MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

22/02/2014

Apresentação de KIM, de Rudyard Kipling

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(o texto abaixo foi publicado como Apresentação à tradução de Maria Valéria Rezende, editora Autêntica, 2014)

Logo no início de Orlando (1928), famoso romance da escritora inglesa Virginia Woolf, o personagem principal—então um rapazinho do final do século XVI—se diverte chutando a cabeça de um “mouro”, morto em combate pelo pai (ou pelo avô, não se sabe bem), e encenando combates.

Com variações, essa poderia ser a caracterização da disposição da meninada em todas as épocas e lugares: o desejo de aventuras, de viver experiências vibrantes. Por outro lado, a formação de um ser humano no século XXI pressupõe que nele se desenvolva uma cultura de paz e tolerância, de respeito pelo Outro, pela diversidade cultural e religiosa.

Portanto, embora o desejo aventureiro de Orlando seja compreensível para qualquer um que foi garoto, é chocante para nós a sua expressão, através da exaltação da guerra e da visão de outras culturas como “inimigas”. No momento em que Virginia Woolf escrevia seu livro, os países da Europa, especialmente a Inglaterra (mais conhecida como Império Britânico) ainda colonizavam boa parte do globo terrestre, praticamente continentes inteiros, como a África e a Ásia.

Poucos anos depois da cena acima citada em Orlando,  isto é, em 1608,  ingleses aportaram na Índia com carta branca para explorar o comércio de especiarias. Pouco a pouco, o Império foi estendendo seu domínio territorial e militar até que, em 1858, após o esmagamento de  uma rebelião (chamada de Grande Motim pelos colonizadores) liderada por membros nativos do exército imperial,  a rainha Vitória tornou-se oficialmente a governante do território. A característica mais acentuada da presença britânica era o corpo de funcionários civis, quase todo composto por pessoas do país colonizador. Mesmo com a enorme população local e a existência de instituições milenares, a espinha dorsal da administração era toda anglo-saxônica.

Essa situação política perdurou até 1947, quando finalmente o país conquistou a Independência (é verdade que, depois da Primeira Guerra Mundial, o Império já estava bastante debilitado para manter suas colônias).

O escritor mais representativo dessa era de domínio da Índia pelos ingleses e, por extensão, de toda a ideologia que moveu a conquista do mundo pelos europeus é, sem dúvida nenhuma, Rudyard Kipling. E Kim —que você, leitor, está lendo na primorosa tradução de Maria Valéria Rezende— é, entre os seus livros, o que melhor expressa a situação curiosa desse gênio literário (imensamente popular enquanto viveu) que angariou, talvez injustamente, certa antipatia por sua condição de propagandista do imperialismo.

Kim é o órfão irlandês (ou seja, ele não é nem indiano nem inglês “legítimo”), o “amigo de todo mundo”, que vive ao deus-dará por Lahore, na província de Punjab (que hoje faz parte do Paquistão), até que se torna o chela (discípulo) de um lama, um sábio tibetano engajado numa busca mística (a amizade entre os dois é um aspecto muito bonito do romance); ao mesmo tempo, no mundo prático, torna-se um agente (aproveitando seu grande talento para o disfarce e facilidade em dominar vários dialetos) do coronel Creighton, o sagaz chefe do Serviço Secreto, que está tentando descobrir os detalhes de uma conspiração na qual  espiões russos estão envolvidos. Kim se entrega de corpo e alma ao que, ao longo da narrativa, é chamado de Grande Jogo.

kim- companhia ed nacional

Na verdade, Kim (publicado em 1901) é a realização artística da nostalgia de Kipling pela Índia (especialmente pelo Punjab), onde nasceu em 1865 e viveu uma infância tão feliz que a viagem para a Inglaterra, onde foi educado em internatos, como comum naquele período, causou-lhe um grande trauma, que está muito presente na sua obra. De volta ao Punjab, ali exerceu o jornalismo e começou a escrever contos e poemas, com enorme repercussão, até sair da colônia (em 1889) para nunca mais.  A evocação do país em que nascera foi o impulso principal para a criação das mais celebradas obras kiplinguianas (que lhe valeram o prêmio Nobel), e apesar de justificar o domínio imperial, não vemos nelas aquela visão hostil dos povos não-europeus nem o racismo, tão presentes na atitude “guerreira” e na mentalidade em formação do jovem Orlando; pelo contrário, sentimos que Kim está tão à vontade no mundo indiano, que os ingleses se surpreendem ao constatar que ele é um sahib.

Agora adulto, percebo facilmente todas essas questões complicadas e delicadas em Kim. Quando o li pela primeira vez, na versão clássica de Monteiro Lobato, aos 11 anos, o que me chamou a atenção e fez dele meu livro predileto (junto com As aventuras de Tom Sawyer) foi o lado da aventura, da disponibilidade tanto espacial quanto existencial de Kim: ele podia se mover livremente por todo o território indiano, disfarçar-se, viver ao ar livre, sem entraves, quase sem regras. Todo o resto (a dominação inglesa, a opressão do povo indiano, o lado angustiante da sua condição: ele não pertence a nenhum lugar ou povo, no final das contas) passou batido, como se diz.

As aventuras do pequeno espião (associadas às dos heróis do que chamávamos então de gibis, que então eu venerava) me marcaram tanto, ali nos já longínquos anos 1970, que tomei a seguinte decisão: iria combater o crime (assim mesmo, vagamente, sem a menor noção da realidade)! Alta noite, comecei a me esgueirar para fora de casa e sair numa ronda “heroica”. Curiosamente, essas andanças acabavam por me levar aos mesmos lugares frequentados durante o dia (ia para os lados da escola, por exemplo); e nunca encontrei—felizmente—o que combater (ah, aqueles tempos em que um pré-adolescente podia sair pelas ruas na madrugada sem qualquer perigo!).

Após algumas experiências desse tipo, minha carreira de aventureiro noturno chegou a um fim abrupto porque um vizinho me viu saindo (ou voltando, tanto faz) e informou meus pais. A minha saída do apuro foi… passar-me por sonâmbulo. A partir daí, a vigilância materna nunca mais me deu trégua. Para minha tristeza, acabei não participando de nenhum Grande Jogo, a não ser o amor pela literatura.

A moral dessa história, caro leitor, é que hoje em dia precisamos ficar atentos a todas as conquistas humanistas, as quais permitem que a educação seja inclusiva, ecumênica, antirracista ou etnocêntrica, e instauradora da noção de que não há povos ou culturas superiores ou inferiores; mas, ao mesmo tempo, nunca devemos deixar que se perca o crescimento da imaginação e da sensibilidade que o desejo pela aventura carrega consigo. Os Grandes Jogos mudam, mas os pequenos Kims, cada um na sua medida, sempre estarão aí para o que der e vier.

nota- Nas antigas Sessões da Tarde vi muitas vezes a adaptação cinematográfica do livro, de 1950, dirigida por Victor Saville e estrelada por Errol Flynn, com Dean Stockwell ainda guri, no papel-título.

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13/08/2011

O fardo do homem branco: “A Tumba dos Ancestrais”, de Rudyard Kipling

(o texto abaixo foi escrito em 2008, como parte do material de leitura para meus alunos do curso As margens derradeiras: textos do limite,  que abordava oito textos curtos e paradigmáticos do século XIX: O médico e o monstro, Bartleby, Memórias do Subsolo, A morte de Ivan Ilitch, O alienista, O mandarim, O coração das trevas & A volta do parafuso; em torno de cada um, analisei outros: William Wilson, O homem invisível, O duplo, O capote, A tumba dos ancestrais, O horla, O homem da areia, A vida privada, etc)

 

 

“Deus de nossos pais…

Morre o tumulto, morrem os clamores,

Partem os capitães, partem os reis,

Teu sacrifício antigo prevalece ainda,

Um humilde e contrito coração,

Senhor Deus dos Exércitos, sê conosco ainda,

Para que não esqueçamos, não esqueçamos! (…)

Em missões longínquas nossas armadas

Dissolvem-se. Morre o fogo em promontório ou duna.

Eis que toda a nossa pompa de outrora

Tem a mesma sorte de Tiro e Nínive!

Juiz das nações, poupa-nos ainda,

Para que não esqueçamos, não esqueçamos! (…)

Se ébrios de poderio, nós falamos

Com língua irresponsável sem temor de Ti,

Em jactâncias como fazem os gentios

Ou raças inferiores que não possuem a Lei,

Senhor Deus dos Exércitos, sê conosco ainda,

Para que não esqueçamos, não esqueçamos!

(Rudyard Kipling, Poema para o Jubileu da Rainha Vitória, 1897)

Como arauto do império., Rudyard Kipling sempre foi um tanto estigmatizado pela modernidade. O único que sempre lhe rendeu culto explícito, que eu me lembre, foi Borges, para quem o autor de Kim (uma das histórias que eu mais gostava quando era garoto) fazia parte do seu panteão pessoal.

Kipling nasceu no “império”, no sentido forte da palavra: em Bombaim, na Índia, em 30 de dezembro de 1865 (seu pai era professor na Escola de Belas-Artes locais, e, lógico, tanto ele quanto a esposa eram britânicos). Só aos cinco anos e meio é que ele vai para a Inglaterra onde fica até os dezessete, quando volta à Índia. Com vinte anos, foi aceito na Maçonaria e passou a viver da literatura e do jornalismo. No final do século, ele estava morando na Inglaterra novamente, e foi ali que escreveu o poema de que tirei alguns trechos acima, em homenagem ao jubileu da Rainha Vitória, e que o tornou uma espécie de poeta nacional, com suas referências aos “gentios e raças inferiores que não possuem a Lei”. (apesar de que, num cômputo geral, o clima do poema é mais melancólico do que triunfalista, pois parece indicar que o império também passará, como Tiro e Nínive, devido ao orgulho e jactância, mas seu apelo é puramente imperialista e mesmo militarista com o “Senhor Deus dos Exércitos” guiando a nação). Viajou muito ainda, ganhou o Nobel em 1907 (foi o primeiro britânico, exatamente 100 anos da autora mais contrária a tudo o que ele representou ganhar o prêmio: Doris Lessing); diga-se de passagem, foi o premiado mais jovem da história, pois chegava aos quarenta e dois naquele ano. Ele morreu poucos dias depois de fazer setenta, em 18 de janeiro de 1936.

Confesso que gosto de muitas histórias de Kipling, que atualmente podem ser encontradas em duas boas coletâneas: Histórias sobrenaturais (traduzidas por José J. Veiga e que saíram pela Bertrand), com 33 contos e novelas; O homem que queria ser rei e outros contos selecionados (traduzidos, se é que se pode usar esse termo, por Luciana Salgado e que saíram em edição bilíngüe pela Landmark), com 14.  Eu escolhi A tumba dos ancestrais,embora prefira outras (aqui, só recomendarei a leitura das obras-primas: O riquixá fantasma; O signo da besta; A legião perdida; O homem que queria ser rei; e a minha favorita, A estranha viagem de Morrowbie Jukes). Por que justamente esta? Por motivos cronológicos: ela foi publicada em 1897, ano do poema e bem próxima de dois textos-chaves da “era imperial”: , A volta do parafuso (1898) & O coração das trevas (1899). Kipling, portanto, tinha 32 anos.

É uma história repleta de traços antipáticos e repelentes (elogio à caça, a certeza da inferioridade dos indianos), contudo é muito bem narrada e nos permite conhecer o âmago do imperialismo sob o seu prisma autocongratulatório, pois tudo resvala para o burlesco, para o magnânimo e para o condescendente. De uma forma curiosa, também é o relato de um branco que se torna deus para os nativos.

O personagem principal pertence à família Chinn, de Devonshire, que sempre enviou alguém para a Índia desde pelo menos 1799: “em 1834, John Chinn, da mesma família (vamos chamá-lo de John Chinn, o Primeiro), surgiu como administrador equilibrado em tempo de crise em um lugar chamado Mondesur. Morreu jovem, todavia deixou marca no novo país e a Muito Nobre Junta de Diretores da Muito Nobre Companhia da Índia Oriental proclamou suas virtudes num documento oficial e assumiu as despesas da construção de sua tumba entre as montanhas Satpura. O herói da história é o neto também chamado John, que passa a infância na Índia, num raio de 250 km do túmulo do avô, mas é enviado à Inglaterra. Como todos os filhos mais velhos, ele ingressa no exército e volta ao país onde nascera num navio-transporte que, no canal da Mancha, cruza com o vapor que está trazendo seu pai, Lionel, reformado após 30 anos de serviço colonial. Portanto, ele é o “continuador do serviço da família no Oriente”: Sua missão era ficar no regimento do pai a vida inteira, apesar de ser essa uma unidade na qual a maioria da classe seria capaz de pagar alto para não servir. Pois a maior parte do regimento é de “irregulares” (uso a tradução de José J. Veiga), “gente trigueira, mais para pretos”, ou seja, de nativos, chamados de “Wuddars”, “gente de casta inferior que caça ratos para comer, na opinião gera, “que não ofendia os Wuddars”, pelo contrário. Nenhum outro regimento indiano tinha tão poucos oficiais ingleses: Os oficiais [nativos] falavam com os seus soldados em uma língua que menos de duzentos brancos em toda a Índia conheciam; e os seus recrutas eram Bhils, talvez a mais estranha das muitas raças estranhas da Índia, gente rude, furtiva, acanhada, muito supersticiosa. Os Bhils são mais nativos, porque mais arcaicos, do que as raças que os ingleses chamam de nativas. São os catrumanos (lembram-se de Grande Sertão: veredas ?) da Índia, por assim dizer. Séculos de opressão e massacre do Bhil típico um ladrão de gado cruel e meio enlouquecido. Quando os ingleses chegaram, os Bhils pareciam tão preparados para a civilização como os tigres de suas matas [como se vê, ele isenta os ingleses de qualquer responsabilidade, opressão e massacre são anteriores, e são eles que tornaram os Bhils despreparados para a civilização; a analogia com os tigres é muito importante no imaginário da narrativa, como veremos]. John Chinn, o Primeiro, avô do nosso John, entrou nas terras dos Bhils, viveu em companhia deles, aprendeu a sua língua e conquistou-lhes a confiança ao matar os veados que comiam as parcas plantações; alguns aprenderam a arar e semear, enquanto outros eram atraídos ao serviço da companhia para policiar seus semelhantes. Quando entenderam que entrar em forma não significava se preparar para ser fuzilado, aceitaram a vida de soldado como um esporte exigente, mas divertido, e se empenharam em manter com freio curto a sua parte selvagem. É difícil ler A tumba dos ancestrais com isenção.

Bem, “John Chinn, o Primeiro, fez-lhes promessas por escrito de que, se se mostrassem bons dentro de certo prazo, o governo esqueceria delitos passados, e como era conhecido como homem cumpridor da palavra, os Bhils se empenharam… Foi um trabalho lento, não notado, daqueles que são feitos diariamente em toda a Índia; e se a única recompensa de John Chinn foi, como eu disse, um túmulo pago pelo governo, aquele povo humilde das montanhas nunca o esqueceu. É preciso já deixar claro que há uma certa divisão entre a gente do Norte e do Sul na região,para explicar certas diferenças, uma vez que o túmulo fica no Sul, onde o povo é mais rústico e ainda muito agarrado às cordilheiras Satpura. São os Bhils do sul que cultivam uma lenda “segundo a qual um dia Jan Chinn, como o chamavam, ia voltar para o meio deles. Enquanto isso, continuavam desconfiando do branco e do seu estilo de vida. O menor pretexto os levava a uma explosão de pilhagens desenfreadas e de matanças ocasionais; mas se tratados adequadamente, choravam como crianças e prometiam não fazer mais aquilo”.

Quando o neto de “Jan Chinn” retorna e assume seu posto, ele é homenageado pelos Wuddars e todos ficam admirados da sua semelhança com o resto da família. E de resto, ele é o “esperado”. Um dos oficiais nativos, Bukta, revela que o carregou nos braços: “Sou seu criado, como fui de seu pai. Somos todos seus criados”. Aqui há uma situação interessante: Chinn é subalterno, mas tem uma ascendência e um poder sobre a tropa que ultrapassa o do major do seu regimento, pois este detém uma patente abstrata, enquanto Chinn é neto de um deus, de uma lenda: “O alojamento do major ficava em frente ao de Chinn… o major se sentou na cama e soltou um assobio. Porque ver o oficial comissionado nativo mais antigo, um Bhil puro-sangue, detentor de um posto entre o seu próprio povo, servindo de criado de um oficial subalterno, era demais para os seus nervos”.[1]

Esse mesmo major vai informar (desnecessariamente) para Chinn a existência do túmulo do seu ancestral “lá por Satpura”: “Chinn sabia de cor a crônica da família. Está toda num livro surrado que repousa na mesa de laca chinesa atrás do piano na casa de Devonshire; aos domingos, as crianças tinham licença de folheá-lo”. O major conta que circula a história de que o fantasma do avô, quando lhe dá na telha, sai do túmulo montado num tigre selado: “Não acho isso adequado ao fantasma de um ex-coletor, mas isso é o que afirmam os Bhils do Sul. Nem os nossos nativos, que podem ser considerados moderadamente sensatos, gostam de bater aquela região quando ouvem dizer que Jan Chinn anda por lá montado no seu tigre. Dizem que é um animal nublado, não listrado, mas manchado, como gato malhado, uma verdadeira fera, e sinal certo de guerra ou pestilência… ou sei lá o quê”.

Bukta se encarrega de propiciar uma experiência iniciatória para o jovem Chinn: matar seu primeiro tigre. Durante a caçada, como faz um calor escaldante, o rapaz se despe e entra na água e Bukta fica impressionado vendo duas marcas vermelhas nele: uma de nascença, no ombro, na forma de um crescente estilizado; a outra, a marca da vacina contra varíola.

Chinn mata seu tigre, num “bom tiro”, o pobre animal é esfolado e Bukta diz ao sahib: “Ah, se eles não esfolarem direito nós os esfolaremos. São minha gente. Na tropa sou um; aqui sou outro… Era verdade. Quanto Bukta tirava o uniforme e voltava à vestimenta do seu povo, deixava para trás sua civilização de regulamentos. Aquela noite, depois de rápida conversa, ele se entregou a uma orgia, e uma orgia Bhil não é assunto para escrita”. Quanto a Chinn, presentes e empréstimos, nem todos mencionáveis, eram despejados no colo dele, e uma música infernal rugia e troava em volta de fogueiras… As bebidas aborígines são muito fortes, e Chinn era forçado a prová-las a todo instante” até desmaiar e acordar já a meia marcha da aldeia. Bukta lhe diz: “Meu povo ficou muito contente de ver o Sahib”.

Com o passar do tempo, Chinn se torna para essa gente uma mescla de juiz e conselheiro. Bukta lhe explica que ele é a Lei: Dê-lhes ordens, Sahib: duas, três, quatro palavras que eles possam levar na cabeça. Isso basta… Então Chinn dava ordens, sem perceber que uma palavra dita apressadamente no regimento ficava sendo a lei inapelável e dura em aldeias além das serras enevoadas, ficava sendo nada menos do que a Lei de Jan Chinn que, assim diziam os murmúrios, tinha voltado para vigiar na pessoa do neto”.

E a coisa toda é resumida pelo seguinte trecho: Não podia haver a mais leve dúvida quanto a isso. Todos os Bhils sabiam que o Jan Chinn reencarnado distinguira a aldeia de Bukta com sua presença após matar o seu primeiro tigre, nesta vida; que comera e bebera com o povo, como era seu costume, e (Bukta devia ter posto muito narcótico na bebida) em cima de seus ombros todos tinham visto a mesma Nuvem Voadora irada que os deus lá do alto puseram no corpo de Jan Chinn, o Primeiro, quando ele chegara aos Bhils. Para o tolo mundo branco que não tem olhos ele era um franzino oficial jovem, mas o seu povo verdadeiro sabia que ele era Jan Chinn; e assim acreditando, se apressavam em divulgar Sua palavra, cuidando para não adulterá-la pelo caminho. Como o selvagem e a criança que se entrega a brinquedos solitários [infelizmente, Freud também fazia freqüente associação entre selvagens ou primitivos e crianças; para ele compartilhavam do mesmo status psíquico] têm horror de ser ridicularizados ou questionados, aquele pequeno povo guardou suas convicções para ele mesmo e o oficial superior do regimento jamais suspeitou que cada um dos seiscentos soldados de pés ligeiros e olhinhos de conta, em posição de sentido ao lado de seus fuzis, acreditava serena e inabalavelmente que o subalterno postado no flanco esquerdo da formação era um semideus duas vezes nascido, divindade tutelar da terra e do povo”. O único traço quase sobrenatural do jovem Chinn, e uma característica de família, é a saúde: ao contrário dos outros brancos, jamais adoece ou contrai febre, mesmo que durma ao relento. Como diziam, antes de nascer ele já tinha “sal na moleira”.

Mas no seu segundo ano de serviço, um boato atravessa a região e está relacionado a seu ancestral. “O que é que o velho anda aprontando agora?”, pergunta o já impaciente com todas essas histórias jovem oficial. Fica sabendo que o fantasma do avô montado no seu tigre “nublado” anda circulando pelos picos de Satpura, aterrorizando os montanheses, que fazem romaria, como fiéis, ao seu túmulo, para apaziguá-lo. O oficial superior alerta: “isso é sempre pretexto para tumultos, e os Bhils de Satpura são tão trogloditas como eram quando o seu avô os deixou. Isso tem conseqüências”. O oficial superior põe o dedo na ferida: não importa as condições materiais ou os costumes das populações. O que preocupa é o levante social, a desordem, a ameaça mesmo que insignificante ao império.

Chinn conversa com Bukta, tentando arrancar dele uma visão mais clara da situação em Satpura e este revela os receios apocalípticos do povo com relação à aparição: Sabemos que ele acordou, mas não sabemos o que ele quer. Ele está fazendo um sinal a todos os Bhils ou só para os de Satpura? Diga uma palavra, Sahib, que eu possa levar ao regimento e depois a nossas aldeias. Por que Jan Chinn voltou a montar o seu tigre? Quem errou? Qual foi o erro? Será prenúncio de peste? Nossas crianças vão morrer?” Chinn adota o expediente de se envolver na pele do tigre que matara para dar uma forte impressão oracular: O recado é só para os Bhils de Satpura, e não alcança os nossos; só os de Satpura que, como sabemos, são brutos e ignorantes… As noites naquelas bandas são quentes, é incômodo  ficar muito tempo no leito sem se virar, e Jan Chinn precisa ver como está seu povo. Então, levanta, assobia chamando seu Tigre Nublado e saiu um pouco para respirar ar fresco. Ele só quer é ver a lua novamente em sua terra. Mande dizer isso no Sul, e diga que é Minha Palavra”. Como se vê, ele se vale tranqüilamente do logro e da artimanha e realmente trata os nativos como crianças. O fardo do homem branco: babá de primitivos, nessa visão “civilizatória”, “de cima”.

Também é notável como a narrativa é toda externa, nunca temos uma mínima visão introspectiva do protagonista, um indício de algum impacto psicológico dessa deificação de sua família. Em nenhum instante, Kipling pensa em problematizar a situação que criou, a não ser em termos de fatos anedóticos e pitorescos, malgrado uma pitada de ironiazinha aqui ou ali. Chinn retoca sua fala oracular: “Se os Bhils de Satpura perguntarem o significado do sinal, diga que Jan Chinn veio ver se eles estão cumprindo a promessa de viver corretamente. Quem sabe andaram saqueando? Quem sabe estejam pensando em desobedecer às ordens do governo?Jan Chinn veio ver. Bukta pergunta se o espírito está zangado e a resposta é a seguinte: Ora, você já me viu zangado com meus Bhils?” Confesso que momentos como esse quase me fizeram largar a leitura da primeira vez, de tão irritado que fiquei.

Chega de Satpura a notícia de que um vacinador (nativo) enviado pelo governo causou revolta entre os montanheses. Chinn então se oferece “extra-oficialmente” para tirar uma “licença de caça”, na verdade pretexto para ir à região, que agrada a seu superior: Acho o plano muito bom. Você tem influência hereditária com os pequeninos [o termo se refere à estatura dos Bhils de Satpura, mas não deixa de nos trazer à mente a associação entre eles e criancinhas] e eles podem lhe dar ouvidos quando a visão dos nossos uniformes os deixar enlouquecidos. Você ainda não esteve naquela parte do mundo, esteve? Tenha cuidado para que não o mandem para a cripta da família em tão tenra idade. Acho que se conseguir ser fazer ouvido por eles, vai se sair muito bem”. Ou seja, é um texto em que as tensão coloniais se resolvem com bonomia, com medidas macunaímicas. Ainda assim não me desperta a menor simpatia, apesar de não poder deixar de admirar a originalidade e perícia da narração.

Chinn e Bukta viajam para a região. Mensageiros de Bukta avisam a população de que Jan Chinn virá explicar o horror (a vacinação) que os ameaça. Para Bukta, o presságio do Tigre Nublado estava totalmente esclarecido. Afinal, chegam à plataforma onde está a tumba do ancestral do sahib: “A Índia está toda cheia de túmulos esquecidos erigidos desde o início do século XVIII, túmulos de coronéis esquecidos, de unidades que não mais existem; funcionários da Companhia das Índias Orientais que saíram em expedições de caçadas e nunca voltaram, viajantes, agentes, escriturários, porta-estandartes da mesma companhia, às centenas, milhares e dezenas de milhares. Inglês esquece depressa, mas indiano tem memória duradoura, e quem faz o bem na vida é lembrado depois de morto. O túmulo quadrado de mármore maltratado pelo tempo que abriga Jan Chinn estava coberto de flores silvestres e nozes, embrulhos de cera e mel, garrafas de bebidas e charutos infames, chifres de búfalo e penachos de capim seco. Numa extremidade, uma tosca imagem de barro representando um homem branco de cartola à antiga montado num tigre malhado. Ou seja, o bom povo indiano pratica o bom e velho sincretismo que nós já conhecemos muito bem (enquanto esse aspecto sincrético e popular dá um ar vivo ao túmulo, os dizeres formais estão semi-apagados).

Chinn ordena a Bukta que diga aos camponeses que o esperem ali (nessa altura, eles estão com medo de ir ao túmulo a não ser em pleno sol, por causa do Tigre Nublado): “Sou senhor dos Bhils, diz. Mas já anoitece e o próprio Bukta se acovarda de voltar ao túmulo nessas horas perigosas, “apesar de ter carregado o sahib nos braços quando ele era criança”; aliás, ele tem uma frase maravilhosa, “Com a luz do sol acredito, mas ao luar tenho dúvida”. Dá quase para perdoar Kipling pelo seu racismo e prepotência eurocêntrica devido a pequenos momentos como esse. O povaréu local explica a ele que o vacinador chegou “em nome do governo”, com umas “faquinhas de fantasmas” querendo cortar os braços das pessoas. Amarraram-no, então, “mas não mataram”. Bukta pergunta se morreu alguém nessas escaramuças todas. “Ainda não.  Bukta afirma que Jan Chinn vai dar uma ordem “e vocês vão obedecer. O resto fica com o governo. Eu mesmo sei alguma coisa das faquinhas encantadas e dos arranhões. É um feitiço contra varíola. Mas como é que age eu não sei. E vocês também não precisam se preocupar com isso”.

Apesar de irritado com a não-aparição de Bukta, no dia seguinte Chinn não dá mostras disso. Ele exige que lhe tragam o vacinador e que o desamarrem “em sua presença”. Começa a perorar chamando os Bhils locais de “Bobos”: Vim a pé da minha casa (a assembléia estremeceu) para esclarecer um assunto que qualquer pessoa que não seja um Bhil de Satpura percebe de longe. Vocês sabem o que é varíola… É ordem do governo que quem for arranhado no braço com estas faquinhas que estou mostrando fica com o corpo fechado para a doença. Todos os sahibs têm o corpo fechado, e muitos indianos também. É uma mágica.Olhem a marca” e ele mostra a sua, embora só alguns espíritos corajosos se aproximem e se certifiquem, imaginando ainda outras marcas assustadoras escondidas sob a roupa: Jan Chinn teve a grandeza de não proclamar ali mesmo a sua divindade. Enfim, ele diz ao povo: Por isso, vim salvar vocês: primeiro da varíola; depois da grande bobagem de terem medo; depois, talvez, da corda e da prisão”. Por causa dessa peroração de Chinn, um membro mais idoso dos montanheses, admite que alguns roubaram cavalos e novilhos. Chinn promete resolver o assunto com um kwol (documento de proteção): Mas primeiro vamos pôr a marca do governo naqueles que não foram visitados pela varíola [e aqui a associação não é mais com a infância e sim com o gado mesmo, explicitamente].

E assim se procede à vacinação do povo, temperada com as exortações de Chinn. Depois ele se declara não mais “junta médica” e sim “tribunal” e faz o inquérito dos roubos confessados: “Dez líderes foram mandados à planície com um bonito documento escrito em folha de caderno… Esse documento ia trazer-lhes alguma calamidade, explicou, mas era melhor do que prisão”. Os saqueadores arrependidos descem a montanha e antes de procuraram o agente policial, Mr. Dundas Fawnee, procuram o pároco, que inicia as sanções, após ler o documento de Chinn. Ele chama policiais que tomam deles os cavalos e novilhos e depois espanca com um rebenque três deles: Foi horrível, mas Jan Chinn previra isso. Submeteram-se, mas não abriram mão do kwol, que os livrava da prisão”. Após o castigo ministrado pela justiça “de cima”, eles afinal encontram Fawnee, a justiça aqui  de baixo”, que espanca a todos: “É certo que a proteção de Jan Chinn garantiu nossa liberdade, disse o mais idoso do bando, mas é como se tivesse muitas surras num pedaço de papel. Vamos nos livrar disso [e esse é outro trecho humorístico que alivia um pouco o lado desagradável do texto]. Um deles subiu numa árvore e enfiou o papel numa forquilha a dez metros de altura, onde não poderia causar nenhum mal… doloridos, mas felizes, os dez homens voltaram a Jan Chinn no dia seguinte”. Eles contam os fatos, dizem que ganharam de agente policial, após as surras, uma garrafa de uísque e uma caixa de charutos, e que o kwol ficou numa árvore, “porque toda vez que o mostrávamos a um sahib éramos surrados”.

Chinn determina que eles serão seus batedores numa caçada, para alimentar o povo, que ele vigia para que não se coce e nem se assuste com a inchação dos braços, após a vacinação. Murmura-se que “era correto e bom ser arranhado com faquinhas mágicas, que Jan Chinn era mesmo a reencarnação de um deus que dava comida e bebida de graça, e que entre todas as nações a dos Bhils de Satpura era a preferida dele, contanto que evitassem se coçar. Desde então o bondoso semideus era associado por eles a grandes comilanças e à vacina e às lancetas de um governo paternalista”.[2]

O povo pede como último favor que ele lhes permita ver sua montaria, o Tigre Nublado. Chinn então sai à procura de rastros e encontra perto do túmulo do avô uma caverna onde se esconde realmente um tigre. Perturbado em seu repouso, o animal, “como uma serpente saciada”, se arrasta para a entrada da caverna, bocejando e piscando por causa do sol que faz faiscar o capacete branco de Chinn: O sol iluminava o seu flanco direito. Nunca tinha visto um tigre com tais malhas.” Muita gente está à volta, expectante, para ver o que Chinn fará com seu “cavalo”. Ele dispara entre os olhos do tigre, que foge, mas não tem a menor chance de sobreviver com o balaço direto que levou: a trilha vermelha levava em linha reto ao túmulo do avô e lá, entre cacos de garrafas e pedaços da imagem de barro, a vida a deixou com um esperneio e um ronco”. Chinn, orgulhoso de si mesmo, usa uma fita métrica para medir o tigre (3,63m) e ordena o esfolamento imediato. Todos comentam que o Tigre Nublado morreu mesmo: “todo aquele lado do morro ficou coalhado de homenzinhos que gritavam, cantavam e pulavam”.

A pele e o vacinador resgatado são os seus troféus da aventura, na volta para casa, acompanhado por um “exército” que desaparece subitamente: ele percebeu que estava se aproximando da civilização, isto é, do seu regimento. Seu relatório, em poucas palavras: “Vacinei todos, e gostaram”.  Seu superior é que tem dificuldades: Agora me diga: como é que eu vou pôr isso tudo no meu relatório”. No final, a versão oficial da resistência à vacina omite qualquer menção ao tenente John Chinn “e muito menos sobre a sua divindade. Mas Bukta sabia, o regimento sabia, e cada Bhil de Satpura sabia. Bukta só tem uma preocupação: que Chinn se case logo e tenha um filho, para o qual transferir seus poderes, para a sucessão não se interromper e os Bhil, ficando entregues “à sua imaginação, “novos distúrbios” poderão eclodir em Satpura [ou seja, a família Chinn e sua pretensa divindade, é a instância doravante reguladora da ordem social da região].

Como se vê, o relato postula a necessidade da continuidade e da permanência do domínio inglês (benéfico) na Índia, é o melhor para esse povo cujos selvagens devem ser tratados como crianças. Nem se permite uma fresta nele que permita ao leitor vislumbrar uma civilização milenar e complexa, com uma religião riquíssima de símbolos ou uma estratificação social ainda mais excludente que a da própria Grã-Bretanha. Não, a Índia que vemos aí está quase perto dos primórdios da humanidade. Decerto haverá traços bem fiéis à realidade (a uma realidade determinada), mas foram selecionados e montados com um olhar parcial e tendencioso.


[1] Mais adiante, lemos: “não escapou a ninguém que da primeira vez que o novo oficial ergueu a voz para dar uma ordem a tropa inteira tremeu. Bukta  desenvolve uma “teoria estranha”, aceita como artigo de fé entre os nativos, “e cada gesto do jovem Chinn era um confirmação. A “teoria estranha” é a homologia divina entre avô e neto.

[2] Há um momento curiosamente irreverente. O povo está meio farto de Jan Chinn: É difícil para crianças e selvagens manter reverência o tempo todo a ídolos por eles inventados, e eles já tinham farreado demais com Jan Chinn. Ele então anuncia:  “Amanhã volto para minha casa, o que deixa o povão entristecido.

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