«João continuou: Já viu coisa igual? Não acha que ele pode ser o campeão?. Eu disse: Talvez, ele tem quase tudo, só falta um pouco de força e de massa. O crioulo, que estava ouvindo, perguntou: Massa? Eu disse: Aumentar um pouco o braço, a perna, o ombro, o peito, o resto está — ia dizer ótimo mas disse: bom. O crioulo: E força? Eu: Força é força, um negócio que tem dentro da gente. Ele: Como é que você sabe que eu não tenho? »
(trecho de A força humana)
[uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de maio de 2015]
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Dois dos nossos escritores mais cultuados, ambos mestres na arte do conto, comemoram 90 anos em 2015: Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, este último agora em maio—e um de seus títulos fundamentais, A Coleira do Cão (1965), tornando-se cinquentenário, ganhou nova edição pela Nova Fronteira[1].
Nele estão reunidos oito contos que ajudam a compreender por que Fonseca influenciou de forma decisiva, para o bem e para o mal, a ficção nas últimas décadas, sendo imitado à exaustão, inclusive nos seus maneirismos (a pseudo-erudição que infesta seus romances, muito ruins, na minha opinião) e na sua inclinação ao gênero policial. Eles valem tanto como registro histórico de um momento em que a balança da realidade nacional pendeu definitivamente para o urbano na imaginação literária («Ah, estava explicado, pensei, o Rio estava ficando diferente»), quanto como demonstrações cabais do que não mudou e resiste até hoje de forma lamentável: o classismo, o machismo, o racismo, a exploração, a corrupção, a desmoralização da sociedade civil[2]—espantoso é que, passado o regime militar, tudo isso persista—, mesmo que o “vocabulário” seja vigiado pelo “politicamente correto” (não é mais tão “natural” e “inofensivo” usar o termo “crioulo”, como fazem os personagens do livro). Até a atualíssima questão da diversidade sexual aparece, embora no texto mais frágil do conjunto, A opção.
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Já o texto de abertura, A força humana, é um dos maiores momentos da nossa literatura. O narrador é um personagem recorrente nos primeiros livros fonsequeanos, o fisiculturista-galã, no fundo intrinsicamente solitário, prisioneiro da incomunicabilidade—o que repercutirá, aliás, em todos os relatos de A Coleira do Cão[3]. Ao levar para a sua academia, devido ao potencial do seu corpo («Eu ainda não tinha visto o crioulo sem roupa, mas fazia fé—a postura dele só seria possível com uma musculatura firme»), um jovem que conhecera por acaso, acaba (como Bette Davis, em A Malvada) arranjando um sinuoso rival e sendo desbancado[4].
A voz narrativa é um feito, um daqueles exercícios de linguagem inconfundíveis, mais fascinante ainda porque multiplicado em outras “vozes” notáveis ao longo da coletânea, como a do rapaz que tenta aproveitar um fim-de-semana sozinho em seu apartamento (os pais viajam) para arranjar uma mulher, no excepcional Madona, e que ao cabo de um irrisório périplo de atividades praieiras, barzinhos, festinhas e paqueras, tem de se contentar com uma “rapidinha” furtiva com uma das empregadas domésticas de seu edifício: «… um dia que se acabou é um dia que se acabou, não volta mais, está perdido, sumido, é um bem que se foi, um pedaço perdido do tesouro, do tesouro de poucas riquezas…».
Também antológicos: Relatório de Carlos, no qual acompanhamos o declínio de um advogado cujo maior prazer era “reeducar” as amantes; e o conto-título, que coloca em foco não apenas o cotidiano de uma delegacia como um dos nossos maiores impasses civilizatórios, ainda agora: a violência policial.
E o que dizer do recatado romance que se estabelece via telefone entre uma dona de casa e um inválido (O gravador), ou do vigoroso retrato dos conflitos de uma família de raízes portuguesas, aquelas que associamos às padarias e a uma parte essencial do pequeno comércio no Brasil, e também a muitos dos nossos “valores” dominantes (O grande e o pequeno)?
E, apesar de antecipar a futura afetação do Rubem Fonseca “maduro” (e que tanto corroeu a qualidade da sua obra a partir dos anos 1980, com algumas exceções como O buraco na parede, sensacional coletânea de 1995) Os graus traça um impressionante perfil do desalento de um amante envelhecido. Pois como pressente o ainda muito jovem Sérgio, de Madona: « … o ruim do mundo eu ainda não tinha visto, mas faltava pouco, muito pouco para que isto acontecesse».
[a resenha acima apareceu no Letras in.verso e re.verso, em 20 de maio de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/05/rubem-fonseca-90-anos-o-relancamento-de.html]
NOTAS
[1] Na Coleção Saraiva de Bolso.
[2] Até as reclamações das “pessoas de bem” (as quais, via de regra, são as mais discriminatórias), capitaneadas pela mídia dominante, continuam as mesmas: «A cidade está entregue à sanha dos marginais. A polícia nada faz. Os habitantes desta cidade já não podem mais sair à rua sob pena de serem assaltados e perderem os seus bens ou terem a própria vida estupidamente sacrificada...», lemos numa matéria de jornal do conto A coleira do cão.
[3] «.Não quero saber coisa alguma da vida de ninguém, prostituta, mulher de família, presidente da República, artista de cinema, a vida dos outros não me importa, o que importa é a minha vida. A minha vida.», lemos em Relatório de Carlos.
[4] «… e João olhou para mim com cara de amigos-amigos-negócios à parte, com cara de contar dinheiro—já se respaldava no crioulo…»