MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

25/05/2015

O ruim do mundo e o melhor da ficção: os 50 anos de “A coleira do cão” nos 90 anos de Rubem Fonseca

1999-005850-_19751016download (1)

«João continuou: Já viu coisa igual? Não acha que ele pode ser o campeão?. Eu disse: Talvez, ele tem quase tudo, só falta um pouco de força e de massa. O crioulo, que estava ouvindo, perguntou: Massa? Eu disse: Aumentar um pouco o braço, a perna, o ombro, o peito, o resto está — ia dizer ótimo mas disse: bom. O crioulo: E força? Eu: Força é força, um negócio que tem dentro da gente. Ele: Como é que você sabe que eu não tenho? »

(trecho de A força humana)

[uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de maio de 2015]

1

Dois dos nossos escritores mais cultuados, ambos mestres na arte do conto, comemoram 90 anos em 2015: Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, este último agora em maio—e um de seus títulos fundamentais, A Coleira do Cão (1965), tornando-se cinquentenário, ganhou nova edição pela Nova Fronteira[1].

Nele estão reunidos oito contos que ajudam a compreender por que Fonseca influenciou de forma decisiva, para o bem e para o mal, a ficção nas últimas décadas, sendo imitado à exaustão, inclusive nos seus maneirismos (a pseudo-erudição que infesta seus romances, muito ruins, na minha opinião) e na sua inclinação ao gênero policial. Eles valem tanto como registro histórico de um momento em que a balança da realidade nacional pendeu definitivamente para o urbano na imaginação literária («Ah, estava explicado, pensei, o Rio estava ficando diferente»), quanto como demonstrações cabais do que não mudou e resiste até hoje de forma lamentável: o classismo, o machismo, o racismo, a exploração, a corrupção, a desmoralização da sociedade civil[2]—espantoso é que, passado o regime militar, tudo isso persista—, mesmo que o “vocabulário” seja vigiado pelo “politicamente correto” (não é mais tão  “natural” e  “inofensivo” usar o termo “crioulo”, como fazem os personagens do livro). Até a atualíssima questão da diversidade sexual aparece, embora no texto mais frágil do conjunto, A opção.

a-coleira-do-co-rubem-fonseca-14319-MLB77440122_464-O (1)a-coleira-do-co-rubem-fonseca-14721-MLB3381619318_112012-OA-Coleira-do-Cão-Rubem-Fonseca

 

2

Já o texto de abertura, A força humana, é um dos maiores momentos da nossa literatura. O narrador é um personagem recorrente nos primeiros livros fonsequeanos, o fisiculturista-galã, no fundo intrinsicamente solitário, prisioneiro da incomunicabilidade—o que repercutirá, aliás, em todos os relatos de A Coleira do Cão[3]. Ao levar para a sua academia, devido ao potencial do seu corpo («Eu ainda não tinha visto o crioulo sem roupa, mas fazia fé—a postura dele só seria possível com uma musculatura firme»), um jovem que conhecera por acaso, acaba (como Bette Davis, em A Malvada) arranjando um sinuoso rival e sendo desbancado[4].

A voz narrativa é um feito, um daqueles exercícios de linguagem inconfundíveis, mais fascinante ainda porque multiplicado em outras “vozes” notáveis ao longo da coletânea, como a do rapaz que tenta aproveitar um fim-de-semana sozinho em seu apartamento (os pais viajam) para arranjar uma mulher, no excepcional Madona, e que ao cabo de um irrisório périplo de  atividades praieiras, barzinhos, festinhas e paqueras, tem de se contentar com uma “rapidinha” furtiva com uma das empregadas domésticas de seu edifício:  «… um dia que se acabou é um dia que se acabou, não volta mais, está perdido, sumido, é um bem que se foi, um pedaço perdido do tesouro, do tesouro de poucas riquezas…».

Também antológicos: Relatório de Carlos, no qual acompanhamos o declínio de um advogado cujo maior prazer era “reeducar” as amantes; e o conto-título, que coloca em foco não apenas o cotidiano de uma delegacia como um dos nossos maiores impasses civilizatórios, ainda agora: a violência policial.

E o que dizer do recatado romance que se estabelece via telefone entre uma dona de casa e um inválido (O gravador), ou do vigoroso retrato dos conflitos de uma família de raízes portuguesas, aquelas que associamos às padarias e a uma parte essencial do pequeno comércio no Brasil, e também a muitos dos nossos “valores” dominantes (O grande e o pequeno)?

E, apesar de antecipar a futura afetação do Rubem Fonseca “maduro” (e que tanto corroeu a qualidade da sua obra a partir dos anos 1980, com algumas exceções como O buraco na parede, sensacional coletânea de 1995) Os graus traça um impressionante perfil do desalento de um amante envelhecido. Pois como pressente o ainda muito jovem Sérgio, de Madona: « … o ruim do mundo eu ainda não tinha visto, mas faltava pouco, muito pouco para que isto acontecesse».

[a resenha acima apareceu no Letras in.verso e re.verso, em 20 de maio de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/05/rubem-fonseca-90-anos-o-relancamento-de.html]

coleira do cão

NOTAS

[1] Na Coleção Saraiva de Bolso.

[2] Até as reclamações das “pessoas de bem” (as quais, via de regra, são as mais discriminatórias), capitaneadas pela mídia dominante, continuam as mesmas: «A cidade está entregue à sanha dos marginais. A polícia nada faz. Os habitantes desta cidade já não podem mais sair à rua sob pena de serem assaltados e perderem os seus bens ou terem a própria vida estupidamente sacrificada...», lemos numa matéria de jornal do conto A coleira do cão.

[3] «.Não quero saber coisa alguma da vida de ninguém, prostituta, mulher de família, presidente da República, artista de cinema, a vida dos outros não me importa, o que importa é a minha vida. A minha vida.», lemos em Relatório de Carlos.

[4] «… e João olhou para mim com cara de amigos-amigos-negócios à parte, com cara de contar dinheiro—já se respaldava no crioulo…»

acoleiradocao (1)20131118111051745845i

24/11/2013

PARCAS EMOÇÕES E ROMANCES IMPERFEITOS: A FASTIDIOSA FICÇÃO LONGA DE RUBEM FONSECA

bufo-e-spallanzani-poster01

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de setembro de 2001)

Quem achou péssimo o filme de Flávio Tambellini (de fato, é) baseado em BUFO & SPALLANZANI, pode estar pensando: puxa, o livro deve ser bem melhor.

Não, caro leitor, os romances de Rubem Fonseca são verdadeiras porcarias. Um engodo. Um ótimo contista?, inegável. Já romances como O caso Morel; A grande arte; Vastas emoções e pensamentos imperfeitos; Agosto são duros de engolir. Dessa joça toda, até que Bufo & Spallanzani, embora ruinzinho, acaba sendo o mais divertido.

Há um arsenal de referências eruditas e literárias. Só nas primeiras páginas, temos Tolstoi, Flaubert, Nabokov, Simenon, Murillo Mendes, Chagall, Saint-John Perse, Moravia, Maupassant, Baudelaire, Lakatos… Ufa (e ao longo do livro poderiam ser arrolados uns cinquenta outros)! Que adianta isso, no entanto, se a única maneira de mostrar as pessoas ricas que Fonseca concebe é a mais baixa caricatura? Que a nossa “elite” deixa a desejar é óbvio. Mas que personagens como os Delamare ou os que procuram refúgio no Pico do Gavião sejam tão toscos, não se pode aceitar.

Se nos seus textos curtos ele cria uma hiper-realidade ficcional a respeito da violência urbana brasileira, que faz com seus contos dos anos 1960 e 1970 ainda sejam atuais e perturbadores, tudo o que ele tem a oferecer no romances é uma grotesca irrealidade, agravada em Bufo & Spallanzani pela narrativa em primeira pessoa do escritor Gustavo Flávio, ex- Ivan Canabrava, feita num tom sub-nabokoviano ou sub- Philip Roth.

res20110812190123511175imayer polessa

Veja, leitor, o horror que é o estilo (confesso-me muito burro para entender implicações jocosas ou paródicas que o autor porventura pretendesse imprimir a ele): “Carpas assadas na manteiga sem qualquer travo de terra e coelho ensopado com batatas e vagens. Havia também aspargos  frescos,  simplesmente indescritíveis, mesmo para um escritor competente como eu. Roma sentara-se numa mesa próxima à minha e houve um momento em que eu, ao mastigar o tenro coelho, imaginei, sem nenhuma lubricidade porém, estar mordendo as viçosas bochechas dela. Seus zigomas eram salientes e nobres, tinham a exuberância terrenha e pura dos frutos da natureza. Uma mulher edível, sob todos os aspectos”!!!!!???? (Gustavo Flávio já se apresentara, de saída, como um sátiro e um glutão).

O filme, por incrível que pareça, até melhora a “história”, que carece de qualquer coerência no romance. Pois os roteiristas juntaram personagens das duas fases da vida do protagonista: quando ele é Ivan Canabrava, investigador de seguros; e depois, quando se torna Gustavo Flávio (também eliminaram, justiça seja feita a eles, os personagens do Pico do Gavião, os quais ocupavam inutilmente boa parte do relato, só para criar paralelismos narrativos, jogos de espelhos de quinta categoria, que talvez só entusiasmem estudantes acadêmicos na formulação dos seus TCCs, dissertações ou teses).

Por exemplo, o marido de Delfina Delamare tornou-se também vilão na trama de seguros que envolve um falso cadáver (na verdade, cataléptico) e que é investigada, com resultados horríveis, sob todos os pontos de vista, incluindo o dramático, por Canabrava. Assim, tudo faz mais sentido, sob certo ângulo, embora o espectador saia da sessão  com a sensação de que o filme “ainda” vai começar, tal a falta de emoção, clima, tensão.

O que não falta é canastrice.  Dá até para sentir o impacto cósmico do titânico duelo dos canastrões José Mayer e Tony Ramos. O primeiro continua com os músculos do rosto inamovíveis, independentemente de qualquer situação que enfrente. O espectador fica o tempo todo à espera de que alguma Anita se apresente (nua, é claro) para ele[1], tal a mesmice da cara e da caracterização (no livro, o personagem é um mulato gordo).

E Tony Ramos?O que dizer de Tony Ramos? Ele,que era um galã anódino e funcional quando jovem, parece sonhar agora em se tornar um Al Pacino dos bons tempos, com seu tira Guedes. Mas os tiras dos romances de Rubem Fonseca já são medíocres de fábrica, já saíram com ar de produto requentado dos tempos da ficção noir E a incapacidade de Ramos—como de Mayer e do resto do elenco, diga-se de passagem—para dizer frases pomposas de forma natura, sem parecer que estão sendo “declamadas”, é constrangedora, beirando o indecoroso.

Mas tudo o que soa falso já está assim no romance. E o filme alivia o lado pernóstico e pretensioso. Sobra, ainda assim, o suficiente para ser indigesto.

No mundo de papelão que Fonseca modelou, só se salvam mesmo os personagens assumidamente caricaturais. Por essa razão, o melhor do livro são as personagens Zilda, primeira mulher de Ivan Canabrava-Gustavo Flávio, e Dona Duda, secretária da empresa de seguros (as quais foram reunidas numa só, na versão cinematográfica); esta última “também gostava de ver filmes dublados. As vozes dos dubladores eram sempre as mesmas e ela gostava disso. Quando surgia uma voz nova, ela reclamava. Chegou a escrever uma carta para a Rede Globo. Não gostei da voz que colocaram no Burt Reynolds no filme de quinta-feira. O que aconteceu com a voz antiga? Quem dublava Burt dublava o Lee Majors, o Humphrey Bogart, o Clark Gable, o Telly Sallavalas, o Laurence Olivier e o Xerife Lobo”! (eis aí o velho e bom Rubem Fonseca dos contos).

No mais, há um aspecto latente em Bufo & Spallanzani que daria um grande romance ao contar um crime que leva à narrativa  de outro crime e assim sucessivamente, num desmascaramento sem fim e desmoralizante. Teríamos um retrato irônico do que acontece com os crimes e falcatruas que o país acompanha, recuando no passado de um Jader Barbalho, por exemplo. Da maneira como o livro foi concretizado, porém, isso ficou em segundo plano. Infelizmente.

rubem-fonseca-bufo-e-spallanzani_MLB-F-2941200263_072012Bufo---Spallanzani_PrimCapa_interna


23/11/2013

AMÁLGAMA: um Rubem Fonseca pífio para 50 anos de carreira

580x415-sqPV Rio de Janeiro (RJ) 02/10/2013 Capa de livro Foto Divulgação

(uma versão da resenha abaixo foi publicada na Folha de São Paulo de 23 de novembro de 2013: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1375157-critica-coletanea-reune-lado-fraco-de-rubem-fonseca.shtml )

Percorrendo os 34 textos que compõem Amálgama, o leitor encontra relances da genialidade que inovou profundamente a nossa ficção desde o lançamento, há 50 anos exatos, de Os Prisioneiros. Entre um Pedro Luiz, algumas poucas protagonistas femininas e outros não-nomeados, vários Josés—geralmente   órfãos, (mal)criados por uma tia— enredados na misoginia, na criminalidade ou na perversão (um deles gasta o capital da venda da casa para furar os peitos siliconados de uma mulher) circulam pelo anonimato urbano. Mesmo no caso do pai amoroso  de Conto de Amor, o lado “mundo-cão” prevalece : ele presenteia o filho nascido sem os membros com um explosivo.

Como que para rubricar esse estado de coisas, Rubem Fonseca seguiu o caminho adotado por Dalton Trevisan a certa altura da sua contística (ambos nasceram no mesmo ano, 1925, e os mais sérios candidatos ao posto de maior nome dentro do gênero), com relatos que vão na direção do tosco, do traço rupestre.

É difícil seguir Dalton título a título, mas quando cai algum nas mãos a impressão sempre é de vigor. Não é o caso de Amálgama. Não é ela a coletânea a redimir seu autor de uma sequência infindável de obras fracas; pelo menos, desde  O buraco na parede (1995).

Buscando ser cru à máxima potência (“Foi caminhando lentamente pela rua até que encontrou a primeira lata de lixo grande. Então jogou o bebê na lata de lixo”, lemos no conto de abertura, O filho), o José-autor revela-se apenas desfibrado[1], mesmo porque recai em truques derrisórios: assassinos de aluguel cultos (nem com o fracasso de O Seminarista, seu péssimo romance mais recente, ele aprendeu), espreitadores de mulheres que leem Chatwin, Theroux e Lévi-Strauss, e principalmente as risíveis informações de almanaque (de araque, dir-se-ia): o narrador tem bursite, “essa inflamação da bolsa, ou bursa, a cavidade que contém líquido seroso e reduz o atrito em articulações“, chegando à seguinte desfaçatez: “Afinal, que pessoas frequentavam essas festas? Creio que principalmente os boca-livristas (termo que resulta do substantivo boca-livre, evento ou lugar em que se pode comer e beber de graça) “[2].

O que há de mais horrível, afora a decadência da linguagem rubem-fonsequeana, é a inclusão (também à Dalton Trevisan) de arremedos da forma poética: “Um escrevia o nome da mulher amada com letras de macarrão/ Enquanto a sopa esfriava no prato./Outro era metade solidão e metade multidão./Estou de olhos neles./ Um andava com a espada sangrenta na mão./ Outro fingia que sentia o que de verdade sentia./Este dizia que não cabe no poema o preço do feijão (…) Este vê a vida como origem da sua inspiração/ A vida que é comer, defecar e morrer (…)/ A poesia é uma sopa de pedra/ Cabe tudo dentro dela” (Sopa de pedra)[3].

Há os lampejos mencionados e alguns textos que, se não redentores do conjunto, pelo menos honram a firma (Conto de AmorDevaneio, por exemplo[4]). O saldo final é depressivo: Fonseca parece imitar um jovem e ainda inábil escritor influenciado por sua obra. Mais do que a crueldade destilada (debilmente) pelas histórias, o leitor fica contristado com esse depauperamento avassalador de um universo autoral que já foi um marco e tanto. Não haverá comemorações para esse meio-século de produção.

VER TAMBÉM NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/a-moralidade-de-best-seller-de-rubem-fonseca/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/24/parcas-emocoes-e-romances-imperfeitos-a-fastidiosa-ficcao-longa-de-rubem-fonseca/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/quitutes-do-caldeirao-do-bruxo/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/o-genial-rubem-fonseca-dos-primeiros-tempos/

bigPhoto_02


[1]  E, por vezes, parece estar parodiando (consciente ou inconscientemente?) seu maior rival:

“Estou olhando as mulheres passarem na rua em frente deste reles botequim.

     O cara me diz, meu irmão, pode descolar uma grana para um sujeito faminto?

    Foda-se, respondo.

    Eu podia estar assaltando, mas estou pedindo—ele não sabia se ameaçava ou suplicava.

     Foda-se, repito.

    Não consigo ver bem seus olhos ansiosos de cão vadio; é uma dessas noites escuras, propícia para os pé-rapados foderem as rameiras no cantão e terem um alívio agônico enquanto o dia afinal não chega com as ânsias mais horrendas” (Noite). Se houvesse um tempero mais “brejeiro”, seria um típico texto do Trevisan mais tardio.

[2] No primeiro parágrafo de Segredos e Mentiras (aquele em que o narrador não é um José, mas Pedro Luiz) temos uma promissora brincadeira com esse pedantismo raso: “Tenho uma tendência à prolixidade, uso mais palavras e frases do que o necessário e acabo me tornando enfadonho. Não existe nada pior do que ler um texto fastidioso. Por isso tentarei ser o mais conciso possível ao narrar esta história”. Pena que o relato, embora contenha aqueles “relances” da boa safra Fonseca, não tenha um resultado final apreciável: é fastidioso.

[3]  Para não dizer que todos os pruridos em versos de Amálgama são horríveis, tem um momento de quase-redenção: Lembranças, onde há um homem com Alzheimer, os versos ecoando o que restou da memória, e em última instância, dos traços da existência. No entanto, Fonseca teima em permanecer à superfície das coisas.

[4]  Há textos que “prometem” alguma coisa, e acabam logrando o leitor, como Isto é o que você deve fazer (o narrador espreita um sujeito que mata gatos) ou Perspectivas (que é destruído pelo bizarro almanaquismo do autor). O ciclista também poderia ser um belo relato.

Sem ser um grande conto, Best Seller é o mais divertido de Amálgama: trata-se de um escritor que precisa criar um livro “que tenha veracidade. Ninguém mais quer ficção, a ficção acabou. É isso que vende”. Como ele realiza essa passagem para a “veracidade” eu não conto, mas garanto que é um lampejo da velha (boa) crueldade rubem-fonsequeana.

Assim como o começo de Borboletas (que depois se perde nos cacoetes do autor):

“Estava pensando em escrever um livro para velhotas solitárias.

   O quê? Está maluco? Velhotas solitárias gostam de ir ao teatro de van. E sabe por quê?

    Primeiro elas têm a oportunidade de sair de casa, a van as apanha, leva ao teatro e traz de volta. Saem de casa, entendeu? Toda velhota quer sair de casa de noite; quando está lendo, ela não sai de casa, fica de camisola, pijama, ou sei lá que for, cochilando com o livro  no peito. Mas quando ela vai ao teatro, ela se arruma toda, precisa ir à manicure, ao cabeleireiro, entendeu?

    Então para quem vou escrever o meu livro novo?”

Outra boa oportunidade perdida, por causa dos artifícios do discurso (fastidiosos) é Crianças e velhos, cujo narrador(que “despreza os pedófilos”) recolhe em casa uma menina de quatro anos: “Bem, vou deitar. O pesadelo está me esperando” é a última frase. Isso é o cru. Isso é o rupestre em sua melhor forma, pena que para chegar a ele temos de aturar páginas “a mais do que o necessário”, como bem alertou nosso amigo Pedro Luís.

Outros textos, como Decisão, respiram o ar da autoparódia (o assassino não mata mulheres nem anões). Aliás, não podia faltar a autorreferência: “Tem sempre um anão se metendo na minha vida. Até já matei um e coloquei dentro de uma mala”, lemos em Perspectivas (O anão é um dos textos mais brilhantes de O buraco na parede); ou como O espreitador, malgrado alguns “relances” (“Espreitada parada perde a graça, mesmo de saia. O que é bonito é a Espreitada em movimento”). O pior, nessa linha, é provavelmente A festa.

dalton-trevisan-598x360

rf1

O genial Rubem Fonseca dos primeiros tempos

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 26 de outubro de 2010)

Em 1973, há seis anos sem lançar um livro novo, Rubem Fonseca já publicara três importantes coletâneas: Os prisioneiros; A coleira do cão e Lúcia McCartney.. Só dois anos lançaria outra, justamente aquela que o tornaria famoso: Feliz ano novo. A novidade foi a sua estréia no romance, com o lamentável O caso Morel. Esse gênero monopolizaria sua produção na década seguinte, transformando-o num berst seller, e, na opinião de quem aqui escreve, quase o destruindo como criador.

Nesse mesmo ano, contudo, fora lançada uma antologia reunindo 18 contos dos seus livros anteriores, O homem de fevereiro ou março, a qual acaba de ganhar uma segunda edição, permitindo ao leitor  uma visão panorâmica do “primeiro” Rubem Fonseca, tão talentoso e impactante que se tornou o autor-referência das últimas décadas, ao impor a ficção urbana de forma definitiva.

Dos 10 contos de Os prisioneiros, temos “Fevereiro ou março”, que inaugura de forma memorável esse universo, e nos apresenta um personagem recorrente nesses livros iniciais, o fisioculturista-pugilista galã que vive meio ao deus dará; além dele, “O inimigo”, que é uma das maiores provas do talento rubem-fonsequiano para o conto longo, que sugere um romance (e não de que ele tenha vocação para o romance), com um poder formidável. Nesse conto, ele mostra a desagregação de um grupo de colegas de escola e o apego nostálgico do narrador a uma época que já se foi. O inimigo é o tempo, que muda tudo, inclusive a feição da sociedade brasileira, que se urbaniza celeremente na década de 60.

A coleira do cão é um grande livro. Por isso, nada mais natural que 6 dos seus 8 contos tenham sido incluídos em O homem de fevereiro ou março, e que todos beirem a condição de obra-prima. Deixo de lado “Os graus”, “Madona” e até mesmo o notável “O gravador”, para ressaltar três textos paradigmáticos: “Relatório de Carlos”, em que mais uma vez o sopro do romance insufla num texto curto várias possibilidades e que mostra a queda um advogado poderoso que “reeducava” suas amantes; “A força humana”, no qual nosso anti-herói pugilista vive uma situação parecida a de Bette Davis em A malvada; e “A coleira do cão”, um dos maiores contos da nossa literatura, com a narração do cotidiano de uma delegacia.

A maior quantidade de contos (8) é de Lúcia McCartney (pudera, eram 19 no livro original). Os destaques vão para “O caso de F.A” onde nasce Mandrake, protagonista de tantas histórias de Fonseca, e memoravelmente encarnado por Marcos Palmeira no seriado da HBO; “A matéria do sonho” onde uma boneca de vinil é o grande amor do narrador; “Lúcia McCartney”, onde  o cotidiano de uma garota de programa é explorado de forma desdramatizada e inovadora; o crudelíssimo “Relato de ocorrência”, em que uma vaca atropelada é  toda cortada pelo populacho; e por fim, o extraordinário “O quarto selo”, onde, num Rio de Janeiro do futuro, departamentos especializados de repressão a ondas crescentes de terror e rebelião, são mencionados por siglas, que vão sendo explicadas minuciosamente ao leitor (por exemplo, RDE= regulamento de defesa especial, ESQUADRÕES= grupos de especialistas  em atentados pessoais com explosivos) até que as siglas se tornam rebarbativas e tautológicas: CONTROLE= controle; EUNUCO= eunuco.

O homem de fevereiro ou março é indispensável para o leitor de 2010 constatar  por que tanta gente acha Rubem Fonseca genial.

VER TAMBÉM NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/a-moralidade-de-best-seller-de-rubem-fonseca/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/amalgama-um-rubem-fonseca-pifio-para-50-anos-de-carreira/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/24/parcas-emocoes-e-romances-imperfeitos-a-fastidiosa-ficcao-longa-de-rubem-fonseca/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/quitutes-do-caldeirao-do-bruxo/

QUITUTES DO CALDEIRÃO DO BRUXO

(RESENHA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM ‘A TRIBUNA’ DE SANTOS, EM 31 DE OUTUBRO DE 1995)

Decepções sucessivas com os discutíveis (e alguns bem ruins) romances de Rubem Fonseca fazem o apreciador de seus contos hesitar, apesar da expectativa, em ler O buraco na parede.

Afortunadamente, lida a coletânea, percebe-se que seus oito contos não saíram do forninho micro-ondas de um best seller made in Brazil. O buraco na parede não é fast food. É quitute de caldeirão de bruxo, produto da alquimia interna de um contista que renovou a ficção nacional na década de 60, com obras como A coleira do cão, o qual pode ser lido em 1995 como se tivesse sido escrito hoje em dia. Seu retrato da realidade urbana brasileira continua desalentadoramente atual. Isso, sem falar da linguagem enxuta e contundente, um estilo que conheceu seu auge em Feliz ano novo (1975) em matéria de impacto e eficácia, e que agora corre nas águas mais mansas da maestria e da perícia técnica absoluta nos textos de O buraco na parede.

É difícil apontar qual o melhor deles. De imediato, três se destacam: O balão-fantasma, O anão e o conto-título, todos narrados em primeira pessoa (só dois textos no livro não o são).

Em O balão-fantasma aparece a figura emblemática do delegado diante do labirinto de criminalidade (e, em se tratando da Baixada Fluminense, realmente é um labirinto) e da desmoralização social, que aparece com freqüência no universo de Fonseca, só que o texto atinge um teor quase metafísico (além do tom lírico que perpassa toda a parte final do relato), pois ele tem de enfrentar uma seita de baloeiros com um fervor místico que o confunde e dribla a polícia e os vigilantes ecológicos, acrescentando-se à loucura geral da  nação ao lançar o maior balão do mundo. Uma obra-prima.

O anão é a história de um atropelamento e de um assassinato: um homem (o narrador, Zé) mata um anão chantagista e o coloca numa mala para poder continuar com a mulher que o atropelou. É ler para crer no encanto com que, implacável e impagavelmente, Fonseca constrói o arco que vai do atropelamento ao assassinato. Especialmente deliciosa é a descrição do relacionamento que se estabelece entre Zé e Sabrina, atendente do Miguel Couto, onde ele foi internado: “Sabrina não saía da minha casa. Trouxe uma mala com coisas, roupas, discos de Tim Maia. Comecei a ficar com raiva dela, raiva do Tim Maia…”

    O conto-título é a prova consumada de que Fonseca desperdiça seu incomparável talento em romances de segunda categoria. Em 20 páginas, ele consegue concatenar complexas situações e vários personagens: o narrador, dessa vez, é um jovem desocupado que mora num cubículo onde há o buraco. Através dele, espia sua amada, filha da senhoria. Esse buraco, que também é uma metáfora do que acontece quando temos acesso (mesmo involuntário) á intimidade das pessoas numa sociedade como a nossa, o leva, por tortuosos caminhos (que incluem uma libidinosa vizinha casada), à mais completa abjeção.

O leitor ainda tem o vaudeville sinistro e divertido de Idiotas que falam outra língua (o marido mata a esposa e reúne as duas amantes e mais o amante da esposa na cena do crime), o hiper-naturalista A carne e os ossos, o grotesco e cortante Orgulho, um daqueles contos rápidos nos quais Fonseca mostra mão de mestre. E tem ainda o caricato Artes e ofícios, e por fim Placebo, o mais problemático dos textos do livro: uma história esplêndida, aproveitando o significado da palavra placebo, extremamente bem-conduzida e cruel, porém infestada dos vícios que comprometem todos os romances e alguns contos do autor de O buraco na parede, por exemplo, a mania das brincadeiras eruditas. Em Placebo, o narrador está segurando uma caixa com um feto e diz para todos que é cerveja. O autor não resiste e, quando tem de inventar nomes para a suposta cerveja alemã, pespega-nos Weltschmerz e Weltanschauung, consagrados termos históricos e filosóficos. Compromete-se a verossimilhança psicológica do narrador e o texto artificializa-se.

Nem por isso o leitor deixa de ser arrastado pelo ritmo do conto, como acontece quase sempre com o contista Rubem Fonseca: seus quitutes diabólicos são devorados para se saber “aonde tudo vai dar”. Se depender das conclusões dos seus textos, porém, a perspectiva de “onde vai dar” a sociedade brasileira não é a de luz no fim do túnel, mas de um enorme buraco que vai se alastrando até derrubar o edifício.

VER TAMBÉM NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/a-moralidade-de-best-seller-de-rubem-fonseca/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/o-genial-rubem-fonseca-dos-primeiros-tempos/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/amalgama-um-rubem-fonseca-pifio-para-50-anos-de-carreira/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/24/parcas-emocoes-e-romances-imperfeitos-a-fastidiosa-ficcao-longa-de-rubem-fonseca/

A moralidade de best seller de Rubem Fonseca

 

José Joaquim Kibir é um ex-seminarista (adora citar frases feitas em latim) que resolve se aposentar. Até então, era um assassino profissional, o Especialista, cujo contratante ele conhecia como o Despachante. Só que um dos sujeitos que ele executou tinha em seu poder um CD comprometedor com relação a um tal Ziff, figurão da sociedade (recebido pelo presidente sem que precise marcar audiência), detalhando sua participação no narcotráfico, e por isso, tanto José quanto o Despachante, e mais a filha deste (Kirsten), por quem o primeiro se apaixona, estão marcados para morrer. José procura a ajuda de um ex-colega de seminário, D.S., um importante editor, enquanto investiga a situação na qual vai ficando cada vez mais implicado (há alguns crimes dos quais ele é o principal suspeito), tentando permanecer vivo, constantemente mudando de esconderijo, com Kirsten, após o assassinato do Despachante…

Além de ter nascido no mesmo ano (1925), Rubem Fonseca tem em comum com Dalton Trevisan a maestria no conto. Lamentavelmente, em algum momento aziago da sua (e para a nossa) vida, ele decidiu que também era romancista. E o admirador da sua formidável obra como contista (A coleira do cão, Feliz ano novo, O buraco na parede) teve então de aturar textos bisonhos e ruins como O caso Morel, A grande arte, Bufo & Spallanzani, Vastas emoções e pensamentos Imperfeitos. Eu desisti de ser masoquista, após ler Agosto. Deveria ter mantido minha decisão, já que seu novo romance, O seminarista, é tão irritante e frustrante quanto os outros. Parece escrito por um imitador inepto dos piores defeitos de Rubem Fonseca, ou por um imitador iniciante, que não tem a própria voz e não sabe o que quer.

Eu não vejo necessariamente como um problema um texto trazer informações eruditas ou discussões intelectuais. Mas, e esse é um vício recorrente nos romances anteriores (e, sejamos honestos, até nos seus contos menos felizes), desde as citações latinas, até a leitura compartilhada de alta poesia pelo ridículo casal José-Kirsten, sem falar na rotina do seminarista-matador profissional (que percorre sebos e assiste filmes de Kuruosawa, Fellini ou Kubrick), o que aparece de “intelectual” em O Seminarista é uma perfumaria rasa, que só torna a história mais fraca e irreal. E previsível: qualquer pessoa, menos o idiota do herói-narrador, percebe de cara que o verdadeiro vilão da história é o mascarado amigo D.S, e não o suposto Ziff.

Não bastasse isso, há também o fato de que os antecedentes familiares de Kirsten (que é alemã) nunca poderiam ser “prosaicos”. Assim como os que fazem regressão a vidas passadas, e descobrem que foram Cleópatra, Napoleão ou Ivan, o Terrível, o avô da dita cuja não poderia ser ninguém menos do que um participante da Operação Valquíria contra Hitler (aquela mesma do filme com Tom Cruise). Quando comecei a ler “Meu avô era um jovem oficial da Wermacht, primeiro-tenente, em 1944. Fazia parte do staff do coronel Claus Von Stauffneberg, e participou da chamada Operação Valquíria”, eu, que já não estava levando o texto a sério, matei a charada: Rubem Fonseca está tão seguro na sua posição de  “medalhão” que não tem mais o menor pudor de escrever qualquer besteira que lhe ocorra. Vejam a inútil passagem (num romance de apenas 180 páginas) em que o dono de um restaurante descreve seu cardápio: Estão todos muito bons, disse o seu João com  um forte sotaque, mas o bacalhau à Gomes de Sá eu mesmo preparei; comecei ontem, pu-lo de molho numa bacia de água, trocando a água seis vezes, depois escorri o bacalhau, retirei-lhe as peles e as espinhas e desfi-lo em pequenas lascas que coloquei numa panela funda, cobri-a com leite bem quente e deixei ficar em infusão por três horas. Enquanto isso, cortei as cebolas em rodelas e o dente de alho e levei a alourar ligeiramente numa frigideira de ferro com um trisco de azeite, até que ficassem translúcidas e levemente amarronzadas, em seguida juntei as batatas, que haviam sido cozidas com a pele e depois peladas e cortadas também em rodelas, e juntei o bacalhau escorrido, mexi tudo ligeiramente, mas sem deixar refogar, temperei com sal e pimenta, coloquei num tabuleiro de barro e levei-o a um forno bem quente durante quinze minutos, o Joaquim deixa ficar vinte, mas eu prefiro quinze minutos, com o forno a duzentos graus...”etc, etc e etc… Se ele ainda estivesse fazendo um painel oitocentista e balzaquiano da sociedade brasileira, concorrendo com o registro civil…

Ele continua tentando satirizar os novo-ricos. Só que os cacoetes de classe alpinista, ostentações, tudo o que supostamente desmascara neles é justamente o que ele demonstra como escritor. Quando satiriza uma personagem que fala da sua adega chique um texto decorado e kitsch, ele está descrevendo o seu próprio estilo: “Perguntei-lhe qual o vinho branco que devia comprar para acompanhar aquelas iguarias… podia ser um Riesling, mas tinha que ser dos melhores, ou então, se eu optasse pelo tinto,  um Spätburgunder,  cuja origem eram cepas Pinot Noir que importaram da Borgonha. Não foi fácil achar esses vinhos,  aqui, quando se toma branco alemão há o costume de tomar o Liebfraulmich, raramente bom, e os tintos são difíceis de ser encontrados.” etc, etc e etc.

E, diga-se de passagem, que ricos e poderosos são esses do livro, que não convencem ninguém? Parecem mais caricaturas de personagens de Orson Welles. Só para dar uma idéia da completa ausência de senso de realidade de O seminarista, basta citar um trecho da incursão de José Joaquim Kibir no apartamento de uma viúva, que serve como “casa de encontros”: … fingindo que prestava atenção ao que ela dizia, enquanto olhava as pessoas no salão. Alguns contatos ainda estavam na fase dos prolegômenos, mas outros haviam sido estabelecidos com tal rapidez que casais acordantes já se retiravam discretamente. E as mulheres não eram evidentemente garotas de programa, se não todas, pelo menos na maioria eram donas de casa ricas e enfadadas em busca de um enredo romanesco que acrescentasse um pouco de elã às suas vidas.”!!!! “Donas de casas ricas e enfadadas em busca de romance”: ele deve estar lendo o mundo atual com os olhos da Jacqueline Susann de O vale das bonecas ou de Harold Robbins. Rubem Fonseca chegou à moralidade dos best sellers. Pior para nós.

(resenha publicada originalmente em “A Tribuna” de primeiro de dezembro de 2009)

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/quitutes-do-caldeirao-do-bruxo/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/o-genial-rubem-fonseca-dos-primeiros-tempos/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/amalgama-um-rubem-fonseca-pifio-para-50-anos-de-carreira/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/24/parcas-emocoes-e-romances-imperfeitos-a-fastidiosa-ficcao-longa-de-rubem-fonseca/

1127490

Blog no WordPress.com.