

“Fora dentro, tudo é fora.” (Roberto Menezes, Pirilampos cegos, 2007)
“… as palavras sempre são à vera. as palavras são sempre tiro de fuzil, faz um furo quando entra e uma cratera na parte de trás. quem leu e não entendeu, sentiu. o ato de ler, meu caro, é um furinho quando entra, o impacto das palavras é lá dentro, já que estão dentro, se entendeu ou não, já que estão lá dentro, é à vera, é granada rancorosa…” (Roberto Menezes, palavras que devoram lágrimas, 2012)
“… é pegar pesado? acho que não, sem sombra de dúvida, não…” (idem)
Fiquei tentado a enganar meu leitor, enfatizando o lado “história de vingança”, com toques macabros à Stephen King, de palavras que devoram lágrimas, um dos romances mais sensacionais que li nos últimos anos[1].
Não seria uma mentira nem algo descabido. Roberto Menezes não tem medo de incorporar o universo de King ou outras referências da indústria cultural dominante (“ops, fiz de novo, como diria a britney”); no entanto, estaremos mais próximos da radicalidade e do efeito avassalador do texto do autor pernambucano (mas de vivência predominantemente paraibana, salvo engano) se o pensarmos na linhagem de um Paixão segundo G.H. (1964), de Clarice Lispector, ou de alguns filmes bergmanianos (como Através de um espelho, 1961), no sentido de que derruba as escoras, que escava as fundações, que põe a nu os tapumes que cercam nossa condição humana. A própria narradora diz que é “paleontóloga de nascença”, e esse exercício de escavação, de desnudamento, de despojar-se de todos disfarces e libertar-se de todas as amarras, no verdadeiro palimpsesto que é o relato, ironicamente é realizado através da digitação obsessiva; ou seja, no uso mesmo da tecnologia mais presente, vamos ao recôndito do ser-aí, ao “nada e nossa condição” (G.Rosa).
Eu sei, eu sei, tenho a consciência de que parece meio grandiloqüente, mas assim como acontecia com G.H. (é digno de nota que haja a “maldição Clarice Lispector”, com tantos imitadores[2], e que o nosso autor—cujo universo pouco tem a ver com o dela, em aparência—pertença muito mais genuína e legitimamente à sua linhagem; se me perguntassem onde está um clariceano de verdade na ficção atual, descartados os epígonos e pastichadores, apontaria Menezes sem hesitar), o que nos incita a penetrar nessa região sempre inóspita (essa dos confins da nossa condição) é o incrível apelo da “voz” inconfundível do personagem, que vemos se configurar na página em branco, e que é a isca de Menezes para nos arremessar nos estratos da sua paleontologia narrativa trepidante e frenética. Aliás, desde que li pela primeira vez, aos 18 anos, The catcher in the rye- O apanhador no campo de centeio, permaneceu comigo a convicção de que se a voz do personagem me hipnotizar, serei levado para qualquer lugar que o autor pretenda. Depois recolherei os cacos, contabilizarei os danos, entesourarei os ganhos.
Portanto, vamos ouvir um pouco da “voz” de palavras que devoram lágrimas, abstraindo a discutível opção de escrever tudo em minúsculas, inclusive o início de frases e parágrafos, uma solução formal que corre o risco de ser tomada como mero modismo[3], e ao fim e ao cabo não acrescenta nada ao ritmo ou ao impacto do texto (mesmo se levando em conta que a narradora está em pleno ato de digitação):
“…por essas horas eu já deveria ter falado de todas as camadas de tintas da parede do quarto que fui retirando, uma a uma, com lixas e raivas diversas. por essas horas eu já deveria ter dito o dobro do que eu disse com essas palavras todas. gastei meu verbo fazendo muitas interrupções. necessárias e pertinentes. no mais, grande parte do que fiz antes de chegar aqui, hoje, no seu gabinete, foi de caso pensado, premeditado, como você bem gostaria de dizer agora. foi tudo premeditado: desde as cordas de náilon que mandei trazer de campina até o notebook que comprei semana passada em dez mil parcelas! nem sei quando vou pagar. puxei pelo torrent a mais nova versão do Word, dizem que não dá tanto bug quanto o outro. e esse tem, acho eu, a opção de não salvar automático. estas palavras todas só serão salvas se e quando eu quiser. não posso ter pleno controle sobre elas, mas são todas minhas e até posso contar quantas escrevi até aqui no exato momento em que estou escrevendo. agora que já passei de dez mil, olha aqui embaixo—dez mil e o escambau—já escrevi essas tantas páginas e nem parece tanto assim. posso também agora passar pro próximo ato. da maneira que eu planejei, a primeira parte englobaria toda a história das camadas de cores do nosso quarto. olha, de agora em diante quando eu falar nosso é sobre as que pertencem a mim e a você, ok? o nosso nosso banal que todo casalzinho tem…”[4]
Pois bem, antes de levar a cabo seu plano de vingança contra o ex-marido, um vereador (não falta aqui sequer o discurso ressentido nu e cru: “não sou como você, que deve culpar sua mãe, que lhe ensinou a escravizar cada nervo do seu rosto e só sobrou a sobrancelha esquerda…” [5]; a mesma mãe que “queria domar a menina candanga sem classe nem caligrafia aceitável pra cortar um lombo parisiense com a faca de sete gerações”), ela leva o leitor a uma “expedição aos motivos reais”, por meio de “joguinhos de altíssimo baixo calão”. E vai lixando aos poucos as camadas de tinta do quarto de casal no apartamento que sobrou da relação (e cuja posse será transferida mais tarde a um mendigo[6]): “…paciência é uma coisa que se consegue aos gritos…”
O achado que envolve essas sete camadas de tinta (… lembre da parede e das sete camadas de tinta. só arranquei a primeira, há seis níveis de solo neste aconcágua para escavar…”), uma para cada ano (“…é tudo uma questão de paranóia de uma sem-vergonha que aceitou as trinta mil moedas auspiciosas em troca de um cruzeiro de sete anos e outros desatentos comprimentos de tempo pelo oceano colorido e desgraçado do nosso fim…” [7]) não é tanto o recurso “paleontológico”, o efeito-palimpsesto (ou, para usar um termo do próprio relato, “inomogeneidade”), que ele permite como estruturador do discurso da narradora, mas as ressonâncias poéticas e imagéticas que ele proporciona ao talento transbordante de Menezes (mantido sob controle por conta das situações narrativas, bem entendido).


A cor de cada camada remete a toda uma gama de associações. Por exemplo, a primeira camada é bege, meio “leite condensado” meio “porra” (não esqueçamos, é a cor do estágio do final do casamento): “… cor de leite condensado a partir de agora é minha cor favorita. se ele fosse minha favorita há uns dias, eu não teria lixado a parede, que merda, não posso voltar atrás depois de ter derramado o leite ou as palavras…”; tem uma camada de um genial “verde-anágua” [8]; tem a camada de um “vermelho inespecificado” (“foi de uma mistura feita na máquina que simplesmente gostei. simplesmente, adoro esta palavra, simplesmente gostei, é esse o que eu quero e ponto final. como não acredito em pontos finais, ao contrário do dia que comprei, quando lixei o verde anágua não gostei do vermelho que vi (…)nem todo vermelho é o vermelho que se quer…), que acaba sendo uma “cor natimorta”; tem ainda a camada amarelinha, “com cor de casca de ovinho de patinha”, a camada do tempo em que “…virei uma aleijada…”: “..você me cercava como o cercado cerca as cabras, era um cercado de muitos vocês…”; lixando mais fundo, uma camada salmão: “… nosso terceiro ano, como eu vou esquecer? como você vai esquecer? o ano que finalmente eu dei o meu cuzinho quadrado pra você!” (deixando de lado, o enigma delicioso e irrelevante de como seria exatamente um “cuzinho quadrado”, que me tomou alguns momentos da vida, em tentativas de visualização imaginativa, foi este “o miserável ano da cor salmão”, “ano do cu doído”).
E chega-se à camada “azul inferno” (“…e por falar em inferno, vixe, é realmente um purgatório isso aqui…”), momento de grande virtuosismo do romance, em que percebemos que a corda está esticadíssima, num ponto onde pode arrebentar, ou permitir que o leitor passe para estratos ainda mais perturbadores (por puro gosto de citar o texto—e tendo em mente que boa parte dos meus leitores terá dificuldade de acesso a ele—mais duas passagens: “… por mim, eu ficaria neste azul inferno, mas prefiro, assim, depois de muitas páginas, lixar de vez, outra vez…”; “… tenho dom de lixar paredes e de me lixar…”; ah, essa voz hipnotizante e perigosa dos personagens-narradores carismáticos!): chegamos então à última camada, “branco gelo mais para a neve”, e concomitantemente “já entramos no último ato do meu desabafo…”.
A essa altura do texto, não há um elemento que não permita associações inauditas: “…trouxe o travesseiro recheado do alarido de noites insones…” é um exemplo.
Mas aí entra o “concreto”, o limite da parede toda lixada. E temos o impasse que acossa a parte final. Há a genial situação stephenkinguiana da execução da vingança, sobre a qual não entrarei muito em detalhes (embora peça ao meu leitor que dê uma ligeira olhada na capa da edição, que não é aleatória). O limite? Não, se “no cerne do concreto”: “… você já sabe o que eu vi, o que eu vi foi a minha alma (…) só eu vi, alma supurina de adamantium…”. Nesse ponto, o motor (já estamos em outro rol de metáforas) já sofreu a operação de desmonte, e pode ser remontado: “… só que as peças não estão no lugar onde começaram, bem ao estilo das obras do pac…” Creio que a partir deste ponto Roberto Menezes perde o controle do motor de palavras que devoram lágrimas, cuja característica mais incrível era justamente se manter numa estrutura de adamantium, mesmo com a febricitante capacidade do seu autor de propor imagens e associações.
Depois de um detalhe discutível, até mesmo um banal clichê (a revelação de que ela um dia apanhou em flagrante o marido sendo enrabado por outro homem), que pouco acrescenta à loucura da história, o romance vai se encaminhando para uma espécie de ritual wagneriano de morte das individualidades do casal, numa dicção onírica (e formalmente insatisfatória) em que um é ao mesmo tempo o outro.
Creio que alguns leitores ficarão arrebatados por esse transbordar da cuidadosa moldura narrativa. No meu caso, considero ¾ de palavras que devoram lágrimas uma das experiências de leitura mais intensas e estimulantes que já vivenciei, e espero ardentemente que para uma futura edição, seu talentoso autor repense o uso inócuo das minúsculas e todo o quarto final, tão desajeitado e frustrante quanto o subtítulo. Curiosamente, acaba sendo a mesma sensação de desperdício da leitura da quase totalidade dos livros de Stephen King, A dança da morte (1978) à parte: ideias e situações geniais, onde ao final o bebê é jogado fora junto com a água que o lavou.
No mais, prefiro terminar com uma citação do próprio livro:
“… remorso é uma palavra úmida, não combino com palavras úmidas, combino com lixa, pó, galho, ponta de faca, navalha, estilete…”
(escrito especialmente para o blog, em julho de 2013)

[1] Há um subtítulo , a felicidade cangaceira, que a meu ver é infeliz, rebarbativo, e só ajuda a complicar a já difícil recepção de um título publicado pela FUNESC (Fundação Espaço Cultural da Paraíba), numa coleção chamada “Riacho Doce”; ou seja, uma edição fadada a ter circulação restrita, lamentavelmente.
Diga-se de passagem, o próprio autor me informou de que o título original seria “Adamantium” (aquela fictícia liga metálica virtualmente indestrutível que envolve o esqueleto de Wolverine). Quem ler o texto, verá que, apesar de não ser ruim palavras que devoram lágrimas, aquele era o título ideal.
[2] Principalmente imitadoras, já que se convencionou que Clarice é o epítome de uma nefanda “escrita autenticamente feminina”.
[3] Ainda mais com o prestígio que Walter Hugo Mãe, useiro e vezeiro do recurso, adquiriu nos últimos anos.
O mesmo não se dá com as referências “pop”: “… eu não lembro mais a forma concreta do meu grito, uma mistura sem razão de ser de belchior com joy division, com uma pitada de calipso…” Tirando o fato de que a própria Clarice Lispector, na sua fase mais tardia, também fez questão de incorporar as de sua época, não podemos esquecer de que, se G.H. é mais comedida nesse sentido, a narradora de palavras que devoram lágrimas incorpora—e por extensão, satiriza—uma vulgaridade de classe média ascendente (e ela me lembra uma das protagonistas clariceanas, a Ofélia, de A cidade sitiada, 1949).
[4] Mais adiante: “…quero que entrem palavras, por seus olhos, uma a uma, em fila indiana, com a paciência que me faltou ao contar a conta-gotas da lata de leite condensado. palavras que devorarão suas lágrimas antes mesmo de elas saírem…”
[5] Em trecho anterior: “…o discurso, do seu discurso eu sei de cor e salteado; sei onde você erra, sei onde você acerta, sei que, quando você mente,a sobrancelha esquerda levanta, enquanto a outra coitada, por medo ou por que porra for, fica calada, travada. olhando agora admiro o jeito entregão da sobrancelha esquerda. acho que no fim, a saudade que tenho é dela. que bom que você nunca arrancou ela de lá. é bom que você esteja nela ou com ela, uma parte, mesmo que mínima de você, tem um mínimo de verdade…”
[6] “… ter conhecido márcio valeu a pena. parei a marcha e o encarei. os mendigos não são bons de corrida nem de esquiva, logo ele nem tentou bater em retirada. márcio é bem jovem, tem vinte e dois anos com cara de trinta e cinco. já teve quatro filhos e nunca viu suas caras. pra completar o seu currículo, mando uma rima: márcio é o cara, tem espalhadas no corpo definido oito perfurações de bala. quando houve o racha de nossas coisas e você quis deixar pra mim o apartamento, eu mandei você enfiar no cu (…) fiquei, burra, no apartamento, revi os maravilhosos momentos vivenciando outros mil aterrorizantes. mas sabe? acho que estava escrito nas estrelas pra eu ficar lá! eu não estaria aqui escrevendo essas quinze mil e poucas palavras se eu não tivesse ficado. táxi, gritei, onze reais e oitenta e sete centavos. no final, paguei. fui contra um dos artigos da minha constituição: nunca pegar um táxi quando se pode ir de ônibus ou a pé. sei lá, gritei e pronto. o taxista alinhavou o bairro inteiro. eu não senti que quisesse me roubar na corrida, e sim me dizer: senhora, vê lá senhora, manda esse imundo embora, nunca fui boa em corrida nem de esquiva. onze reais e oitenta e sete centavos bem pagos. os taxistas têm que parar com essa porra de quererem ser analistas express. e de novo estava eu, agora, diurnamente com um estranho dentro das minhas entranhas, o creme do creme, foda-se!, me fudendo. não era tesão o que eu e márcio, o que a gente compartilhava. também eu não negociava mais nada com ele. a camisa já era minha. a gente comemorava, simplesmente (…) eu chorava de alegria. não, minto: eu chorava de algo parecido com alegria, algo a dois metros e vinte sentimentos da alegria. márcio, do seu lado, não sei do que chorava. provavelmente chorava de si, e também chorava—não sou imbecil a ponto de não comentar com você—márcio chorava de contentamento por ter conseguido um apartamento pra ele. é isso. esse foi o meu grande exagero daquele sábado barrento: dei o meu apartamento em troca da camiseta azul inferno que eu sabia, no fundo, bem lá depois do mais profundo do pré-sal, que ele ou outro comparsa havia roubado de mim. ou eu mesma dei, sei lá e não faz diferença isso, depois que recuperei a camiseta, que conste nesta ata: o apartamento é de márcio. já passei em cartório, hoje ou amanhã ele se muda…”
[7] É preciso não perder de vista um aspecto crucial: a ascensão social (autoconsciente da própria vulgaridade e pobreza de horizontes) da narradora: “ … e era tudo um desgraçado joguinho de tarefa e recompensa, de adestramento próprio. Faz isso, neguinha, que de noite você ganha aquela sapatilha de pele de jacaré indiano, da lojinha de madame do shopping. Faz isso, mocinha, que de noite você entra na internet e faz a festa, manda trazer da malásia aquela sandália de palha de araucária grega…”
[8] “…apenas para lembrar que as camadas da vida, apesar de serem cobertas por outras cores mais doces e menos espetaculosas, estão lá, escondidas ou expandidas no grito aborígene das senhoras enlutadas que carregam, cada uma delas, de modo oculto, outras anáguas de cor verde anágua…”


