é a natureza ambígua da amizade e do afeto. Na coletânea, como em várias outras obras dele, os amigos se tornam acusadores, “testemunhas de caráter”, num sentido inquisitório e ressentido. O narrador de Trocando os pés pelas mãos põe-se a contar sua história por causa de uma carta venenosa de um velho amigo. E uma das histórias chama-se Zetland- Por uma testemunha de caráter.
Ainda temos o tema da civilização norte-americana, de seu desgaste, da sua abstração, apesar do materialismo triunfante, que faz dos protagonistas bellownianos inadaptados eternos, vistos sempre com desconfiança e desconforto, e condenados ao inferno da sua época e dos seus laços familiares (que ele sempre retrata com sarcasmo). Como diz o narrador de Primos, “posso dizer que estou preso num pequeno porto histórico, sem poder sair para o mar”.
Nenhum dos cinco textos do livro é perda de tempo, porém os melhores são, sem dúvida, o texto-título e Uma travessa de prata. Conseguem concentrar seus temas num curto espaço e são redondos, perfeitos. No primeiro, como já foi dito, uma carta de um velho amigo coloca em discussão o caráter do narrador (que está no Canadá, fugindo da Justiça estadunidense), a partir da discussão de um incidente, décadas antes, no qual ele teria sido grosseiro com uma bibliotecária; no segundo, o episódio do roubo de uma travessa de prata confronta pai e filho e, mais ainda, diferentes reações à cultura judaica e á cultura hegemônica protestante nos EUA.
Dois outros textos, Como foi o seu dia? & Primos alternam momentos fantásticos com momentos mortos. A impressão que se tem é que Bellow não conseguiu se decidir se iria amplificá-los num romance ou mantê-los nos limites da narrativa curta. Muita coisa transborda na história de Katrina, mulher suburbana e comum que arrisca a guarda dos filhos para se encontrar com seu amante, um intelectual extremamente prestigiado, com a proverbial sombra da morte pairando sobre ele (sem contar a não menos proverbial sombra do egocentrismo), e na história de Ijah Brodski, importunado com pedidos de ajuda de seus primos, um envolvido com a Máfia, e o outro, um pensador obscuro que acredita ter realizado uma revolução no pensamento humano.
São, para ser franco, os textos com os momentos mais envolventes e fortes do livro inteiro. Entretanto, o resultado final parece confuso, uma massa não totalmente trabalhada. E Zetland- Por uma testemunha de caráter parece um fragmento de um texto maior. O leitor fica frustrado ao ver que o texto se interrompe abruptamente.
Mesmo com esses percalços, prova de que Bellow não se sente inteiramente confortável em textos mais curtos, embora suas últimas obras (Um furto e A conexão Bellarosa, por exemplo) caminhem nesse sentido, sua prosa está muito acima do que se faz hoje em dia por aí. Agora esperemos que se publique no Brasil As aventuras de Augie March[1],seu livro mais prestigiado. Ou que se coloque em circulação novamente suas obras-primas Herzog, O planeta do Sr. Sammler & O legado de Humboldt (os quais eu li e reli apaixonadamente na primeira metade dos anos 1980), que estão há anos sumidos das livrarias.
[1] Nota de 2011: Isso só aconteceu em 2009, numa edição da Companhia das Letras que eu indiquei como o destaque entre as traduções daquele ano.